4. Limitações à oralidade nos JEFs.
Apresentadas as linhas fundamentais da oralidade, entendida como princípio doutrinário, faz-se necessário compreender as limitações naturalmente concernentes a este princípio, de modo a encontrar o ponto de equilíbrio para a sua justa aplicação prática, sem partidarismo teórico, confrontando-o com outras exigências do procedimento, ponderadas pelo direito positivo nacional e pela jurisprudência já nascida sob a égide das Leis ns. 9.099/95 e 10.259/01.
Basicamente, em nosso direito positivo, há cinco possíveis e importantes situações em que a oralidade sofre limitações nos juizados, quais sejam: a) quando o feito comporta julgamento sem audiência; b) quando a lei não admite prova oral de determinado fato; c) quando há prova oral a ser produzida em localidade não abrangida pela competência territorial do juiz que dirige o feito; d) na instância recursal; e e) na execução. Algumas dessas limitações são compatíveis com o procedimento dos juizados, outras não.
Como já dito exaustivamente, a oralidade está relacionada mais de perto com a colheita de prova em audiência por magistrado de primeiro grau, para fins de formação do seu convencimento e a conseqüente produção da sentença definitiva; é nesse âmbito que ela encontra ampla aplicação e notável utilidade prática, inclusive e especialmente perante os juizados. Após a sentença de mérito, sobretudo, a oralidade apresenta pouca ou nenhuma aplicação concreta; tanto isso é certo que a legislação de regência dos juizados, em harmonia com o espírito da Constituição, procura conceder proeminência ao julgamento do juiz singular, prestigiando o resultado das impressões pessoais do magistrado que teve contato pessoal e direto com a causa − o que representa a essência da oralidade −, e dificultando, por outro lado, o alongamento do feito para além desse limite.
4.1 julgamento antecipado da lide
"A oralidade – diz Liebman [16] – tem por teatro necessário a audiência, porque só nela o juiz entra em contato com as partes e com as provas."
Então, seria de supor-se que a audiência seja sempre necessária nos juizados especiais, porquanto somente assim seria atendido o princípio constitucional da oralidade. O assunto assume ainda maior importância no âmbito dos juizados especiais federais que nos estaduais, tendo em vista a peculiaridade de a Justiça Federal brasileira ter um número considerável de feitos em que a matéria discutida é exclusivamente de direito.
Seria, ainda nesses casos, necessária a realização da audiência? É claro que não. O princípio da oralidade não pode ser objeto de reverência cega, mesmo decorrendo de mandamento constitucional. Faz-se necessário seu contrasteamento em face de outros princípios que regem o processo. Nesse sentido, como dito acima, subjaz ao ordenamento jurídico em geral princípio lógico segundo o qual é inconcebível a prática de ato processual ou o respeito a formalidade legal cuja utilidade é prévia e reconhecidamente nenhuma. E a realização de audiência em caso de matéria fática incontroversa recairia justamente nesta hipótese.
O próprio Giuseppe Chiovenda [17], encarniçado defensor do princípio em causa, concedeu em que "nem sempre a oralidade terá a mesma importância. O valor da oralidade consiste essencialmente naquele de seus poliédricos aspectos que se conhece por imediação, ou seja, naquele que permite utilizar na apreciação das provas a observação direta."
No sistema processual civil comum brasileiro – que também está teoricamente assentado sobre o princípio da oralidade –, o legislador criou a figura do julgamento antecipado da lide (CPC, art. 330, com a redação dada pela Lei 5.925, de 1º de outubro de 1973), por meio do qual o juiz conhece diretamente do pedido, sem a necessidade de realização de audiência, para os casos em que tal ato seria inútil. O Ministro Alfredo Buzaid [18], justificando esse ponto do Código de 1973, expressou-se no sentido de que o processo oral em sua pureza seria um tipo ideal, "resultante da experiência legislativa de vários povos e condensado pela doutrina em alguns princípios. Mas na realidade, há diversos tipos de processo oral (...)". Acrescentou o emérito professor que exigências práticas da cada nação e de cada sistema processual podem perfeitamente impor modificações ao tipo ideal para acomodá-lo à experiência local e às exigências pragmáticas do direito. É precisamente esse o caso do julgamento antecipado da lide, surgido da necessidade de não se prolongar inutilmente processos que podem receber um julgamento imediato, sem que com isso se abra mão da oralidade como princípio reitor do sistema.
