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O crime organizado:

diligências investigatórias do Ministério Público

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12/07/2004 às 00:00
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Formas de Controle do Crime Organizado

2.1.Política Criminal

2.1.1.Considerações Preliminares

O dogmatismo imperante do positivismo jurídico faz com que os legisladores preocupem-se mais com a sistematização e interpretação das normas do que com sua efetividade e aplicação prática. Tal fato deve-se, em grande parte, pela incidência normativa prescrita no art. 5º, § 1º da Constituição Federal do Brasil, a qual garante eficácia direta e imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais [48].

Isso tem levado os dogmáticos a buscar a elaboração de conceitos e sistemas lógicos, encetando, como afirma García-Pablos de Molina [49], o isolamento do Direito "(...) da realidade social, de suas necessidades, configurando-se uma Ciência do Direito valorativamente neutra e reacionária, desde o ponto de vista político".

Há, então, uma hipertrofia do pensamento lógico-sistemático, uma supervalorização do mesmo, o que dificulta uma postura crítica em relação ao direito.

Francisco Muñoz Conde [50] atenta ao desenvolvimento de um pensamento problemático o qual vem sendo desenvolvido nos últimos tempos, e, por fim, defende uma síntese dialética entre o pensamento crítico e o sistemático: "O pensamento problemático, se quer manter o caráter científico da atividade jurídica, tem que desembocar em um sistema; e o pensamento sistemático, se que encontrar a solução justa para o caso concreto, tem que estar orientado para o problema".

2.1.2.Uma nova Metodologia Penal?

Como já dito na concepção de um enquadramento legal às "organizações criminosas", é importantíssimo o papel desempenhado pela política criminal junto ao direito Penal. De acordo com a concepção funcionalista do Direito Penal de Claus Roxin [51], Jorge Figueiredo Dias aponta que cabe à política criminal, hoje em dia, definir "o se e o como da punibilidade, isto é, nesta acepção, os seus limites; e porque (de algum modo, conseqüentemente) os conceitos básicos da doutrina do fato punível, muito para além de serem ‘penetrados’ ou ‘influenciados’ por considerações político-criminais, devem pura e simplesmente – e foi mérito indeclinável de Roxin tê-lo posto em evidência – ser determinados e cunhados a partir de proposições político-criminais e da função que por estas lhes é assinalada no sistema" [52].

Luiz Flávio Gomes [53] defende que a postura isolacionista do Direito Penal nos últimos tempos deve ser abandonada: "o método adequado para o estudo da Ciência Penal não pode deixar de lado a Política Criminal". Ademais, entende que não pode a Criminologia ser desprezada, o que ensejaria uma postura reunificadora entre essas três ciências. Isso representaria a interação da Criminologia (empírica e interdisciplinar) com a Política Criminal (decisionista) e com o Direito Penal (caráter normativo e legal).

Não pode tal método aliar essas ciências e deixar de considerá-las isoladamente. É importante ressaltar que elas não podem perder sua autonomia investigativa, pois assim perderiam seu próprio objeto. Ademais, deve sempre o Direito Processual Penal ser considerado, pois este detém a instrumentalidade necessária para que o direito material seja aplicado [54].

Por fim, todos os ângulos devem ser considerados no estudo do fenômeno da criminalidade, a fim de que haja uma interação entre essas ciências, estando a dogmática, ao interpretar e sistematizar o direito positivo, a desempenhar o seu exame crítico e atenta às posturas político-criminais, "até onde o jus positum permita" [55]. Deve a ciência penal se valer de todas as ciências que estudam o fenômeno criminal, a fim de que cada ciência possa levar uma luz ao estudo do fenômeno da criminalidade como um todo.

2.1.3.Política Criminal para o Crime Organizado

O surgimento, a documentação, enfim a constatação da existência de atividades criminosas desempenhadas por pessoas de forma organizada enseja a rápida e constante repressão por parte das autoridades imbuídas de tal atribuição, que se dá na forma dos procedimentos investigatórios, na descoberta da autoria do crime, sua comprovação e a conseqüente atividade jurisdicional a fim de punir o ilícito penal.

Por outro lado, antes de uma ação governamental que vise combater focos já existentes dessa "chaga", há medidas as quais podem ser tomadas a fim de controlar o crime organizado quando este ainda é incipiente.

Esses dois meios de combate ao crime organizado – repressão e prevenção – são as vias político-criminais de reação utilizadas hodiernamente [56].

2.1.3.1. Notas sobre o Crime Organizado na Itália

Inicialmente, é necessário frisar que a Itália é largamente conhecida, quando se fala em crime organizado, pela atividade da máfia siciliana, a qual, como um polvo, alongou seus tentáculos para a Itália continental e, utilizando-se, por vezes, dos canais legais de imigração, para outras partes do mundo [57].

No sistema italiano, entende-se por organização do tipo mafioso:

A formada por três ou mais pessoas, em que os que a integram se valem da força de intimidação do vínculo associativo e da condição de sujeição e silêncio que dela deriva para cometer crimes, para adquirir de modo direto ou indireto a gestão ou o controle de atividades econômicas, de concessões, autorizações, empreitadas e serviços públicos, ou para auferir proveitos ou vantagens injustas para si ou para outrem [58].

