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Responsabilidade civil por perda de uma chance.

A aplicação da teoria no ordenamento jurídico brasileiro e a liquidação do dano

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09/04/2017 às 14:24
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4. A Compatibilização da Teoria da Perda de Uma Chance com o Ordenamento Jurídico Brasileiro

4.1 – Panorama Geral

De acordo com uma interpretação sistemática e teleológica dos dispositivos legais do Código Civil Brasileiro que regulamentam a obrigação de indenizar e em consonância com a Carta Magna é possível considerar aceita a teoria da perda de uma chance como vigente em nosso ordenamento jurídico, mesmo ausente previsão legal nesse sentido.

Antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002 alguns doutrinadores não aceitavam a teoria da perda de uma chance com base no que dispunha os artigos 1537 e 1538 do Código Civil de 1916, que enumeravam os bens protegidos pelo ordenamento jurídico, limitando a atuação do juiz no caso concreto.

Entretanto, o Código Civil de 2002 apresenta uma cláusula geral de responsabilidade civil e da leitura dos dispositivos basilares da obrigação de reparação do dano, artigo 927, caput e parágrafo único[25] e artigo 186[26], não se depreende empecilho para a aplicação da teoria em comento, uma vez que o rol neles previstos não exclui outras reparações.

Merece destaque também o artigo 402[27] e 944[28] do Código Civil que tratam do princípio da reparação integral do dano, o lesado deve obter a reparação de todos os danos por ele suportados. Nesse sentido, por uma medida de adequação à justiça, a chance perdida de obter uma vantagem ou evitar um prejuízo deve ser enquadrada na ideia de dano suportado pela vítima, pois representa um dano injusto que poderia ser evitado se não fosse a conduta do agente.

Atualmente, negar a aplicação da teoria da perda de uma chance é um retrocesso à evolução do instituto da responsabilidade civil que tem cunho solidarista, vez que pauta-se nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da justiça distributiva.

Sérgio Savi argumenta nesse sentido:

“A perda de uma chance, por sua vez, na grande maioria dos casos será considerada um dano injusto e, assim, passível de indenização. Ou seja, a modificação do foco da responsabilidade civil, para a vítima do dano injusto, decorrente da evolução da responsabilidade civil, acaba por servir como mais um fundamento para a indenização desta espécie de dano.”[29]

De toda forma o maior óbice à admissão da teoria da perda de uma chance no ordenamento jurídico pátrio é a dificuldade de se demonstrar o nexo causal entre a conduta do agente e o dano acarretado à vítima, que esbarra na certeza da presença dos pressupostos da responsabilidade civil.

A referida teoria muda o foco lançado sobre a certeza do dano final para o liame de causalidade, mesmo que parcial, entre a conduta do agente e a perda da chance, numa posição claramente voltada para a reparação da vítima que sofreu com um dano injusto. Logo, mostra-se evidente a presença dos pressupostos da responsabilidade civil (conduta, dano e nexo de causalidade).

Por oportuno, frise-se que o que será objeto de indenização é a oportunidade perdida, e não o dano definitivo. Todavia, não se trata aqui de indenização para os danos meramente hipotéticos ou eventuais.

Portanto, hoje, se a conduta de outrem acarreta a perda de uma oportunidade, essa chance dissipada tem valor, e torna-se passível de reparação.

4.2 Posição Doutrinária

A teoria da perda de uma chance vem ganhando destaque e recentemente tem sido objeto de estudos mais profundos. A maioria da doutrina brasileira admite a sua aplicação, porém há posicionamento em sentido contrário.

