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A eficácia temporal das decisões no controle judicial

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4 APLICABILIDADE DA MODULAÇÃO TEMPORAL

A modulação temporal, denominada também de limitação temporal pelo STF, é um instituto de extrema importância para a racionalização das decisões de controle judicial de constitucionalidade. Evitando-se decisões alheias ao caso concreto e sempre com os mesmo efeitos.

Uadi Lammego Bulos define bem a utilidade do instituto:

Abre-se ao Poder Judiciário uma porta, uma válvula de segurança, para driblar as consequências gravosas de um nocivo formalismo cego. Faculta-lhe, pois, manipular a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade, limitando os efeitos temporais de sua decisão. (BULOS, 2014, p. 358).

Em seu voto sobre a possibilidade de modulação de efeitos de decisão proferida em sede de controle de constitucionalidade difuso, no RE 197.917/SP, o ministro Gilmar Ferreira Mendes explica:

(...) faz-se necessária, inicialmente, uma análise da questão no direito americano, que é a matriz do sistema brasileiro de controle. É interessante notar que, nos próprios Estados Unidos da América, onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a ideia de que a expressão 'lei inconstitucional' configurava uma contradictio in terminis, uma vez que 'the inconstitutional statue is not law at all' (...), passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de estabelecerem limites à declaração de inconstitucionalidade (...) (STF, RE 197.917/SP, Rel. Maurício Corrêa, 2004).

Fica claro diante do exemplo que não se pode usar a Teoria da Regime de Sanção de Nulidade de maneira absoluta. O Judiciário não pode ignorar as peculiaridades do caso concreto e a necessidade social.

A modulação é uma possibilidade necessária, a ser colocada disponível ao órgão julgado, em casos específicos. Através dela, modula-se decisões que, se mantidas com os efeitos ordinários da declaração ou não de inconstitucionalidade, seriam mais prejudiciais.

Baseado nisso, os artigos 27 da Lei nº 9.868/99 e 11 da Lei 9.882/99 autorizaram o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos temporais limitados em sede de ADI e ADPF.

Apesar da legislação somente ser expressa em permitir modulação nessas hipóteses, o Supremo – seguindo o entendimento da doutrina majoritária – admite a técnica em outros casos.

É possível sistematizar a jurisprudência do STF, em tema de modulação temporal dos efeitos de decisão judicial, identificando seis cenários diversos de aplicação: a) declaração de inconstitucionalidade em ação direta; b) declaração incidental de inconstitucionalidade; c) mudança de jurisprudência; d) Súmula vinculante; e e) em controle de recepção.  Ressalte-se a aplicação da técnica, em situações pontuais, na declaração de constitucionalidade em abstrato.

Nos últimos anos, multiplicaram-se os casos de modulação dos efeitos temporais. As vezes com a invocação analógica dos artigos 27 da Lei n. 9.868/99 e 11 da Lei 9.882/99 e outras vezes sem referência aos mesmos.

Parte-se da premissa de que a possibilidade de aplicação do instituto - algo de extrema importância para a racionalização do sistema jurídico - não pode ficar refém de formalismos inócuos, exigindo-se sempre previsão legal, ignorando a possibilidade de se ponderar valores e bens jurídicos constitucionais.

Alexandre Moraes, interpretando a jurisprudência do Excelso Pretório, afirma:

O Supremo Tribunal Federal decidiu que “o sistema pátrio comporta a modulação de efeitos, sem que isso signifique violação ao texto constitucional”, afirmando que “a sua adoção decorreria da ponderação entre o Estado de Direito na sua expressão legalidade e na sua vertente segurança jurídica”. Ressaltou, ainda, ‘que o procedimento da modulação seria bifásico, escalonado e progressivo: o julgamento que se faz sobre o mérito da constitucionalidade e aquele referente à modulação de efeitos’, ou seja, ‘ocorreriam duas apreciações autônomas e distintas, sendo que a segunda - a qual envolveria a questão da modulação - tem como pressuposto a declaração prévia de inconstitucionalidade’ (grifo nosso) (MORAES, 2014, p. 777).

Mesmo sem legislação autorizando, o Guardião da Constituição é também o Protetor do bem social. Devendo relativizar o formalismo em excesso, sempre que o caso exigir.

Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco explicam de forma cristalina e perfeita a extensão da aplicabilidade da modulação temporal:

Ainda no plano da eficácia, cumpre referir decisões em recursos extraordinários nas quais o Tribunal, em homenagem à segurança jurídica ou a outro valor constitucionalmente relevante, modulou os efeitos do decisum. Conforme assentado na decisão proferida no HC 82.959 (progressão de regime nos crimes hediondos), a limitação dos efeitos é um apanágio do controle de constitucionalidade, e razão jurídica não há para que tal instrumento, veículo mediante o qual a Corte pode integrar ao seu afazer o princípio da segurança jurídica, não seja utilizado também em sede de controle incidental. As normas contidas nos arts. 27 da Lei n. 9.868 e 11 da Lei n. 9.882, ambas de 1999, nesse sentido, menos que instrumentos procedimentais do controle abstrato, convertem​-se em diretrizes interpretativas gerais. Exatamente esse o conteúdo da questão de ordem suscitada pelo Ministro Ricardo Lewandowski quando do julgamento do RE 353.657, Rel. Min. Marco Aurélio (Informativo STF n. 463, 16 a 20-4-2207): (...) Asseverou que o efeito pro futuro, previsto nessas leis, encontra fundamento no princípio da razoabilidade, já que visa tanto reduzir o impacto das decisões do STF sobre as relações jurídicas já consolidadas quanto evitar a ocorrência de um vácuo legislativo, em tese, mais gravoso para o ordenamento legal do que a subsistência temporária da norma inconstitucional. Considerou, por outro lado, que essas normas, na medida em que simplesmente autorizam o STF a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, sem qualquer outra limitação expressa, a rigor não excluem a modulação da própria eficácia subjetiva da decisão, permitindo que se circunscreva o seu alcance, em geral erga omnes, a um universo determinado de pessoas, bem como não afastam a possibilidade de desconsiderar​-se o efeito repristinatório da decisão de inconstitucionalidade sobre o ato revogado (...) Ressaltou que o STF, ao proceder, em casos excepcionais, à modulação dos efeitos de suas decisões, por motivos de segurança jurídica ou de relevante interesse social, realiza a ponderação de valores e princípios abrigados na própria Constituição. Tendo isso em conta, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que os fundamentos, que autorizam a modulação dos efeitos das decisões prolatadas nos processos de índole objetiva, se aplicam, mutatis mutandis, aos processos de índole subjetiva (...) assentou que, embora se esteja tratando, no caso, de processos subjetivos, quando a matéria é afetada o Plenário, a decisão resultante, na prática, surtirá efeitos erga omnes” (grifos nossos) (MENDES e BRANCO, 2014, p. 889).

Conforme a explanação dos mestres, os princípio da razoabilidade e proporcionalidade, aliada a uma ponderação de valores, autorizam a adoção da limitação temporal em casos excepcionais. A autorização legislativa vem para ratificar essa possibilidade.

Não obstante a jurisprudência e a doutrina permitirem o uso da modulação para além das possibilidades expressas na legislação, a mesma deve sempre ser utilizada de maneira excepcionalíssima.

Ora, o instituto permite resguardar os efeitos produzidos por ato ou norma inconstitucional, ou seja, convalidam-se resultados derivados de ato ou norma nulos. Claro que sempre com o intuito de se evitar um dano maior, a partir de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Contudo, não cabe uma banalização da técnica, utilizando-a sempre em hipóteses necessárias. Seu uso deve ser fundamentado em uma situação de exceção.

Do contrário, colocar-se-ia em xeque a própria supremacia constitucional. A reiterada modulação passaria a sensação dela ser uma mera diretriz. Não tendo efetividade real.

Sob esta ótica, Luís Roberto Barroso registra o tamanho da responsabilidade de modular os efeitos temporais:

O art. 27 da Lei n. 9.868/99 produz, como se percebe claramente, a formalização de um mecanismo de ponderação de valores. Mas há aqui uma sutileza que não deve passar despercebida. Poderia parecer, à primeira vista, que se pondera, de um lado, o princípio da supremacia da Constituição e, de outro, a segurança jurídica ou o excepcional interesse social. Na verdade, não é bem assim. O princípio da supremacia da Constituição é fundamento da própria existência do controle de constitucionalidade, uma de suas premissas lógicas (v., supra). Não pode, portanto, ser afastado ou ponderado sem comprometer a ordem e unidade do sistema. O que o Supremo Tribunal Federal poderá fazer ao dosar os efeitos retroativos da decisão é uma ponderação entre a norma violada e as normas constitucionais que protegem os efeitos produzidos pela lei inconstitucional. Como, por exemplo: boa-fé, moralidade, coisa julgada, irredutibilidade dos vencimentos, razoabilidade (BARROSO, 2012, p.216).