Vê-se que a legislação italiana, diferentemente da brasileira, propôs-se em definir pormenorizadamente o que lá é entendido por "organização criminosa". Destaca-se o importante aspecto corruptivo das "sociedades mafiosas" na tipificação, especialmente o caráter econômico e político, além de características específicas, como a lei do silêncio – omertá – e a coercibilidade – a possibilidade do uso da força – também entre os próprios membros da associação. Walter Maierovitch [59] acusa que o termo máfia não deve apenas ser aplicado na Itália. Ele seria um modelo de organização criminosa que poderia ser adotado em diversos países diferentes; tem como característica a dedicação a atividades marcadamente criminosas, como tráfico de drogas, prostituição, jogos de azar, além do financiamento de atividades econômicas lícitas com o produto dos crimes; Esse gênero consiste em várias espécies, tais como a Tríade Chinesa, a Cosa Nostra italiana, o Comando Vermelho no Brasil e, tão conhecidas como sua vertente original, as máfias dos Estados Unidos, ou U.S. Máfias.

Com a crescente onda de criminalidade na Itália, foi instituída a Operação Mãos Limpas contra as máfias [60]. A legislação italiana de combate ao crime organizado enveredou por estas principais vertentes: leis anti-terrorismo; leis anti-seqüestro; leis anti-máfia e medidas de proteção aos que colaborem com a justiça, a chamada delação premiada. Ademais, essas leis criaram a figura do arrependido, em que o agente, antes da sentença condenatória, dissolve a organização criminosa, e do dissociado, em que o agente, por todos os meios possíveis, procura diminuir as conseqüências nefastas do seu crime.

Houve mudanças no Código Penal, no estatuto de ritos, na lei de execuções penais e em vários aspectos administrativos dos órgãos governamentais. Muitas medidas urgentes foram levadas a efeito na Itália, destacando-se, dentre outras: o agravamento das penas; a polícia judiciária obteve ampliação nos seus poderes de investigação, podendo fazer revistas em meios de transportes, bens pessoais e bagagens, tudo isso sem prévia ordem judicial, apenas com a anuência do Ministério Público; encarceramentos preventivos obrigatórios e a ampliação do prazo da prisão preventiva; possibilidade de seqüestro de bens apenas com meros indícios da desproporção entre o nível de vida e os rendimentos declarados, com a inversão do ônus da prova; em caso de extorsão mediante seqüestro, o Ministério Público requer o arresto dos bens do seqüestrado, do cônjuge e dos parentes e afins por um ano, prazo que pode ser prorrogado; utilização ampliada da prova emprestada, dentre outras medidas [61].

Essas medidas foram amplamente aplaudidas quando do seu implemento, porém logo houve uma divisão entre aqueles que eram favoráveis aos métodos utilizados – juízes e promotores – de um lado, por entenderem que tais métodos eram a única maneira de debelar a criminalidade organizada na Itália, e os que eram contra – advogados e juristas [62], por entenderem que estava havendo violação patente às garantias constitucionais fundamentais. Logo medidas de efeitos dúbios em relação ao respeito à ordem constitucional foram revogadas, tais como a restauração da prisão preventiva a seu patamar original e um controle sobre a delação premiada, a fim de evitar informações falsas, as quais poderiam trazer inúmeros prejuízos tanto para os delatados como para os delatores [63].

Ainda que o modelo italiano peque por vícios contra a ordem constitucional, tendo em vista a rápida resposta pretendida pelo Estado aos anseios da população como um todo, é necessário frisar ter havido a criação de um sistema que, se não completo, foi bastante abrangente, envolvendo aspectos penais, processuais e administrativos, como a criação do Alto Comissariado para a coordenação da luta contra as máfias e a criação da Subprocuradoria, no Ministério Público, para a coordenação das ações de investigação em processos relativos às organizações criminosas. Os resultados positivos da "operação mãos limpas", a par das críticas, só foram possíveis com a reestruturação tanto do Ministério Público como da polícia judiciária, estando esta sobre a supervisão daquele, os quais atuaram e atuam em conjunto.

2.1.3.2. Direito Penal de Emergência ou de Exceção

Vê-se que a resposta italiana ao combate da criminalidade organizada, inspiradora, em parte, da brasileira, efetivou-se através de medidas de urgência, com caráter emergencial.

Segundo o jurista italiano Luigi Ferrajoli [64], deve entender-se por direito penal de emergência duas coisas: uma jurisdição de exceção e uma legislação penal excepcional frente à Constituição. Nesta, com relação ao crime organizado na Itália, tem-se uma disciplina processual diferente da utilizada para processos normais. Com esses dados, leva-se a crer que a cultura emergencial criada no seio da população condicionou a "instrumentalidade da justiça", maculando o Direito Penal com uma forte crise constitucional, para não falar em crise existencial. Estaria a Itália mergulhando em um neo-absolutismo?

Hassemer [65] aponta que a política adotada contra o desenvolvimento da atividade criminal sempre foi "orientada por ideais políticos", sendo a intervenção estatal italiana não pautada pelos canais jurídicos e sim tendo uma legitimação política. A pedra angular do direito de emergência passaria a ser o bem estar do Estado. Há uma busca por uma rápida punição por parte do Estado, principalmente em casos explorados exaustivamente pela mídia. Existe uma reação "simbólica" consagrada em duas vertentes: supressão de direitos e garantias fundamentais e aumento de pena, como foi o caso, no Brasil, com a Lei 8.072/90 e o posterior enquadramento do homicídio qualificado como crime hediondo.