No passado havia resistência à aplicação da teoria da perda de uma chance por parte de alguns doutrinadores. Em 1956 J. M. de Carvalho Santos se posicionou de forma contrária a aplicação da teoria em comento. O autor ao comentar a possibilidade de indenização pelo fato do advogado não ter apresentado recurso contra sentença desfavorável ao seu cliente afirmou que “parece duvidoso o direito do constituinte, de poder exigir qualquer indenização, precisamente porque não lhe era possível provar o dano.”[30]

Na doutrina moderna Rui Stoco também é contrário à aplicação da teoria da perda de uma chance. Stoco afirma ser inaceitável indenizar a parte quando o causídico deixa de recorrer, ao argumento de que:

“é impossível de se perquirir a íntima convicção do juiz da causa e saber qual seria a sua decisão, sendo a sua admissão o mesmo que aceitar ou presumir que esta seria favorável; implicaria na responsabilização de alguém por um fato que não ocorreu e, portanto, hipotético; e ainda, geraria a reparação pelo resultado em uma obrigação contratual de meios.” [31]

Entretanto, esse não é o posicionamento predominante, restando isolado na doutrina contemporânea.

Já em 1936, José de Aguiar Dias se manifestou favoravelmente à indenização da chance perdida no caso do advogado que por falta de preparo deixou de apelar contra sentença trabalhista desfavorável ao seu cliente, ocasionando um dano. O autor, assim, se posicionou quanto ao dever de indenizar:

“Confundiram-se o ‘an debeatur’ e o ‘quantum debeatur’, por má informação sobre o conceito de dano. Sem dúvida, que este deve ser certo e provado desde logo na ação. Mas o dano, na espécie, era a perda de um direito, o de ver a causa julgada na instância superior.”[32]  

Outra manifestação favorável contundente na doutrina foi em 1955 com Agostinho Alvim. O autor visualizou a possibilidade de indenização por danos patrimoniais em dois casos, mesmo reputando a prova como dificílima. O primeiro caso foi de um competidor que apresentaria um animal raro no certame e deixou-o sob a guarda de outrem, no entanto a pessoa incumbida deixou o animal perecer em um acidente que poderia ter evitado. O segundo caso foi de um advogado que não apelou de uma sentença que o juiz analisou mal as provas.

Agostinho Alvim, então, elucidou o valor da indenização devida nessas hipóteses:

“O crédito valia dez. Suposta a sentença absolutória, que mal apreciou a prova, seu valor passou a ser cinco. Dado, porém, que a mesma haja transitado em julgado, tal valor desceu a zero. O prejuízo que o advogado ocasionou ao cliente, deixando de apelar, foi de cinco.”[33]

Sérgio Novais Dias realizou um trabalho extenso sobre a teoria da perda de uma chance, mais especificamente no caso de responsabilidade do advogado. O autor admite a reparação pela chance perdida quando o causídico deixa de recorrer, sendo o valor da indenização devida pautado no que o cliente deixou de ganhar ou teve reduzido em seu patrimônio.[34]

Entretanto, o referido autor ao tratar da quantificação do dano não foi muito preciso, pois por muitas vezes, inferindo-se dos casos hipotéticos por ele formulados, confunde a indenização pela chance perdida com a indenização do dano final. Indenizações estas que, conforme o exposto no presente trabalho, não se confundem.

Entre os trabalhos mais recentes destaca-se também o de Miguel Kfouri Neto, que trata detalhadamente da aplicação da teoria da perda de uma chance na seara médica e, com base na doutrina francesa, aduz de forma preciosa sobre as condições de aplicabilidade da teoria, a seriedade da probabilidade e a quantificação desta.

Quanto às condições de aplicabilidade da perda de uma chance o autor afirma:

“A chance perdida deve ser ‘séria’, ou ‘real e séria’. É necessário demonstrar a realidade do prejuízo final, que não pode ser evitado – prejuízo cuja quantificação dependerá do grau de probabilidade de que a chance perdida se realizaria.”[35]

Além dos autores supracitados manifestaram-se favoravelmente Judith Martins Costa[36], Sérgio Cavalieri Filho[37] e Sílvio de Salvo Venosa[38], sendo certo que todos afirmam que a chance perdida deve ser séria e real, bem como que o valor da indenização é inferior à vantagem esperada ou ao prejuízo que se pretendia impedir.

Estudos mais aprofundados sobre o tema foram realizados também por Sérgio Savi, Rafael Peteffi da Silva e Fernando Noronha.