O espaço entre uma modulação temporal correta e uma que prejudique a supremacia constitucional é tênue. Não se deve se dela abdicar, visto que é o fundamento de todo ordenamento jurídico.

Em princípio, a técnica da modulação temporal dos efeitos de decisão reserva-se ao Controle Concentrado de Constitucionalidade, em face de disposição legal expressa. Ocorre que, sendo uma situação extrema e caracterizada inequivocamente pelo risco à segurança jurídica ou ao interesse social, abre-se a possibilidade do instituto, mesmo que em controle concreto de constitucionalidade. O STF[4] afirma:

Tendo isso em conta, o Min. Ricardo Lewandowski afirmou que os fundamentos, que autorizam a modulação dos efeitos das decisões prolatadas nos processos de índole objetiva, se aplicam, mutatis mutandis, aos processos de índole subjetiva (STF, RE 353657/PR, rel. Min. Marco Aurélio, 2007).

Considerar como impraticável a modulação temporal em controle concreto vai de encontro a própria finalidade do instituto. Prima-se pelo interesse público excepcional, retirando a obrigatoriedade de sempre seguir o disposto em legislação.

No mundo contemporâneo e nos sistemas jurídicos de hoje resta-se superada a ideia do Judiciário como mero reprodutor das leis. O julgador deve analisar as peculiaridades do caso, a legislação e os princípios, objetivando uma decisão justa, precisa e efetiva.

Por fim, vale destacar que, mesmo antes do advento das leis 9.868/99 e 9.882/99, o Supremo Tribunal Federal, pontualmente, já modulava os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, como consequência da ponderação com outros valores e bens jurídicos que seriam afetados erga omnes de sua sentença:

ADI 837/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 25.6.1999. II. - Os princípios da boa-fé e da segurança jurídica autorizam a adoção do efeito ex-nunc para a decisão que decreta a inconstitucionalidade. Ademais, os prejuízos que adviriam para a Administração seriam maiores que eventuais vantagens do desfazimento dos atos administrativos. III. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV. - RE conhecido, mas não provido (STF, ADI 837/DF, 1999).

Sendo assim, não restam dúvidas quanto à possibilidade de se aplicar a modulação temporal em decisões e casos não previstos em lei.

A jurisprudência do Excelso Pretório cita também o “Estado de Agravamento de Inconstitucionalidade” para validar o uso da limitação temporal:

Aumento da Despesa e Agravamento do Estado de Inconstitucionalidade. A Turma negou provimento a recurso extraordinário em que o recorrente, ocupante de cargo em comissão, pretendia receber complementação dos proventos de sua aposentadoria, correspondente à diferença entre o que percebe do INSS e os vencimentos do cargo no qual se aposentara. Sustentava o recorrente que a Lei 2.241/89, do Município de Mauá, que acrescentou o parágrafo único do art. 147 da Lei 1.046/68, e instituiu limite de tempo para a concessão desse benefício, seria inconstitucional, já que sofrera emenda na Câmara dos Vereadores, a qual, alterando a redação original do projeto enviado pelo Prefeito, reduzira de 15 para 12 anos o aludido limite temporal, o que seria vedado por se tratar de matéria de iniciativa do Poder Executivo, qual seja, regime jurídico do servidor público. Rejeitou-se a alegação de inconstitucionalidade formal do dispositivo, haja vista entendimento do STF no sentido de ser permitido a parlamentares apresentarem emendas a projeto de iniciativa privativa do Executivo, desde de que tais modificações não inovem o tema veiculado no projeto remetido e tampouco acarretem aumento de despesas, em obediência ao disposto no art. 63, I, da CF. Entendeu-se, ainda, que o aumento de despesa não poderia ser invocado para a declaração pretendida, porquanto, se o mencionado artigo fosse retirado do mundo jurídico, desapareceria qualquer exigência de tempo mínimo para a aquisição do benefício pleiteado, o que ensejaria dano muito maior às finanças municipais, agravando o estado de inconstitucionalidade. Por fim, asseverou-se que o recorrente não atingira o tempo mínimo necessário a fazer jus à aposentadoria com proventos integrais, nos termos do dispositivo impugnado (grifo nosso) (RE 274383/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, 2005).

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Mais uma vez a jurisprudência da Corte demonstra que uma declaração de inconstitucionalidade não pode piorar a situação. Seria ilógico e contraproducente.