Como esclarece Jefferson Carús Guedes [19], em opulenta monografia dedicada ao tema, "na busca de um procedimento justo, por exemplo, não se pode impor a audiência, a todo custo, em todos os procedimentos. Aliás, o reiterado malogro de tentativas de implementação de procedimentos que prestigiavam as audiências fez acentuar a descrença neste ato processual, seja como meio de instrução, seja como local de decisão dos feitos."
Assim, é igualmente compatível com rito dos juizados especiais cíveis o julgamento antecipado da lide, em casos nos quais a audiência de instrução se mostre inútil, e com isso nenhuma ofensa se perpetra contra a oralidade.
4.2. Vedação de prova oral
Outro ponto importante, que ainda não mereceu a atenção devida da doutrina e da jurisprudência, diz respeito à vedação legislativa de prova oral para a demonstração de determinados fatos, quando aplicada no âmbito dos juizados. Para ser mais claro: pense-se na regra do art. 55, § 3º da Lei n. 8.213/91, que impede a utilização de prova exclusivamente oral para a demonstração do tempo de serviço para fins previdenciários. Esta norma já recebeu o beneplácito da jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça - STJ, o qual editou a súmula 149, com os seguintes termos: "A prova exclusivamente testemunhal não basta a comprovação da atividade rurícola, para efeito da obtenção de benefício previdenciário."
Bem, a questão é: será que no âmbito dos juizados, em que há norma constitucional determinando a observância do procedimento oral (CF, art. 98, I), seria plenamente aplicável a limitação probatória acima, fruto de exigências criadas pelo legislador ordinário?
O Supremo Tribunal Federal ainda não enfrentou claramente o problema da constitucionalidade do art. 55, §3º, da Lei n. 8.213/91. Em apenas uma oportunidade − no julgamento do RE 226.588-9-SP, rel. Min. Marco Aurélio − o STF chegou a cotejar o dispositivo legal mencionado com o texto da Constituição, mais precisamente com os arts. 5º, LV e LVI; 6º e 7º, XXIV, todos da CF. No entanto, além de o julgamento ter sido feito por um órgão fracionário do STF (a 2ª Turma), não se encontra nesse acórdão uma discussão crítica aprofundada sobre a constitucionalidade da limitação, por lei, de meios de prova. Há apenas um obiter dictum do relator sobre o assunto, para justificar a aplicação indiscriminada do art. 55, §3º, da Lei 8.213/91. Por isso que se pode afirmar não ter ainda o STF uma posição consciente sobre o tema, sob a perspectiva do direito material-processual.
Muito menos decidiu a Corte Suprema, ou mesmo o STJ, sobre a constitucionalidade dessa limitação probatória quando a causa tramita no âmbito dos juizados especiais, em que se inclui um elemento constitucional novo na discussão, ou seja, o caráter oral do procedimento perante esses órgãos judiciários (CF, art. 98, I).