Sérgio Savi pautou-se na doutrina italiana para escrever sua monografia que estabelece os critérios e requisitos de aplicação da teoria da perda de uma chance e, assim, somente admite a indenização pelas chances perdidas nos casos em que a probabilidade é séria e superior a 50% (cinquenta por cento) de a vítima alcançar a vantagem esperada.[39]

Rafael Peteffi da Silva, por sua vez, faz uma análise da teoria da perda de uma chance no ordenamento jurídico externo e interno, traçando contornos da aceitação sistemática e dos modelos de aplicação da teoria, para, por fim, realizar uma análise crítica das soluções mais adequadas para o direito pátrio.[40]

Já Fernando Noronha, em sua obra, realizou uma análise profunda sobre a natureza jurídica da perda de uma chance e traçou as condições de aplicação da teoria, ressaltando a necessidade da seriedade das chances perdidas e da consideração da álea ao caso concreto, para, então, quantificar a indenização.[41]

Desta forma, diante do exposto, a grande maioria da doutrina brasileira aceita a aplicação da teoria da perda de uma chance ao direito pátrio, fato que denota sua recepção.

4.3 – Posição Jurisprudencial

Os tribunais brasileiros há pouco tempo tem reconhecido a aplicação da teoria da perda de uma chance, que é de recente interesse também na doutrina pátria, como abordado na seção anterior. Assim, em correspondência com a produção doutrinária o momento é também propício nos tribunais no que tange a aplicação da teoria em comento, utilizada como instrumento útil para o deslinde das ações de reparação dos danos.    

Devido ao fato de ser de aplicação recente em alguns julgados a teoria é aplicada de forma equivocada, sem a observância de seus requisitos de aplicação e critérios de quantificação da indenização, bem como a classificação de sua natureza jurídica é em muito controvertida. Tal fato se dá principalmente em razão dos tribunais não terem tido maior contato com a responsabilidade pela perda de uma chance, assim, é impróprio afirmar que a referida teoria goza de aplicação geral e irrestrita na jurisprudência brasileira.

Em 1990 o Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão da perda de uma chance e negou provimento a indenização pretendida. O caso, julgado pelo ministro Ilmar Galvão, versava sobre uma demanda de reparação em que a autora, Cia. São Paulo de Distribuição de Combustíveis, insurgia-se contra a implantação de postos de abastecimento ao longo da rodovia sem licitação e, portanto, requeria uma indenização pela chance perdida de vencer o processo licitatório.

O ilustre ministro em seu voto afirma ser possível a indenização de mera chance quando essa tem valor econômico, como no caso do exercício do direito de ação. No entanto, entende que no caso em tela o prejuízo alegado pela parte autora é hipotético e, portanto, não deve ser indenizável.[42]

No entanto, parece incongruente a diferenciação entre a chance de vencer uma demanda judicial e a chance de vencer uma licitação, vez que é evidente o valor econômico de ambas. Cabe destacar que a licitação é exemplo de processo aleatório e possui ampla aceitação na jurisprudência internacional a aplicação da teoria da perda de uma chance nesses casos.

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É possível que o eminente ministro não tenha considerado a chance perdida, mesmo tendo valor econômico, em razão do fato da companhia vencer o processo licitatório não apresentar seriedade suficiente, sendo demasiadamente hipotética a chance. O mais importante é que o STJ não fulminou a teoria da perda de uma chance, ao contrário apresentou uma hipótese de aplicação.

No ano de 1997 o Superior Tribunal de Justiça, no recurso especial 32575, julgou demanda idêntica, qual seja, companhia de petróleo que demandava o estado de São Paulo e o departamento de estradas de rodagem do estado por ter concedido à Petrobrás, sem licitação, centros de abastecimento ao longo da rodovia Presidente Castello Branco.

No primeiro momento o juízo democrático decidiu pela carência da ação, pois entendeu não ser possível, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, a indenização pela chance perdida. Apresentado recurso contra tal decisão a terceira câmara cível no Tribunal de Justiça de São Paulo afastou a tese de carência de ação por entender ser hipótese, em tese, indenizável e, portanto, remeteu os autos para novo julgamento monocrático.

Mostra-se evidente que o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou a teoria pelo menos em tese, restando a análise de sua aplicação ou não ao caso concreto.