Medidas devem ser tomadas no combate ao crime organizado. Tais medidas, ainda que percorram uma tênue linha entre a violação dos direitos e garantias individuais e a manutenção da ordem social, buscam o bem estar da sociedade como um todo e devem, sem embargo de qualquer dúvida, ser colocadas frente às circunstâncias vividas pelo país, tendo em mente os aspectos sócio-políticos, jurídicos e culturais atuais.

A criminalidade é um dos maiores males que assolam diversos países. O cidadão, como indivíduo, sente um prejuízo em relação a sua pessoa. Tal prejuízo, no entanto, é experimentado por outros indivíduos da sociedade, os quais, em um sentimento de repúdio, impotência e expectativa, compartilham a necessidade pela busca de medidas urgentes, por vezes extremas – e que por isso não devam perdurar muito no tempo – a fim de combater a criminalidade organizada. Tal via deve ser estudada com cautela. As motivações estatais não podem apenas ter como pretexto os ideais políticos almejados pelo Estado, sem levar em conta os meios legais existentes. As ações políticas devem ser pautadas em um regime constitucional democrático, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais. Se o clamor social não for filtrado frente à ordem constitucional vigente, corre-se o risco do cometimento de injustiças, de uma inevitável barbárie, de um retrocesso ao tempo da Inquisição na Idade Média. "Uma coisa é o político-criminalmente ‘desejado’, outra bem diferente é o jurídico-constitucionalmente possível" [66] O modelo italiano de medidas emergenciais acabou como um dragão que engoliu sua própria cauda. Ainda que a realidade da península adriática seja diferente da brasileira, é certo que o Estado Democrático, tanto lá como aqui, conta com instrumentos específicos de medidas emergenciais (estado de guerra, de sítio, de emergência). Por isso, apenas as formas de quebra das garantias individuais reguladas ou permitidas pela Constituição, i. é., que não sejam inconstitucionais, e de acordo com o princípio da proporcionalidade, devem ser perseguidas [67].

2.1.3.3. A Resposta Brasileira ao Fenômeno da Criminalidade Organizada

É inegável a existência do crime organizado no Brasil. A par das notórias formas de manifestação dessa criminalidade, como na extorsão mediante seqüestro, na lavagem de dinheiro, e no tráfico de drogas [68], formas de ações criminosas ditas recentes vêm preocupando em demasia as autoridades locais e internacionais [69].

O destaque especial deve ser dado à pirataria, negócio que, de acordo com o Comitê Interministerial de Combate à Pirataria, do Ministério da Justiça [70], em todo mundo, movimenta quatrocentos e cinqüenta bilhões de dólares por ano, o que equivale ao PIB brasileiro e representa 9% do comércio mundial. No Brasil, estima-se que a perda de arrecadação tenha chegado a cinco bilhões de reais em 2002. O mais impressionante é que esse montante tenha quadruplicado na década de 90. Ainda que tenha existido a pirataria em outras épocas, é notável que a explosão dessa prática tenha ocorrido após a revolução tecnológica e a introdução em massa dos computadores de uso pessoal no lar dos consumidores, especialmente nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

O que se verifica é que a pirataria demanda um investimento primário muito baixo e dá resultados a curto prazo, o que atrai os chefes do crime organizado [71]. Ademais, a realidade demonstra que maior força de combate a esse crime tem sido através da publicidade e não da repressão policial, que apenas em ações esporádicas atuam para dar um senso de preservação à população.

O cenário para a atuação das organizações criminosas, então, fica formado. Os resultados da pirataria são lucro em uma razão de milhões de reais, então se tem que esse filão representa um grande investimento na empresa do crime organizado.

Ocorre que o simples ganho de capitais, pelas organizações criminosas, não é a única trilha de crimes por elas cometidas. O crime organizado, além de ser complexo em sua definição, tem um certo montante de tipos penais associados. Todos com um fim: o enriquecimento ilícito. Agora, onde é escondido o produto do crime? Como fazer esse dinheiro "sujo" circular? Assim surge a lavagem de dinheiro. Uma maneira ilícita de legalizar o produto final do crime [72].

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Apenas recentemente vem o Brasil adotando uma postura mais agressiva contra a "lavagem" de capitais. O Governo Federal pensa na reestruturação de alguns de seus órgãos e toma medidas que atingirão a população, como a obrigação imposta aos bancos de identificar depositantes que realizem operações com valores altos, a regulamentação de saques na boca dos caixas e até mesmo a decretação de bloqueio administrativo de ativos financeiros de pessoas sob investigação. Tal plano está sendo estruturado com participação efetiva do Banco Central, o qual, a partir da reestruturação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf, criará o cadastro geral de correntistas, cuja finalidade é evitar que as informações pedidas ao Banco Central sejam vazadas aos investigados [73]. Concretizando esses planos, no dia 15 de agosto de 2003 foi criada na Polícia Federal a Diretoria de Combate ao Crime Organizado, à qual se subordinam delegacias especializadas em lavagem de dinheiro, pois, segundo o Diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, a instituição partiu do pressuposto de que o crime organizado existe por causa da lavagem de dinheiro [74].