Entendemos que a consagração da necessidade, sem exceção, de prova escrita para a demonstração de certos fatos alegados em juízo, não pode ser aplicada às causas que tramitam no âmbito dos juizados. Para chegar-se a essa conclusão, há dois caminhos: ou se entende que a regra do art. 55, §3º, Lei 8.213/91, não se dirige ao Judiciário, mas apenas à Administração Previdenciária − solução esta que poderia ser aplicada tanto nos juizados como no procedimento comum −; ou se reconhece que, à vista da regência constitucional da oralidade nos juizados, o início de prova escrita seria indispensável apenas se a causa tramita perante a Justiça Comum. A primeira solução, posto seja viável sob certo ângulo hermenêutico, já foi afastada pelo STJ, ao ter este tribunal editado a Súmula 149. No mesmo sentido, há também a Súmula 27 do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Já a segunda solução, que diz mais de perto ao tema aqui tratado, é inteiramente aceitável e, de resto, está em sintonia com o querer constituinte. Afinal, não é compatível com o princípio em causa − o da oralidade − que a produção da prova, justamente o centro de imputação, o núcleo essencial desse particular modo de julgar as causas, seja restringida por lei ordinária. Mais incompreensível ainda é que essa restrição seja estabelecida em favor da materialidade − que se resolve quase sempre na escritura − e sem flexibilidade alguma, tolhendo definitivamente o livre convencimento do magistrado, construído a partir da observação direta (imediação) da situação sob exame. Ora, se a exigência legislativa impõe que o juiz não pode julgar senão com suporte em algum escrito, está claro que a imediação amesquinha-se até à inutilidade; por outro lado, sem imediação não há falar em oralidade; e, sem oralidade, restam completamente frustrados os fins político-jurídicos dos juizados e violada abertamente a cláusula do art. 98, I, da CF.
Conta-se, por exemplo, que em determinado "juizado itinerante", dos muitos promovidos pelo TRF da 1ª Região nos rincões do país, um magistrado reconheceu a condição de rurícola de um cidadão fundamentalmente com base nos depoimentos verossímeis colhidos em audiência e na "aspereza bruta e agreste das mãos do autor", o que, no fim das contas, não deixa de ser uma prova material, mas com forte predomínio das impressões do julgador, mercê do seu contato direto com a causa. Seria de se duvidar da rigorosa compatibilidade de tal decisão com os postulados da oralidade?...
À vista dessas seriíssimas objeções, é inaplicável aos juizados especiais cíveis a restrição instrutória prevista no art. 55, §3º, da Lei 8.213/91, ou qualquer outra regra de teor semelhante (v.g., art. 400, CPC).
4.3. Prova oral por delegação: a carta precatória nos juizados
O Enunciado n. 33, do Fórum Permanente dos Coordenadores dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, está expresso assim: "É dispensável a expedição de carta precatória nos Juizados Especiais Cíveis, cumprindo-se os atos nas demais comarcas, mediante via postal, por oficio do Juiz, fax, telefone ou qualquer meio idôneo de comunicação.". Tal entendimento toma por base o disposto no art. 13, §2º, da Lei n. 9.099/95.
As cartas precatórias, em princípio, estão vedadas nos juizados, por serem desnecessárias. A regra geral deverá ser sempre a de que a possível delegação da prática de algum ato processual dê-se por meio informal, sem a necessidade do cumprimento de requisitos rígidos e solenes, comuns às cartas expedidas com base no direito processual codificado (CPC, arts. 200 e ss.).
Isso quanto à forma. Sobre o conteúdo também a delegação processual deve receber tratamento diferençado nos juizados, tendo em vista as exigências do princípio da oralidade.
Com efeito, como já foi dito acima, o pilar fundamental da oralidade é a imediação; logo, não será possível nos juizados a delegação da colheita de prova oral a outro juiz, porque isso implicaria ofensa manifesta às exigências mais elementares para uma mínima observância do procedimento oral. Acresce que o eventual tumulto provocado por essa delegação atingiria gravemente a simplicidade e celeridade de que deve se valer o procedimento sumaríssimo. Basta dizer que no rito comum as cartas precatórias expedidas para a produção de prova por vezes implicam a suspensão do feito (CPC, art. 338), o que de modo algum se aceitaria nos juizados. Por fim, não será demais mencionar que a causa cuja prova não pode ser toda ela produzida na sede do litígio, onde tramita o feito, não pode também ser classificada como de "menor complexidade" para efeito de competência dos juizados, tanto mais porque o conceito de "causa complexa", como tem acentuado a jurisprudência, está ligado ao grau de dificuldade de produção da prova, e já se vê que a necessidade de dispersão territorial dos núcleos de recebimento dos elementos instrutórios é motivo suficiente para não se considerar singela a causa.