Luís Roberto Barroso cita alguns exemplos colhidos em decisões do próprio Supremo Tribunal Federal ou em manifestações bem fundadas da doutrina, nos quais a limitação temporal, pautada em circunstâncias excepcionais e de extrema necessidade, deve ser utilizada:

    a) Em nome da boa-fé de terceiros e da teoria da aparência, o STF deixou de invalidar atos praticados por funcionário investido em cargo público com base em lei que veio a ser declarada inconstitucional.

    b) Em nome da irredutibilidade de vencimentos, o STF pronunciou-se, relativamente à remuneração indevida percebida por servidores públicos (magistrados), no sentido de que a “retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional — mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade”.

    c) Em nome da proteção à coisa julgada, há consenso doutrinário em que a declaração de inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes, não desconstitui automaticamente a decisão baseada na lei que veio a ser invalidada e que transitou em julgado, sendo cabível ação rescisória, se ainda não decorrido o prazo legal. Caso se tenha operado a decadência para a rescisão, já não será possível desfazer o julgado.

    d) Em nome da vedação do enriquecimento sem causa, se a Administração tiver se beneficiado de uma relação jurídica com o particular, mesmo que ela venha a ser tida por inválida, se não houver ocorrido má-fé do administrado, faz ele jus à indenização correspondente (BARROSO, 2012, p.34).

Como se percebe, em todos os exemplos dados há hipóteses de interesse público envolvido e situações excepcionais, extraordinárias.

Justamente devido a excepcionalidade da aplicação e sendo a limitação temporal é instrumento tão essencial ao controle de constitucionalidade que parte da doutrina defende a hipótese de ser aplicada até mesmo de ofício. Luís roberto Barroso é um dos defensores da tese: “Por se tratar de uma hipótese de aplicação direta da Constituição, a modulação poderá ser determinada de ofício por parte do Tribunal, sem prejuízo da possibilidade de que seja requerida pela parte interessada”. (BARROSO, 2012, p.216).

Mais uma vez é de se utilizar a ideia da racionalização do Judiciário para defender o pensamento. Se no momento de análise de um caso concreto ficar evidente a necessidade de modulação, tendo em vista interesses sociais e públicos, não há o porquê de não se aplicá-la. Caso contrário, prender-se-ia o Judiciário a um formalismo cego.

Como já exposto, a limitação decorre de situações excepcionais. E em momentos de exceção, deve-se adotar medidas de exceção. Preterindo-se o princípio da inércia em benefício do bem social. Trata-se de uma relativização necessária.

O STF já relativizou um outro ponto. Já admitiu a interposição de embargos de declaração visando alcançar exclusivamente a modulação temporal dos efeitos da decisão.

Deve existir, em regra, pedido anterior formulado nesse sentido. Para o Excelso Pretório há cabimento do citado recurso quando há, na demanda, alguma solicitação no intuito de alcançar a manipulação temporal dos efeitos e a Corte tenha sido omissa. Os embargos serviriam para sanar a omissão.

Contudo, a própria Suprema Corte reconhece que em casos excepcionais tal formalidade deve ser superada em prol da racionalização do sistema jurídico. Na ADI (ED) 3.601-DF conheceu e deu procedência aos embargos interpostos com o intuito único de obter a modulação de efeitos, sem que houvesse qualquer pedido anterior para aplicação da teoria. Segundo o STF foi uma excepcionalidade, justificável diante das peculiaridades do caso:

Reconheceu-se, de início, a jurisprudência da Corte, no sentido de inadmitir embargos de declaração para fins de modulação de efeitos, sem que tenha havido pedido nesse sentido antes do julgamento da ação. Entendeu-se que, no caso, entretanto, a declaração não deveria ser retroativa, por estarem configurados os requisitos exigidos pela Lei nº 9.868/1999 para a modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, tendo em conta a necessidade de preservação de situações jurídicas formadas com base na lei distrital (ADI 3601 ED/DF, rel. Min. Dias Toffoli, 2010).

Bastante concisa essa ideia. Sendo excepcional a modulação temporal, mais excepcional ainda a hipótese de se aceitar sua aplicação com pedido posterior ao julgamento.

Nessa diapasão, a limitação temporal deve possuir requisitos bem elaborados para sua aplicação. A fim de exigir uma fundamentação forte por parte do julgador.

O primeiro requisito deriva da própria lógica do controle de constitucionalidade. O efeito ex tunc é o ordinário da decisão de constitucionalidade. Deste modo, havendo silêncio acerca de qual efeito incide, obviamente se aplica o retroativo, baseando-se na Teoria do Regime de Sanção de Nulidade. Se o julgador desejar aplicar a modulação, dando-lhe efeito diverso, deve expressamente indicar na sentença.