O novo julgamento acolheu o pedido da parte autora e concedeu indenização a título de lucros cessantes, não ficando claro se a indenização era referente à chance perdida ou ao dano final (lucro líquido auferido pelas estações de abastecimento). Essa decisão foi contestada e o TJ/SP, mesmo não fazendo menção expressa, parece ter utilizado critérios de aplicação da teoria da perda de uma chance, uma vez que fez alusão a perícia técnica que definiu a autora como detentora de 11, 113% do mercado nacional de combustíveis.

Contra a decisão de segundo grau foi interposto recurso especial perante o STJ que com base no artigo 1.059, do Código Civil de 1916, entendeu por bem que a melhor sentença proferida foi a primeira, anulada. O relator, Ministro Ari Pargendler, afirmou que se estaria diante de uma possibilidade de lucro, mera possibilidade, e não se indeniza dano hipotético.[43]

Essa decisão trouxe preocupação quanto à aceitação da teoria da perda de uma chance, pois caso a indenização pela chance perdida fosse considerada como pedido juridicamente impossível e o processo extinto por carência de ação a teoria em comento não encontraria guarida no ordenamento pátrio.

No entanto, no mesmo ano, em 1997, o Superior Tribunal de Justiça no recurso especial 57529 afirmou expressamente a possibilidade de indenização pela chance perdida. No caso uma empresa fabricante de alimentos pleiteou indenização em face da companhia aérea que perdeu sua bagagem, vez que na mala havia amostras necessárias à participação de um certame em outro estado. A vítima requereu, entre outros prejuízos, o valor integral do que ganharia com a venda dos alimentos, alegando que venceria a licitação.[44]

O voto da maioria foi por não conhecer do recurso especial.

Do contrário, o relator, Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, apresentou brilhante análise da aplicação da teoria da perda de uma chance, entendendo pela procedência do recurso e afirmando que o dano deveria ter como parâmetro máximo o montante de 20% do lucro líquido que a vítima alcançaria caso vencesse o processo licitatório.

Merece destaque, ainda, o voto do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que, mesmo votando com a maioria, salientou a admissão da teoria da perda de uma chance no ordenamento jurídico brasileiro, limitando a indenização concedida à vítima aos parâmetros estabelecidos no Código Brasileiro de Aeronáutica.

Desta forma, apesar de não ter sido dado provimento ao recurso especial em comento, este foi fundamental para evidenciar a admissão da teoria da perda de uma chance em nosso ordenamento jurídico.

No entanto foi o recurso especial 788459, julgado em 8 de novembro de 2005, o caso de importância cabal para o reconhecimento da indenização pela chance perdida, o famoso caso do “Show do Milhão”.

Para melhor elucidar o caso cabe transcrever parte do relatório do relator, Ministro Fernando Gonçalves:

“Cuida-se de ação de indenização proposta por ANA LÚCIA SERBETO DE FREITAS MATOS, perante a 1ª Vara Especializada de Defesa do Consumidor de Salvador – Bahia – contra BF UTILIDADES DOMÉSTICAS LTDA., empresa do grupo econômico ‘Sílvio Santos’, pleiteando o ressarcimento por danos materiais e morais, em decorrência de incidente havido quando de sua participação no programa ‘Show do Milhão’, consistente em concurso de perguntas e respostas, cujo prêmio máximo de R$1.000.000,00 (hum milhão de reais) em barras de ouro, é oferecido àquele participante que responder corretamente a uma série de questões versando conhecimentos gerais. Expõe a petição inicial, em resumo, haver a autora participado da edição daquele programa, na data de 15 de junho de 2000, logrando êxito nas respostas às questões formuladas, salvo quanto à última indagação, conhecida como ‘pergunta do milhão’, não respondida por preferir salvaguardar a premiação já acumulada de R$500.000,00 (quinhentos mil reais), posto que, caso apontado item diverso daquele reputado como correto, perderia o valor em referência. No entanto, pondera haver a empresa BF Utilidades Domésticas Ltda., em procedimento de má-fé, elaborado pergunta deliberadamente sem resposta, razão do pleito de pagamento, por danos materiais, do quantitativo equivalente ao valor correspondente ao prêmio máximo, não recebido, e danos morais pela frustração de sonho acalentado por longo tempo.”[45]