Além dessas medidas, no Brasil alguns diplomas legais foram criados para combater as práticas das organizações criminosas. A Lei nº 7.492/86, chamada de Lei dos Crimes de Colarinho Branco; a Lei 9.034/95, de combate ao crime organizado; a Lei 9.613/98, a qual tipifica a lavagem de dinheiro e outros mais diplomas legais não visam à garantia de uma ação preventiva como resposta ao apelo da sociedade. Depreende-se que a resposta dada, em relação à criminalidade no Brasil, é eminentemente repressiva. Muitas vezes confundindo esse apelo, o governo crê no estabelecimento tão só de medidas retributivas como remédio à situação calamitosa provocada pelas organizações criminosas.

2.1.3.3.1. Um "Combate" Concomitante

Apesar dos esforços e recursos angariados pelas autoridades governamentais, constata-se o fracasso, após anos de planejamento e estudo, no combate ao narcotráfico [75], como um exemplo de que não apenas a repressão deva ser o cerne da preocupação atual da política-criminal.

A prevenção dar-se-ia de três formas, segundo a moderna Criminologia [76]: a primeira é uma concentração na raiz dos problemas, onde seria importante uma política social de investimento em, primeiro lugar, educação, inclusão social, trabalho, saúde etc.; a segunda seria uma criação de obstáculos à atividade criminosa, não se concentrando nas causas, como a existência de mais policiais, mais segurança, em uma forma na qual a sensação psicológica de proteção seria enfatizada; a terceira só interviria quando do já cometimento do crime, como medidas que visassem a não reincidência do criminoso.

A segunda forma de prevenção peca no sentido de garantir uma falsa sensação de segurança à sociedade, podendo provocar, em um curto período de tempo, o deslocamento da criminalidade para áreas menos protegidas. A terceira é um modelo retardado e tardio de prevenção. O ideal, sem dúvida, é o estabelecimento de uma política criminal preventiva concentrada no primeiro modelo, pois segundo a frase atribuída a Pitágoras, "educai as crianças e não será preciso punir os homens", porém a sociedade pede respostas rápidas ante um fenômeno ultimamente tão notório como o crime organizado. Infelizmente essas respostas rápidas sempre foram utilizadas e sem muito sucesso [77]. Isso não significa que não devam mais ser usadas, mas essas reações serão apenas paliativas se não existir um rígido controle que vise à prevenção do crime organizado no seu nascedouro.

Francisco de Assis Toledo [78] defende que para "crimes de especial severidade", atos de grande violência onde se empregam meios cruéis, deva haver um tratamento penal também especial, "sem se cair na radicalização da Lei de Crimes Hediondos", a qual ele considera excessiva. Ao lado desses crimes de especial gravidade, há delitos praticados por meio de artimanhas, fraudes, engodos, falsificações, abuso de confiança etc. São em geral os delitos financeiros e econômicos, os crimes de colarinho branco, furto, estelionato, apropriação indébita, crimes contra a Administração Pública etc. São os chamados "crimes de ação astuciosa". O Ministro do Superior Tribunal de Justiça milita por uma política criminal diferente para cada espécie de delito, pois têm bens jurídicos diferentes sob proteção. No primeiro caso, a intervenção deve ser na repressão e prevenção de crimes que ameaçam a própria sobrevivência do indivíduo em sociedade; o segundo, há a necessidade de proteção à paz pública e à segurança dos indivíduos que estão sob os auspícios do Estado.

Vê-se, pelo que já foi apresentado, que o crime organizado compreende ambas as espécies de delitos: os violentos e os "astuciosos". A repressão e a prevenção penais devem ser feitas no sentido de reservar a pena privativa de liberdade aos casos mais graves e para aqueles em que outras formas de medidas se revelem insuficientes; nos outros casos, penas alternativas aptas a produzir resultados deveriam ser usadas, tais como o confisco de bens, a multa e a interdição de direitos, a perda de cargo ou emprego público etc.

De todo modo, a resposta do Estado para o controle da criminalidade não pode apenas se dar no aspecto legislativo. A Lei 8.072/90, a qual visa punir com mais severidade os crimes considerados hediondos, existe há treze anos e não acabou com o crime.

A repressão com leis mais severas só terá efeito se houver uma "motivação" às pessoas para que elas ajam "de acordo com a lei" e essa motivação é uma rápida e eficiente aplicação da norma penal, pois como escreveu Beccaria [79], "não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo. (...) A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade". Luiz Flávio Gomes [80] também defende essa tese, recomendando cuidado em sua aplicação:

Aplicar a lei penal com rapidez, no entanto, ao contrário do que os desavisados possam supor, não pode significar a eliminação dos direitos e garantias fundamentais da pessoa processada. É sempre fundamental, principalmente dentro do moderno Estado Constitucional de Direito, conciliar o interesse da justiça (de punir rapidamente) com os interesses básicos do acusado (devido processo legal, direito de defesa, autonomia da vontade etc.). E ainda, como prega a moderna Criminologia, são sumamente relevantes também os interesses da vítima e da sociedade. Um novo modelo de justiça criminal, claramente resolutivo e comunicativo, tem que se preocupar com a compatibilização dos múltiplos interesses e expectativas gerados pelo atual modelo de distribuição de Justiça.