É de se averbar, ainda, que os artigos 27 da Lei nº 9.868/99 e 11 da Lei 9.882/99 exigem outros condições.

De logo, explique-se: da mesma forma que ambos artigos são usados analogicamente para a aplicação do instituto, seus requisitos também são exigidos. 

A lei exige a observância de dois requisitos: um de caráter material, consistente na existência de razões de segurança jurídica ou de interesse social capazes de justificar o afastamento do princípio da nulidade; e um de caráter formal, que é a maioria qualificada de 2/3 dos Ministros.

O segundo é um critério objetivo. Para se aplicar a limitação temporal, no mínimo oito ministros (dois terços da totalidade de 11) devem votar nesse sentido. Refere-se a um critério claro e necessário.

Em regra, seis ministros são suficiente para tomar as decisões do STF. Trata-se da maioria absoluta, vide o art. 97 da CF[5]. Porém, para a aplicação da modulação temporal, faz-se necessária a exigência da maioria qualificada. É um instituto a ser usado em situações de exceção e o convencimento de 2/3 do total de ministros já indica uma real situação extraordinária.

Já o outro requisito apresenta alto grau de abstração, tratando-se de conceitos indeterminados e vagos. No caso concreto o julgador deverá exercer um juízo de valorativo, a fim de decidir é ou não hipótese de modulação. Vejamos a íntegra dos arts. 27 e 11 das leis 9.868/99 e 9.882/99 respectivamente:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado

Segurança jurídica se trata de uma garantia fundamental dos regimes democráticos, que consagra a proteção da confiança e a segurança de estabilidade das relações jurídicas constituídas. Assegurando-se o princípio da boa-fé e confiança, garante-se os efeitos das relações jurídicas, além de respeitar a estabilidade dos atos jurídicos realizados, as situações jurídicas  consolidadas e os direitos já incorporados ao patrimônio do cidadão. Ademais, Sustenta-se a estabilidade social frente às constantes alterações efetuadas no direito. Em síntese: um Estado uniforme e sustentável do ponto de vista jurídico.

José Joaquim Gomes Canotilho traduz com maestria tais princípios:

Os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente para: (1) a proibição de leis retroativas; (2) a inalterabilidade do caso julgado; (3) a tendencial irrevogabilidade de atos administrativos constitutivos de direitos (CANOTILHO, 1995, p. 373)

A segurança jurídica é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, a partir dela os jurisdicionados pautam suas condutas, com prévia consciência das consequências advindas de seus atos.

Luís Roberto Barroso aprofunda:

Modernamente, generaliza-se o entendimento de que a norma não é apenas o enunciado abstrato, mas o produto de sua interação com a realidade. Norma é o produto da interação entre o enunciado normativo e a realidade fática. Nesse ambiente, o Direito é aquilo que o Tribunal competente diz que ele é. Para que as pessoas possam ter previsibilidade nas suas condutas e estabilidade nas suas relações jurídicas, é preciso que esse Direito seja constante (BARROSO, 2012, p.66).

Já o excepcional interesse social pauta-se em preservar os interesses coletivos, de forma que a decisão não se choque com o melhor para a coletividade, e, principalmente, garanta de forma plena os direitos fundamentais. Corresponde a ideia de interesse público, consistente no interesse coletivo primário, garantindo o Estado Democrático de Direito.

Assim, observa-se: a análise dos requisitos materiais deve ser pautada de acordo com as consequências da decisão na sociedade.

Nathalia Masson sintetiza:

Vê-se, então, que o afastamento do princípio da nulidade só ocorrerá quando cabalmente comprovado que a declaração de inconstitucionalidade com efeitos retroativos traria consideráveis danos à segurança jurídica ou a algum outro valor constitucional referente ao interesse social. Não por outra razão, a lei regulamentadora exigiu, por cautela, uma maioria qualificada especial (de dois terços dos votos) para a modulação temporal dos efeitos, o que assegura uma saudável restrição à utilização da manipulação dos efeitos da decisão (MASSON, 2013, p.1041)

Em suma, a modulação temporal se faz mediante um critério de ponderação que levará em conta elementos normativos e fáticos. À luz de princípios como os da segurança jurídica, boa-fé, moralidade.