O processo ora em análise na 1ª instância foi julgado procedente e o juiz condenou a empresa ré ao pagamento da integralidade da vantagem esperada, ou seja, R$500.000,00 (quinhentos mil reais), não considerando que a vítima estava em um processo aleatório, e sim que fosse absoluta a chance de acertar a questão. Do mesmo modo entendeu o Tribunal de Justiça da Bahia, que confirmou a decisão.

De outro modo, o STJ acatou a tese de defesa e aplicou a teoria da perda de uma chance ao caso, haja vista que a autora tinha mera possibilidade de acertar a última pergunta, Desta forma, como a última questão era uma pergunta múltipla escolha com quatro opções, a vítima tinha 25% de chances de ganhar o prêmio de R$500.000,00 (quinhentos mil reais), logo, a chance perdida valia R$125.000,00 (cento e vinte cinco mil reais).

O acórdão em comento ratifica o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de aceitação da teoria da perda de uma chance pelo ordenamento jurídico brasileiro. E deixa claro que a referida teoria ainda está se solidificando, vez que sua aplicação só foi reconhecida em última instância.

A teoria da perda de uma chance também foi amplamente aceita em recentes decisões da Ministra Nancy Andrighi. Um desses julgados foi o recurso especial 1079185, julgado em 11 de novembro de 2008, que trata do caso clássico de chance perdida pela falha do advogado em apresentar recuso tempestivamente.

A decisão é no sentido de que o autor não merece indenização, pois o fim almejado foi alcançado em demanda posterior, não ocorrendo a perda definitiva da chance. Importante destacar que o acórdão afirma que a chance perdida não está incluída como espécie de dano moral, mas sim de dano patrimonial.

Desta forma, o Superior Tribunal de Justiça, bem como os tribunais estaduais contam com inúmeros julgados reconhecendo a aplicação da teoria da perda de uma chance, no entanto não é pacífica a classificação quanto à sua natureza jurídica e em muitos casos há equívocos conceituais graves.

4.3.1 – A jurisprudência brasileira e a natureza jurídica das chances perdidas

Em consonância com as jurisprudenciais apresentadas observa-se que os tribunais brasileiros têm passado longe da discussão acerca das considerações do nexo de causalidade das chances perdidas, bem como não tecem comentários embasados quanto a sua natureza jurídica.

A falta de menção a utilização da teoria da causalidade parcial, por exemplo, mostra-se evidente na apelação cível nº 70019804335, julgada em 23 de agosto de 2007 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

O processo tratava de um estabelecimento comercial que foi assaltado e, portanto, obteve graves prejuízos. Durante o assalto os alarmes de segurança não funcionaram e em razão disso a empresa furtada ajuizou ação em face da empresa fornecedora de alarmes por danos emergentes, equipamentos furtados, e lucros cessantes, projetos que estavam dentro dos computadores subtraídos.

Tal situação é muito semelhante a casos franceses em que ocorria falha no sistema de alarmes. Nessas hipóteses a Corte de Cassação Francesa entendeu que o processo aleatório em que se encontrava a vítima não é totalmente exterminado pela falha no funcionamento dos alarmes, vez que a entrada dos meliantes poderia ter sido barrada por policiais ou por outro equipamento de segurança. Nesse contexto, utilizaram a teoria da causalidade parcial para fundamentar a indenização pela chance perdida.[46]

De forma diversa o tribunal gaúcho entendeu certa e direta a relação de causalidade entre falha do alarme e o roubo ocorrido no estabelecimento comercial, assim, caso o sistema de alarmes tivesse funcionado ocorreria a interrupção da conduta delitiva. Portanto, não utilizou a teoria da perda de uma chance para fundamentar a indenização pelos danos sofridos.

Em outros casos alguns julgados confundem hipóteses em que a perda de uma chance deve ser considerada como espécie de danos extrapatrimoniais com as hipóteses em que possui valor econômico e, portanto, tem natureza patrimonial.