Quis aqui dizer o autor que a pena deve ser justa, aplicada com rapidez e de modo infalível. Justa, para L. F. Gomes, é a pena proporcional ao delito [81], posição que deve ser defendida e mantida a fim de se evitar abusos autoritários. De forma velada, o autor se referiu também ao princípio da proporcionalidade na aplicação das leis restritivas de direitos, pois segundo esse princípio, os direitos fundamentais gozam de certa relatividade, em face da necessidade de se proteger outros direitos fundamentais [82].

Enfim, o controle do crime organizado não pode deixar de levar em conta tanto a prevenção como a repressão. A repressão deve ser perene, com os mecanismos de atuação sociais interligados a fim de que a resposta seja integral e eficiente. Deve haver o surgimento de políticas sociais preocupadas com a prevenção primária da criminalidade – através do oferecimento amplo de educação, saúde, moradia, sociabilização etc. – e a repressão ao crime deve se fazer presente não apenas para refrear os anseios sociais e sim para garantir de forma concreta a segurança da sociedade.

2.2.Meios de Prova e Procedimentos Investigatórios

2.1.1.Meios de Prova e Procedimentos Investigatórios da Lei 9.034/95

Fruto da política criminal de cunho eminentemente repressiva adotada atualmente no Brasil, a Lei de Combate ao Crime Organizado não trouxe, em seus artigos, disposições acerca de medidas preventivas para um controle das organizações criminosas. As determinações existentes em suas normas enfocam meios procedimentais para uma ação repressiva por parte dos órgãos da polícia judiciária e para a obtenção de provas, tanto na fase de investigações preliminares, como na instrução do juízo criminal.

Luiz Flávio Gomes afirma que, sem uma definição legal do que sejam organizações criminosas, especialmente após a Lei 10.217/01, deve ser entendido que alguns artigos da Lei 9.034/95 perderam sua eficácia, isto é, não produzirão efeitos práticos no mundo jurídico, tendo em vista não poderem ser tais artigos aplicados por força do princípio da reserva legal [83].

Tal entendimento não é esposado na presente obra, pelos motivos já demonstrados no capítulo anterior quanto à definição das "organizações criminosas", uma vez que a política criminal atual, imbuída do espírito da concepção funcionalista do direito penal não pode deixar que o dogmatismo excessivo se imponha à realidade social e jurídica imperante.

A Lei 9.034/95 é erroneamente denominada a Lei do Crime Organizado. Essa lei dispõe sim "sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas" [84]. Ela não traz a produção de efeitos materiais sobre as organizações criminosas. Apesar disso, tal denominação, ainda que de má técnica, será aqui utilizada para efeitos meramente didáticos.

A par dessas considerações iniciais, a Lei 9.034/95 e sua recente alteração pela Lei 10.217/01 trouxeram a lume diversos meios de prova e procedimentos investigatórios, os quais serão aqui examinados.

2.1.1.2. Ação Controlada e Infiltração Policial

O inciso II do art. 2º da Lei 9.034/95 prevê o perfazimento de uma "ação controlada" por parte da polícia quando da possível ação de organizações criminosas. É a "ação controlada" uma espécie diferente de prisão em flagrante, a qual não se confunde com o flagrante provocado, uma vez que não há instigação ou induzimento ao cometimento do crime. Consiste numa prorrogação ou retardamento do flagrante, estando este sob a discricionariedade das autoridades policiais. Isso quer dizer que o policial não está obrigado a realizar o flagrante no momento da perpetração do crime, podendo estudar a melhor ocasião, com o desenrolar dos fatos, para agir.

Tal procedimento investigatório não é uma novidade no meio policial, pois essa estratégia era adotada muito antes da vigência dessa lei [85]. Ademais, ainda que já levado a efeito antes de 1995, cabe ressaltar que esse meio investigatório só será possível quando a ação estiver sendo praticada por atividades criminosas.

Devem as autoridades policiais estar cientes da importância concedida pelo legislador a esse procedimento, uma vez que o mesmo não sofre qualquer tipo de controle, seja pelo Ministério Público, seja por autoridade judicial.

A "ação controlada" torna-se melhor aplicável com o dispositivo trazido pela Lei 10.217/01, o qual já era bastante comum em outros países, que incluiu o inciso V ao art. 2º da Lei 9.034/97, estabelecendo a infiltração policial, com fins investigativos, em organizações criminosas. Isso só deve ocorrer com devida autorização judicial, e um controle muito específico deveria ser levado a efeito, a fim de evitar a corrupção da autoridade policial pela associação criminosa, algo bastante comum, tendo em vista que a criminalidade organizada no Brasil muitas vezes conta com policiais entre seus pares [86].

2.1.1.3. Acesso a Informações Privadas e o Juiz Inquisidor

O inciso III do art. 2º da lei ora analisada permite "o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais" e o inciso IV estabelece ser permitida "a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial de quem estiver sob investigação". Seria isso uma afronta à Constituição? A Carta Magna, no art. 5º, inc. X diz que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Seriam, portanto, em tese, sigilosas quaisquer informações acerca da vida privada das pessoas. No entanto José Fernando Vidal de Souza cita diversos doutrinadores que reconhecem o valor relativo do direito à privacidade [87]. A relativização só deve ser levada a efeito quando outro direito fundamental resguardado pela Constituição também deva ser protegido. É a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual deve ser utilizado como forma de atenuar a rigidez dos direitos fundamentais visando impedir que a criminalidade encontre refúgio na própria lei, ofendendo, assim, o Estado Democrático, ainda mais se levando em conta, analogicamente, o disposto na parte final do inciso XII do art. 5º da Lei Maior, o qual estabelece quebra do sigilo telefônico para fins de "investigação criminal ou instrução processual penal".

