INTRODUÇÃO
O presente artigo objetiva analisar a discricionariedade administrativa no aspecto dos conceitos jurídicos indeterminados, a fim de esclarecer se a concreção desses conceitos ensejaria competência discricionária à Administração.
A discricionariedade é um tema muito recorrente em Direito Administrativo por sua relevância em um Estado de Direito, cuja base de sustentação é o princípio da legalidade o qual impõe ao Poder Público uma atuação pautada no respeito ao ordenamento jurídico.
Acerca da discricionariedade administrativa, podemos tecer as seguintes - e breves - considerações:
1) Especialmente em casos de repercussão mais intensa nos direitos individuais, a lei vincula o ato administrativo em todos os seus aspectos, obrigando a autoridade administrativa aplicar a solução previamente estabelecida pelo comando legal;[1]
2) Por outro lado, conforme define Maria Sylvia Zanella di Pietro, há hipóteses em que o regramento não abrange os todos os aspectos da atuação administrativa, permitindo ao administrador decidir por uma entre várias possibilidades que a lei lhe conferiu de acordo com critérios de mérito intencionalmente não definidos pelo legislador. É a denominada discricionariedade administrativa.[2]
3) Sob o ponto de vista jurídico, ela encontra fundamento no próprio ordenamento jurídico através das normas que regulam o comportamento do administrador, autorizando-o, em alguns casos, a eleger a solução que reputar mais adequada à consecução do interesse público.[3]
4) Este poder discricionário reside nas etapas de formação do ato administrativo, na própria norma jurídica, no momento da prática do ato e nos requisitos do ato administrativo.[4]
Quanto ao último item, destaque-se que no motivo, entendido como o pressuposto de fato ou de direito que autoriza ou exige a prática do ato[5], existe a divergência doutrinária que iremos abordar no presente artigo: haverá discricionariedade quando a lei descrever os motivos utilizando conceitos vagos e plurissignificativos como “bem comum”, “moralidade”, “interesse público” e “ordem pública” etc.?
ORIGEM DA DISCUSSÃO
Esta celeuma surgiu no século XIX a partir de estudos dos professores austríacos Edmund Bernatzik (1854-1919) e Friedrich Tezner (1856-1925) que discutiram se a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados pela Administração era ou não passível de controle pelos Tribunais Administrativos.
Bernatzik na obra Rechtsprechung um materielle rechtskraft de 1886 sustentou que a aplicação do direito e a aplicação da discricionariedade não constituíam realidades opostas. Considerando que a Administração integra o Estado, ela também possuiria competência para dizer o direito. Entretanto, haveria atividades que não eram totalmente reguladas pela lei, razão pela qual apenas por meio de conhecimentos técnico-científicos seria possível concretizar a norma. De acordo com o jurista, as situações previstas por conceitos indeterminados previstos em lei, como “adequação”, “utilidade”, “perigo”, etc., somente poderiam ser afirmadas ou negadas depois de um complexo processo interpretativo em cadeia, denominado por ele de discricionariedade técnica. Mencionado processo constituiu a primeira manifestação da teoria da multivalência, segundo a qual a interpretação e aplicação dos conceitos indeterminados admite mais de uma decisão correta.[6]
De acordo com Bernatzik, nesta extensa esfera de poder discricionário, os agentes atuariam como peritos ou técnicos do interesse público, os quais agiriam de acordo com a convicção que se tem acerca do melhor modo de atingi-lo, seja na avaliação dos conceitos de valor ou empíricos; esses últimos “despertariam uma avaliação subjetiva por parte da autoridade. Isso porque a correção de sua exatidão se circunscreveria a um pequeno círculo de estudiosos especializados, de modo que deveria prevalecer a decisão administrativa”.