Tal fato se mostra evidente na apelação cível nº 70003568888, julgada em 27 de novembro de 2002, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O caso versa sobre os danos sofridos pelo um ex-funcionário da empresa ré, que teve informações inverídicas e desabonatórias espalhadas por esta a eventuais futuros empregadores. O acórdão afirma encontrar-se o prejuízo sofrido na esfera dos danos morais, e não danos patrimoniais.

Todavia, essa não é a melhor aplicação da teoria da perda de uma chance. Não há nexo de causalidade seguro entre a conduta da ré (informações prestadas) e a vantagem esperada pela vítima (emprego), vez que aquele que busca um emprego encontra-se em um processo aleatório. No entanto, caso a perda da chance seja verificada essa se trata de dano patrimonial, pois a perda da possibilidade de obter um trabalho remunerado repercute na diminuição do patrimônio da vítima.

A razão de a jurisprudência brasileira vir arbitrando danos extrapatrimoniais talvez seja a dificuldade em quantificar certos danos patrimoniais pela perda de uma chance. Afinal, danos extrapatrimoniais obedecem a critérios menos rígidos e estão sujeitos a maiores subjetivismos na sua quantificação por parte dos magistrados.

O mesmo ocorre principalmente nos casos de responsabilidade civil de advogados, a vantagem esperada pelo cliente quase sempre constitui um benefício patrimonial, entretanto os tribunais optam por uma indenização por danos morais, tendo como fundamento a frustração da expectativa do cliente.

Nesse sentido manifestou-se o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro na apelação cível nº 2003.001.19138, julgada em 7 de outubro de 2003, na qual uma pessoa jurídica demandou seu antigo advogado pela perda da oportunidade de recorrer de uma sentença trabalhista.

O relator, Desembargador Ferdinaldo Nascimento afirmou:

“estabelecida a certeza de que houve negligência do mandatário, o nexo de causalidade e estabelecido o resultado prejudicial, demonstrado está o dano moral, haja vista que, segundo a doutrina majoritária, o dano moral advém do próprio fato.”[47]

A perda do prazo para a interposição de recurso por parte do advogado em nada afeta a honra da pessoa jurídica. Além disso, a relação entre o advogado e seu cliente é contratual, logo, o dano sofrido é patrimonial.

Como bem leciona Sérgio Cavalieri Filho os aborrecimentos decorrentes do descumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato não geram danos extrapatrimoniais, exceto se repercutirem na dignidade da vítima.[48] Assim, a indenização por dano moral mostra-se como meio para fugir das dificuldades de quantificar os danos patrimoniais pela perda de uma chance.

Cabe destacar que o inconformismo somente tem espaço nos casos em que há grandes chances da demanda receber tratamento diverso pela instância superior do que foi dado pela inferior. Portanto, a possibilidade de ocorrer dano moral nos casos de responsabilidade civil do advogado não guarda relação com a maior ou menor probabilidade da decisão ser reformada, e sim com a natureza do bem pretendido pela tutela jurisdicional.

Do mesmo modo há julgados que classificam a indenização pela perda de uma chance como sendo espécie de lucros cessantes.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assim entendeu na apelação cível nº 0010705-71.2004.8.19.0209, julgada em 26 de setembro de 2007, em que a autora pleiteava indenização pela vantagem não obtida de um contrato de franquia que foi rescindido unilateralmente pela empresa contratante.

Assim, concluiu a relatora Desembargadora Cristina Tereza Gaulia:

“Enquanto os lucros cessantes reintegram aquilo que o sujeito razoavelmente deixou de lucrar; a perda da chance foca o ressarcimento da perda de uma oportunidade com grande potencial de vir a se realizar, causada pela intervenção ilícita de outrem, mas aferível independentemente do possível resultado.

A perda da chance, portanto, é espécie do gênero lucros cessantes e sob tal ótica deve ser aqui contemplada.”[49]

Portanto, da análise dos julgados brasileiros verifica-se a alternância da classificação da natureza jurídica da chance perdida, ora classificando-a como dano moral, ora como lucro cessante e ainda como meio termo entre as espécies existentes. Isso se dá em razão da recente abordagem sobre o tema na doutrina e, principalmente, na jurisprudência, que ainda é muito superficial.