Por todas essas razões, não é cabível a delegação de ato jurisdicional de coleta de prova oral em sede de juizados especiais cíveis.
4.4 Execução
A oralidade, naturalmente, está ligada ao processo de cognição, porque na execução nada mais há para ser dito ou debatido, mas apenas há o que se cumprir praticamente. É antes da sentença, notadamente no âmbito probatório, que a oralidade desempenha seu importante papel de humanização do procedimento [20].
Com o trânsito em julgado da sentença de procedência do pedido no JEF cível, serão adotadas ex officio as providências conducentes ao cumprimento do julgado, o qual já deverá, inclusive, ser líquido (Lei 9.099/95, arts. 38, parágrafo único, e 52, I, aplicáveis aos JEFs por analogia). A análise dos arts.16 e 17 da Lei 10.259/01 conduz a essas conclusões. Por isso, é licito dizer que não existe propriamente nem liquidação, nem execução ex intervallo nos JEFs cíveis, vez que o legislador atribuiu natureza executiva lato sensu a todas as ações que sigam o rito especial da Lei 10.259/01.
Essas conclusões ainda mais confirmam a absoluta ausência de debate – por conseguinte, de oralidade – após o trânsito em julgado da sentença no juizado, já que nem mesmo o tradicional rito executivo do CPC, cuja sistemática ainda permite "sobras de cognição" para além da sentença com trânsito em julgado (CPC, art. 741), é observado nos JEFs.
Pode-se reconhecer, portanto, que a oralidade não é aplicável à execução nem mesmo no rito comum do CPC, e muito menos no procedimento abreviado dos JEFs.
4.5 Instância recursal dos JEFs
É também bastante escassa a oralidade, compreendida em seu sentido mais puro, na instância recursal dos juizados. Isso porque as impugnações dirigem-se contra decisões ou sentenças de juízes singulares, as quais já documentaram, por escrito ou outro meio, as vicissitudes da instrução, e servirão de base quase exclusiva para o julgamento do recurso. Geralmente os órgãos colegiados, além de não receberem a causa em estado bruto, não têm por função reapreciar a fundo a prova dos autos, mas somente rever a decisão recorrida, para verificar a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico. É certo que as questões fáticas são também devolvidas à Turma Recursal, no caso dos recursos nos JEFs contra a sentença de mérito, mas mesmo essas o são segundo a forma com que foram plasmadas no primeiro grau. O que pode mudar é o convencimento quanto ao material instrutório, mas o próprio procedimento de tramitação do recurso impede nova produção de prova em segundo grau quanto aos fatos discutidos no juízo a quo. Se for o caso de se repetir uma prova, por qualquer razão, a prática é anular a decisão monocrática e determinar o retorno dos autos ao juiz singular para esse fim, ficando afastada, em todo caso, as características essencias da oralidade em segundo grau, notadamente a imediatidade entre o órgão jurisdicional e as partes.
Quando muito, a oralidade pode se manifestar nas Turmas Recursais, em caso de julgamento de recurso contra sentença, na hipótese de alguma ou ambas as partes, por seus advogados, fazerem sustentação oral (CPC, arts. 554 e 565, aplicáveis por analogia), o que não é incompatível com o espírito dos JEFs, e, aliás, parece até mesmo sugerido pelo art. 45 da Lei 9.099/95. Mas já aqui, longe do contexto de produção da prova, a oralidade manifesta-se apenas formal e ancilarmente, sendo, por isso mesmo, facilmente intercambiável com a escrita, pois não está a representar aquela peculiar maneira de julgar o feito em primeiro grau: tête-à-tête com as partes.
Item, a circunstância de não haver necessidade de longa fundamentação escrita no julgamento das Turmas Recursais (Lei 9.099/95, art. 46) também lembra o prestígio da oralidade nos juizados especiais.
Fora das situações lembradas acima, a oralidade dispõe de modesta influência na segunda instância dos juizados.