Juarez Tavares, citado por Luiz Flávio Gomes [88], afirma que a proteção do sigilo privado "pode ceder diante do interesse público relevante e maior a exigir a divulgação dos dados individuais, desde que, entretanto, assegurados o devido processo legal e todas as garantias de preservação da vida privada". Obviamente que, para se exercitar tal quebra de sigilo, deve o devido processo legal ser respeitado, sendo tal determinação efetuada apenas com ordem judicial e um rigoroso controle das diligências pelo poder judiciário, conforme acórdão infra:

PROCESSUAL PENAL – HÁBEAS CORPUS – QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS (ART. 5º, X E XII, DA CF) – I. Os direitos e garantias fundamentais do indivíduo não são absolutos, cedendo em face de determinadas circunstâncias, como, na espécie, em que há fortes indícios de crime em tese, bem como de sua autoria. II. Existência de interesse público e de justa causa, a lhe dar suficiente sustentáculo. III. Observância do devido processo legal, havendo inquérito policial regularmente instaurado, intervenção do órgão do parquet federal e prévio controle judicial, através da apreciação e deferimento da medida. [89].

Isso foi o que, aparentemente, buscou a Lei 9.034/95. Porém, a mudança da qualidade da técnica legislativa logo se revela quando a lei traz em seu bojo que tais diligências só poderão ser praticadas pessoalmente pelo juiz, em um "rigoroso segredo de justiça". Ada Pellegrini [90] afirma que o legislador brasileiro, impressionado com a repercussão da "Operação Mãos Limpas" da Itália, onde o membro do Ministério Público Italiano foi revestido de verdadeiros poderes de investigação e diligenciais, criou a figura do juiz inquisidor (art. 3º da Lei 9.034/95), subvertendo a ordem constitucional.

Os parágrafos do art 3º da Lei 9.034/95 trazem ainda outras disposições no mínimo não condizentes com a realidade judiciária brasileira: é o caso das partes consultarem os autos apenas na frente do juiz, as alegações finais serem sigilosas etc. Em que tempo isso será feito? O magistrado, já normalmente assoberbado, terá de ficar à disposição das partes para que estas analisem os documentos, por vezes verdadeiras enciclopédias e façam suas alegações e requerimentos de praxe. Passa o juiz, assim, a ser um guardião de uma verdadeira "caixa-preta forense-criminal", nas palavras do professor Coelho Nogueira [91].

Em recente aresto, o STF julgou, por maioria de votos, ser constitucional tal medida. O acórdão dispôs que:

(...) f) Competindo ao Judiciário a tutela dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição, não há como imaginar-se ser-lhe vedado agir, direta ou indiretamente, em busca da verdade material mediante o desempenho das tarefas de investigação criminal, até porque estas não constituem monopólio do exercício das atividades de polícia judiciária; g) a participação do juíz (sic) na fase pré-processual da persecução penal é a garantia do respeito aos direitos e garantias fundamentais, sobretudo os voltados para a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem da pessoa acerca de quem recaem as diligências, e para a inviolabilidade do sigilo protegido pelo primado constitucional; h) não há cogitar-se de violação das garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, pois os §§ 3º e 5º do art. 3º da Lei nº 9.034/95 até asseguram o acesso das partes às provas objeto da diligência; i) a coleta de provas não implica valorá-las e não antecipa a formação de juízo condenatório; j) a diligência realizada pelo juiz, sob segredo de justiça, não viola o princípio constitucional da publicidade previsto no inciso LX do art. 5º, que admite restringi-lo [92].

Decerto abriu-se um precedente indesejado. Um precedente que resgata o sistema processual inquisitório, combatido pelo Iluminismo e proscrito pela Revolução Francesa. O sistema acusatório, vigente na maioria dos países, é o que melhor se adapta ao Estado Democrático de Direito. Algumas características deste sistema são a rígida separação entre juiz e acusador, a paridade entre a acusação e a defesa, a publicidade dos atos processuais, etc. De outro lado, são próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz no campo probatório, a disparidade de poderes entre a acusação e a defesa, o caráter sigiloso e secreto da instrução, etc. Logo, o que se nota e a tendência garantista do modelo acusatório, enquanto que o inquisitório aproxima-se do autoritarismo e da eficiência repressiva a todo custo.

A colheita de provas realizada pelo juiz é inovação infeliz do legislador, pois a lei introduziu a função de juiz inquisidor em um sistema acusatório que pressupõe atribuição a pessoas distintas para o exercício das funções de acusar, defender e julgar, violando-se, portanto, o princípio ne procedat iudex ex officio, representado pelo devido processo legal. Como poderia o juiz realizar diligências e, ele mesmo julgar o mérito da questão, ainda mais quando essas diligências servirão para a formação do convencimento do magistrado? [93] A Constituição Brasileira de 1988 considera a acusação e o direito de defesa como funções essenciais ao exercício da jurisdição, atribuindo esta última aos juízes. O artigo 3º da Lei 9.034/95 fere as garantias constitucionais do devido processo legal, subvertendo a ordem jurídica instaurada e comprometendo a imparcialidade do juiz, princípio tão duramente conquistado [94]

2.1.1.4. Outros Dispositivos da Lei

Um instituto proveniente do direito italiano de emergência, a delação premiada está prevista no artigo 6º da Lei 9.034/95. A Lei de Crimes Hediondos, em seu artigo 8º também abarca esse dispositivo, além da Lei 9.080/95, a qual estendeu a delação premiada aos crimes do "colarinho branco" e aos crimes contra a ordem tributária, a ordem econômica e as relações de consumo [95].