4.3.2 – A jurisprudência brasileira e a análise da seriedade das chances perdidas

No tópico anterior verificou-se que a jurisprudência brasileira em muitos casos confere indenização por danos morais, quando na verdade o dano é evidentemente patrimonial ou enquadra a perda de uma chance como espécie de lucros cessantes. Em verdadeira afronta a uma melhor análise da natureza jurídica do instituto e seus critérios de aplicação.

No entanto, no que tange à análise pormenorizada da probabilidade da vítima alcançar a vantagem esperada, esta é feita com acuidade em casos em que a indenização é negada por falta de seriedade mínima das chances perdidas.

Um bom exemplo é o recurso especial 1104665, julgado em 9 de junho de 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça. O caso versava sobre um pedido de indenização em decorrência de erro médico que acarretou a morte do paciente, sendo que o Tribunal de origem reconheceu a inexistência de culpa e de nexo de causalidade entre a conduta do médico e o dano causado ao paciente, morte.

Cabe salientar o voto do relator, Ministro Massami Uyeda, no que toca à teoria da perda de uma chance:

“A chamada ‘teoria da perda da chance’, de inspiração francesa e citada em matéria de responsabilidade civil, aplica-se aos casos em que o dano seja real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável;

In casu, o v. acórdão recorrido concluiu haver mera possibilidade de o resultado morte ter sido evitado caso a paciente tivesse acompanhamento prévio e contínuo do médico no período pós-operatório, sendo inadmissível, pois, a responsabilização do médico com base na aplicação da ‘teoria da perda da chance.’”[50]

Importante destacar também a apelação cível nº 2003.001.16359, julgada em 22 de julho de 2003 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O autor da demanda alegava dano material gerado pela injustificada inscrição de seu nome no cadastro de maus pagadores, sendo que esse fato ocasionou a negativa de um empréstimo, o que lhe trouxe danos materiais.

O relator, Desembargador Maldonado de Carvalho quanto à aplicação da teoria da perda de uma chance, assim, se manifestou:

“A jurisprudência francesa, em determinadas situações tem adotado, desde 1985, a teoria da perda de uma chance (pert d’une chance). Na pert d’une chance, todavia, o fato ilícito e culposo deve contribuir, de forma direta, para que outrem perca uma chance de conseguir um lucro ou de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo.

Contudo, é necessário que a chance perdure seja real e séria, tendo-se em conta, também, na avaliação dos danos, a álea susceptível de comprometer a chance: leva-se em consideração, quanto à prova, o caráter atual ou eminente da chance de que o autor alega ter sido privado.

No caso em exame, o primeiro apelante não trouxe aos autos qualquer documento, qualquer outra prova indicativa de que, de fato, as tratativas com a CEF se encontravam em estágio avançado, a tal ponto poder ser afirmado que a concessão do empréstimo era, sem qualquer dúvida, uma chance real e séria.

A mera expectativa, a simples eventualidade, o decadente esperado não tipificam, por certo, a chance perdida, a perda irreparável.”[51]

Por fim, cabe ressaltar que a questão ainda um pouco nebulosa na jurisprudência brasileira é a distinção entre o dano representado pela perda da chance e o dano da vantagem não atingida, o dano final.

É fundamental destacar que na perda de uma chance a conduta do agente não é condição necessária para o acontecimento do dano final, e sim para a perda da chance de auferir a vantagem almejada. Portanto, a indenização deve ser pautada na chance perdida, e não no dano final, como vem ocorrendo em muitos de nossos julgados.

Crucial é a questão da quantificação da indenização pela chance perdida, que será tratada no capítulo que segue. 

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YOUNG, Beatriz Capanema. Responsabilidade civil por perda de uma chance.: A aplicação da teoria no ordenamento jurídico brasileiro e a liquidação do dano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5030, 9 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54079. Acesso em: 23 abr. 2024.

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