O legado kantiano é substrato fundamental à negação de qualquer manifesto de cunho apriorístico relacionado ao Direito e à Ciência do Direito, por parte de seus operadores. Em miúdos, não se cogita ontologia e deontologias jurídicas enquanto instrumentos sociais de finalidade ínsita.
O Antropocentrismo, da ideia de imago dei à elevação do princípio da dignidade humana à clave fundamental, pauta a existência do Estado e a feição hodierna do Direito. Destarte, não se demonstra sensata qualquer abordagem conceitual desvinculada de sua teleologia.
Por esta razão, doutos como Tércio Sampaio e Miguel Reale o retratam enquanto elo garantidor da manutenção social por via da audição em searas legal e judicial dos fatores reais de poder. Estes, grafados por Ferdinand Lasalle, são entendidos enquanto modos de ser e sentir do conjunto social em estudo.
Diante das premissas expostas, faz-se necessário estabelecer a ‘reprodutibilidade dos fatores postos em análise’ enquanto ponto de distinção entre as Ciências Natural e Social. Os modos de pensar e sentir dos habitantes da Capitania de São Paulo, não são os mesmos dos compartilhados pelos habitantes do Estado de São Paulo, assim como não são equivalentes às ideologias francesas. De um modo contrário, tanto presente quanto no passado, tanto no hemisfério norte quanto no sul, a lei da gravidade existe, e empurra os corpos ao eixo da Terra.
A dissemelhança entre ordenamentos jurídicos é expressão da diferença entre modos de ser e sentir acerca das relações sociais cogitáveis. E na tentativa de melhor decalcar esses sentimentos, o arcabouço normativo mantém constante oxigenação por parte de revoluções no campo politico, social e econômico, guiadas por ideais filosóficos e avanços nas mais diversas searas do conhecimento.
Desse modo, é valoroso o estudo do ordenamento jurídico enquanto conjunto vivo de normas e princípios calcado na necessidade de coexistência saudável, exprimindo, assim, os valores sociais dominantes. Neste ponto, se torna imprescíndível destacar seu caráter de construção histórica: não há unanimidade em campo das ciências sociais, sedimenta-se, paulatinamente, as conquistas.
A Lei Áurea foi promulgada no final do século XVIII, o sufrágio feminino aniversaria 84 anos, e o reconhecimento de uniões homoafetivas foi introduzido há pouco mais de 3. Contudo, apesar dos avanços legislativos relativos à igualdade racial, de gênero, e em âmbito afetivo, não se vive em isonomia material. Trata-se, pois, de conquistas sociais somadas à ordem jurídica de forma gradativa, na construção de uma sociedade mais justa e solidária, através do reconhecimento da ínsita dignidade.
O escorço de interrelações científicas e impermanência de paradigmas na construção do Ordenamento Jurídico vivo, encaixa-se, também, enquanto panorama para exame do reconhecimento de direitos às outras espécies animais.
Assim, a ideia antropocêntrica olvidou aos animais dignidade, convencionando-lhes tratamento de natureza real, ou seja, relativo à propriedade. Ainda hoje, em nosso Diploma Civil, convivemos com esta disposição, contudo, há de de frisar um movimento de ressignificação, pari passu à outras ciências, no qual se opera o gradativo reconhecimento dos animais enquanto seres de personalidade jurídica sui generis.
Estudos biológicos são uníssonos em afirmar que os seres humanos não são os únicos animais capazes de vivenciar sentimentos como a dor, a felicidade e a tristeza, a angústia e o medo, compartilhando, inclusive, de ideal de solidariedade. Afirmam ainda existir a consciência de si, e de coletividade em outras espécies.
Não por outra razão, o Código Civil francês fora revisado em 2015, denotando o predicado da capacidade de sentimentos também aos animais não-humanos, e fora acatado Habeas Corpus em solo argentine para livramento de um Gorila de maus-tratos sofridos em um zoológico.
Em solo brasileiro, disposições relativas à tutela animal datam de 1934, vedações a comportamentos degradantes estão em vigência desde 1941, revitalizadas em 1967, ampliadas ao campo da pesquisa com vivissecção em 1979. Regulamentou-se o funcionamento de zoológicos em 1983, elevou-se os animais à parte integrante do meio ambiente com a Constituição de 1988, e traçou-se conjunto de crimes ambientais em 1998.
Portarias relativas à condição de vida e abate também manifestam a atenção dada pelo poder Executivo ao reconhecimento da dignidade animal.
Em 2008 e em 2013, o Conselho Federal de Medicina Veterinária reforçou a causa animal em proibir operações de retirada de cordas vocais (cordectomia), caudas (caudectomia), de interferência em orelhas (conchectomia) e retirada de unhas (onicetomia) por fins estéticos.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de lei cearense que regulamentava eventos de vaquejada. A motivação do Acórdão se deve à impossibilidade de tutela de manifestação cultural em detrimento do bem-estar animal.
Percebe-se pois, o apanágio de construção gradativa e conjunta, ínsito ao Direito. A realidade da ideia ética, grafada por Hegel enquanto finalidade do Estado junto aos cidadãos, conflui, no Brasil e no mundo, ao reconhecimento das outras espécies animais enquanto seres merecedores de respeito e dignidade, razão pela qual se deve prezar pela sua Liberdade e pelo seu bem-estar.
REFERÊNCIAS
BEKOFF, Mark. Os animais têm consciência: trate-os como iguais. In Superinteressante. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/animais-tem-consciencia-trate-os-como-iguais/>. Acesso em nov 2016.
BRASIL. STF julga inconstitucional lei cearense que regulamenta vaquejada. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326838. Acesso em nov 2016.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio,. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. - 8. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001
RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Saraiva. São Paulo. 29ª Edição. 2009.
SANTOS FILHO, Euclydes Antônio dos. Direito dos animais: comentários à legislação federal brasileira. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 57, set 2008. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3115>. Acesso em nov 2016.