Além de instituir a figura legal, e pouco ética, do traidor, a lei valoriza sobremaneira a palavra de um agente que, mesmo tendo de prestar tal informação de forma espontânea, no sentido literal da lei, isto é, com "uma manifestação de vontade plenamente livre" [96], estava a pouco tempo delinqüindo no seio da organização que vai trair. Claro que a existência do arrependimento é patente, uma vez que o agente responderá a um processo, já sendo este, em si, uma mácula, porém a "prova" por ele fornecida deve ser rigidamente verificada, a fim de evitar abusos e respeitar o direito constitucional do contraditório.

Na Lei 9.034/95, serve a delação premiada como um estímulo à elucidação e punição de crimes praticados por organizações criminosas.A Lei deixa patente alguns requisitos [97]: ser a delação eficaz, isto é, "levar ao esclarecimento de infrações penais"; a colaboração deve ser espontânea; deve versar sobre mais de uma infração penal, para que seja eficaz; pode ocorrer em qualquer fase (inquisitivo ou contraditório), pois a lei não estabeleceu qualquer limite temporal e o âmbito de incidência tem de ser nos crimes praticados por organizações criminosas. Caso esses requisitos sejam preenchidos, pode a pena do delator ser reduzida de um a dois terços.

A Lei de Crime Organizado vedou a liberdade provisória "para os que tenham tido intensa participação na organização criminosa" e proíbe a apelação em liberdade. Com relação ao primeiro instituto, portanto, deve a liberdade provisória ser concedida pelo magistrado se o agente não teve efetiva participação na organização. É a lei, nesse aspecto, mais benéfica. Ainda aqui há uma disparidade na confrontação da Lei de Crime Organizado com o sistema normativo vigente no país, uma vez que a Lei de Crimes Hediondos veda a liberdade provisória. Portanto, se o agente comete um crime hediondo e organizado, poderá ter liberdade provisória "quando sua participação na organização for de menor relevância". O pecado da Lei 9.034/95 é deixar de modo relativo e subjetivo o que possa vir a ser uma participação "efetiva" e "intensa" na organização criminosa.

A Liberdade Provisória está prevista nos art. 321 usque 350 do Código de Processo Penal Pátrio. A Constituição Federal de 1988, erigiu-a ao pedestal de um dos direitos fundamentais ao dispor, em seu art. 5º, inc. LXVI que "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança". De acordo também com o § 1º deste artigo, tal disposição tem aplicação imediata.

A disposição da liberdade provisória, que na verdade é um termo contraditório, pois pode apenas a prisão ser provisória e não a liberdade, deve ser concedida não a título de benefício, mas como um direito expresso em norma jurídica, se o agente atender às exigências explícitas da lei ou se não há periculum in mora bem como se não houver motivo para a manutenção da prisão cautelar [98].

Cogita o artigo 321 do CPP das hipóteses de obrigatoriedade da liberdade provisória: quando o réu for acusado de praticar delito ao qual não é cominado pena privativa de liberdade ou quando, se for prevista pena privativa de liberdade ao delito, esta pena não ultrapassar três meses.

Há casos em que a liberdade provisória é permitida, como quando o réu tem direito a aguardar o julgamento em liberdade ao ser pronunciado (art. 408, § 2º´do CPP) ou quando é permitida a apelação em liberdade ao condenado por sentença não transitada em julgado (art. 594 do CPP).

Cuidou a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), e suas alterações (Lei 8.930/1994), de fazer disposição acerca da concessão de liberdade provisória aos agentes acusados da prática de tais crimes. Além de vedar a fiança em tais crimes, o que era desnecessário, tendo em vista expressa disposição constitucional a respeito, a Lei 8.072/90 tornou inadmissível a concessão de liberdade provisória tanto nos crimes hediondos como nos que lhe são assemelhados.

Em matéria de aplicação prática desse dispositivo, o STJ e o STF mantêm entendimentos que ora são diversos e ora se aproximam. O STF é firme quanto à absoluta constitucionalidade do disposto na lei de crimes hediondos e na Lei 9.034/95 [99] (STF, 2ª T., HC 73.978-4/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 13.08.1996, DJU 20.09.1996), mas o STJ é quem tem divergentes opiniões a respeito [100].

Para Fernando Capez, a vedação à liberdade provisória nos casos dos crimes hediondos é condizente com a ordem constitucional. Em suas próprias palavras, ele argumenta: "(...) quando a Constituição diz, em seu art. 5º, LXVI, que ‘ninguém será levado à prisão quando a lei admitir a liberdade provisória’, a contrario sensu está dizendo que, quando a lei não admitir a liberdade provisória, será possível levar-se alguém a prisão, logo, permite ao legislador estabelecer casos de inadmissibilidade do referido benefício." [101]

Por outro lado, Alberto Silva Franco, tendo por fundamento o princípio da dignidade humana, por ele consagrado como "suporte de todos os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal" [102], afirma que vedar-se o direito fundamental à liberdade provisória, quando a prisão é totalmente desnecessária (isto é, quando não caberia prisão preventiva pelos casos enumerados na lei processual nacional), é, portanto, afronta flagrante ao princípio da dignidade humana." [103]

A opinião desses dois doutrinadores ilustra bem o quanto tal assunto ainda não está pacificado quanto à sua permissividade ou quanto à sua inconstitucionalidade.