A Exposição de motivos da Lei 9.868, em relação a seu art. 27, assinada pelo Ministro de Estado da Justiça, Nelson Jobim, com base em parecer elaborado por comissão de notáveis juristas, é cirúrgica em destacar a excepcionalidade do uso do instituto:

Coerente com evolução constatada no Direito Constitucional comparado, a presente proposta permite que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma maioria diferenciada, decida sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro (art. 27). Assim, o princípio da nulidade somente será afastado 'in concreto' se, a juízo do próprio Tribunal, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional.

Entendeu, portanto, a Comissão que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional (grifos nossos).

Em suma, o legislador criou o art. 27 não no sentido de atribuir poderes ilimitados ao STF, mas a fim de criar um instrumento que possibilitasse equilibrar os efeitos de declaração de nulidade e evitando situações de grave insegurança jurídica ou ofensa a algum outro princípio disposto na Constituição Federal - distanciando-se ainda mais da vontade constitucional. Conforme alertou o Ministro Cezar Peluso no julgamento do RE 363.852:

(...)modulação de efeitos em matéria tributária, na prática implica, pura e simplesmente, abolição do instituto de repetição do indébito. Se, em todos os casos de decisão de inconstitucionalidade, em matéria tributária, o Tribunal dispuser que só valerá dali para a frente, a repetição de indébito tributário e a prescrição não servem para mais nada! (STF, RE 363.852, Rel. Marco Aurélio, 2010).

Conforme o trecho demonstra, uma reiteração costumeira do uso da modulação temporal (criada a fim de se evitar danos jurídicos maiores) banaliza-a e cria uma sensação na sociedade de que os demais institutos jurídicos são inócuos.

A fim de se evitar um uso exacerbado do instituto, há limites a sua aplicação.

Como já evidenciado, os requisitos formais e materiais são limites expressos nos artigos 27 da lei 9.868/99 e 11 da lei 9.882/99: a maioria qualificada de 2/3 dos Ministros, a segurança jurídica e o interesse social.

Uadi Lammego Bulos assevera:

Evidente que essa margem de discricionariedade conferida ao Pretório Excelso, para a fixação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, não pode conduzir ao arbítrio, nem ao abuso. Tanto é assim que se condiciona pelo princípio da proporcionalidade (BULOS, 2014, p. 349).

Um ato desproporcional é inconstitucional. Diante disso, a modulação não pode ser aplicada desproporcionalmente.

Para um ato ser proporcional, ele deve ser adequado, necessário e proporcional em sentido escrito. São as três sub-regras da proporcionalidade.

Adequado é o ato apto a alcançar o resultado pretendido; necessário significa o uso do método quando não exista outra alternativa igualmente capaz a construir o resultado com a mesma intensidade; e, por fim, proporcional em sentido estrito seria um sopesamento entre a intensidade da restrição do direito fundamental atingido e a importância da realização deste direito fundamental.

Outro limitação é o princípio da razoabilidade. Define-se como sendo a exigência de compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins.

Luís Roberto Barroso resume perfeitamente o tema:

Quando uma corte de justiça, notadamente o Supremo Tribunal Federal, toma a decisão grave de reverter uma jurisprudência consolidada, não pode (e nem deve) fazê-lo com indiferença em relação à segurança jurídica, às expectativas de direito por ele próprio geradas, à boa-fé e à confiança dos jurisdicionado (BARROSO, 2012, p.66).

Ora, se o Direito como um todo deve respeitar tais diretrizes, por óbvio a Suprema Corte deverá não somente garantir o respeito às mesmas, como também servir de modelo a toda sociedade.

Uma outra limitação decorre de texto expresso da Carta Magna. O inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal afirma que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Tal dispositivo se trata de uma cláusula pétrea, vide inciso IV, do § 4 º do artigo 60 da Norma Fundamental.

Assim, totalmente incabível uma modulação temporal que aplique ao réu um dispositivo gravoso. Seria de uma ilógica absurda, indo de encontro a própria finalidade da técnica.

Uadi Lammego Bulos cita, ainda, a impossibilidade da Corte restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade depois que a decisão for publicada no Diário Oficial. Após isso, a norma já se encontra expurgada da ordem jurídica, não mais havendo a mínima possibilidade de manipular pauta jurídica inexistente. (BULOS, 2014, p. 359).

 

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Sobre o autor
Wilkson Vasco Francisco Lima Barros

Delegado de Polícia de Sergipe Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós graduado em Direito Constitucional e em Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Wilkson Vasco Francisco Lima. A eficácia temporal das decisões no controle judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5030, 9 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54069. Acesso em: 24 abr. 2024.

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