Quando a Constituição alude que ninguém será mantido na prisão quando a lei admitir a liberdade provisória, proclama com isso que, caso a lei vede a liberdade provisória, como é o caso da Lei 9.034/95, o réu vai preso provisoriamente.

Diferentemente da Lei 8.072/90, a Lei dos Crimes Hediondos, o regime de pena trazido no bojo da Lei do Crime Organizado é mais favorável. De acordo com o art. 9º da Lei 9.034/95, apenas o início da pena deve ser cumprido em regime fechado. O que se pode inferir desse dispositivo é que, caso o crime hediondo seja cometido por organizações criminosas, quando da sua definição, o réu terá direito à progressão do regime [104]. Ora, em princípio o crime hediondo cometido por organizações criminosas é ainda mais grave. A pretensão da Lei 9.034/95 é ser severa e rigorosa, porém ela acabou por criar uma situação surreal, uma contradição, até o presente momento, insanável [105].

Em face do princípio de que a lei penal só retroage para beneficiar o réu, inserido no inciso XL do art. 5º da Constituição Federal, se for entendido que o crime hediondo cometido por quadrilha ou bando esteja sendo praticado como crime organizado, os réus já condenados poderão requerer ao juízo de execuções penais a progressão do regime. Igualmente ocorre nos casos de associação criminosa, uma vez que, com a nova redação do artigo 1º da Lei 9.034/95, podem elas também ser consideradas crime organizado.

Com vistas a essa incongruência, o projeto de lei n.° 1353, de 27/08/1999 do Dep. Luiz Antônio Fleury, em tramitação no Congresso Nacional, modifica a redação do art. 10, prevendo que o cumprimento da pena seja efetuado integralmente em regime fechado.

O melhor seria a criação de uma lei que acabasse de uma vez por todas com o cumprimento integral das penas em regime fechado. O pensamento de Francisco de Assis Toledo [106] é um resumo das vozes que se levantam contra tal instituto: "se for retirado do condenado a esperança de antecipar a liberdade pelo seu próprio mérito, pela conduta disciplinada, pelo trabalho produtivo durante a execução da pena, estaremos seguramente acenando-lhe, como única saída, a revolta, as rebeliões, a fuga, a corrupção". É justamente isso que os meios de controle da criminalidade vêm combater. As normas não podem conter mecanismos que deflagrem a violência do condenado, pois então elas estariam perdendo sua própria raison d’être. A Lei 9.034/95 não veio para beneficiar os agentes participantes de organizações criminosas. Essa, pelo menos, era sua inicial intenção. O crime organizado, como um mal que atinge toda a sociedade, recebeu uma legislação específica a fim de que os órgãos governamentais tivessem uma âncora normativa a qual traria eficácia aos diversos meios de repressão e prevenção a essa criminalidade. Ainda que não querido, tal retrocesso legislativo é uma realidade. As críticas que se fazem ao diploma legal só podem, por enquanto, ficar no campo das lamentações, uma vez que tal lei, procedente de uma péssima técnica legislativa, está inserta em um sistema normativo que deve ser integrado com relação aos princípios fundamentais que lhe norteiam.

Urge uma ampla discussão no Congresso Nacional a fim de que os principais projetos legislativos sejam unificados em um só instrumento legal que dê azo à política criminal do Estado no controle da criminalidade organizada. Mas não pode o Estado se preocupar apenas com a criação de novas leis. Deve também o governante procurar enfrentar as causas das crises, o que ensejaria uma verdadeira reforma no Direito Penal Brasileiro [107].

2.1.1.4. Omissão Legislativa – O Ministério Público

Contrariamente ao Direito Italiano, de onde se inspirou na maioria dos seus institutos, até mesmo no absurdo da previsão do juiz inquisidor – apesar de tal fato lá já ter sido sanado – a Lei 9034/95 não traz nenhuma disposição especial quanto ao Ministério Público.

O fato de o Ministério Público ser o fiscal da lei, mantenedor da ordem jurídica etc. já permite sua intervenção a qualquer momento em qualquer processo, a fim de garantir o respeito ao devido processo legal.

Isso está implícito no sistema normativo brasileiro. Na política criminal repressiva adotada pelo Brasil, outro papel deveria ser dado ao Ministério Público como forma de controle ao crime organizado: a possibilidade do Parquet proceder a diligências preliminares investigatórias, isto é, presidir e comandar investigações cuja finalidade é ter provas e indícios suficientes ao oferecimento da denúncia, papel importunamente reservado ao juiz pela Lei 9.034/95.

No próximo capítulo estão inseridas as razões pelas quais essa tese é defendida e de que modo isso pode ser levado a efeito na realidade brasileira.

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Sobre o autor
Artur de Lima Barretto Lins

Bel. em Direito Recife/PE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINS, Artur Lima Barretto. O crime organizado:: diligências investigatórias do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 370, 12 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5422. Acesso em: 25 abr. 2024.

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