No tocante à possibilidade de controle jurisdicional destas decisões, aduz que “as conclusões dos experts não dependiam de sua vontade, mas eram condicionadas pelas regras da ciência e da arte, sendo certamente impugnável a opinião que manifestamente contrariasse essa regra.” Assim, considerando que a lei impõe a discricionariedade técnica (Ermessen tecniches) na qualidade de dever jurídico e não apenas ético, qualquer ato que violasse esse dever implicaria na responsabilização penal ou disciplinar do agente, mas nunca na anulação do ato praticado. Mais tarde, após diversas críticas, Bernatzik reconhece em alguns casos a anulação por parte do Poder Judiciário de atos praticados no exercício da discricionariedade técnica que estejam em desconformidade com o interesse público.[7]
A opinião de Bernatzik, conforme narra António Francisco de Sousa, passou a constituir o fundamento da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo austríaco. Entretanto, dois anos depois, o também austríaco Friedrich Tezner insurgiu-se à doutrina dos conceitos indeterminados de Bernatzik a qual considerou “inimiga do Estado de Direito” e “cientificamente infundada”. Para o jurista, todo conceito legal quando posto em confronto com o caso concreto pode pressupor uma complexa cadeia de pensamento, sendo que a diferença entre os denominados conceitos indeterminados e os determinados é apenas o grau de insegurança da palavra, ou seja, nos conceitos indeterminados haveria uma diferença meramente quantitativa e não qualitativa, não se podendo resolver a celeuma com a concessão de discricionariedade, uma vez que a administração sempre estaria vinculada ao interesse público, categoria também delimitada, em que o legislador previamente estabelece a melhor solução. Assim, considerando que o comportamento do administrador representa a atuação de uma norma precisa ou precisável, o interesse público e sua qualificação sempre estariam sujeitas à fiscalização jurisdicional. Portanto, os conceitos indeterminados não implicariam em discricionariedade à Administração, mas, em verdade, seriam totalmente controláveis jurisdicionalmente em sua interpretação e aplicação. [8]
De acordo com Tezner, é possível haver mais de uma solução adequada diante da interpretação de um conceito indeterminado quando confrontado com a realidade fática, mas a escolha feita pela autoridade poderia, de qualquer modo, ser anulada pelo tribunal administrativo. Por outro lado, a ocorrência de poder discricionário surgiria apenas quando os tribunais administrativos forem incompetentes ou a lei expressamente estabelecesse mencionada prerrogativa à Administração por considerar seus agentes mais bem qualificados tecnicamente para interpretar os conceitos e a qualificar certos casos.[9]
Dessa forma, segundo Tezner, partidário da teoria da univocidade, os conceitos jurídicos indeterminados são critérios legais vinculantes à Administração por estar sempre circunscrita ao interesse público, cabendo ao tribunal administrativo delimitar que categoria de conceitos conferem discricionariedade técnica, quando esta não for expressamente determinada pela lei.
As posições antagônicas defendidas por Bernatzik e Tezner repercutem até os dias de hoje na doutrina administrativista nacional e internacional. De um lado, os neoliberais, inspirados pelo direito estrangeiro e com raízes na teoria da multivalência, defendem a ampliação da discricionariedade como forma de substituir a Administração burocrática pela gerencial, reconhecendo maior liberdade decisória aos seus dirigentes e, inclusive, fazendo renascer ideia de discricionariedade técnica, de modo a reduzir o controle jurisdicional dos atos da Administração; e, de outro lado, alinhados à teoria da univocidade, os defensores do alargamento do princípio da legalidade como forma de reduzir a discricionariedade e possibilitar maior controle por parte do Poder Judiciário.[10]
A matéria é de suma importância para o Direito Administrativo, porque se refere à extensão do controle jurisdicional sobre a Administração. Onde houver interpretação, a última palavra sempre caberá ao juiz; onde houver discricionariedade a decisão administrativa é insuscetível de invalidação pelo Poder Judiciário.
DOUTRINA INTERNACIONAL
Na Espanha, é de grande relevância a posição de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández aos quais a técnica dos conceitos jurídicos indeterminados é comum a toda normatização, sendo que, ao contrário do poder discricionário, a aplicação dos referidos conceitos admitiria apenas uma solução justa perante o direito. Assim, considerando que neste caso o que ocorreria é a subsunção de uma categoria legal – ainda que imprecisa – a um determinado caso concreto, não haveria no comando legal qualquer previsão de escolha por parte da Administração, pois a aplicação e interpretação dos conceitos indeterminados resultaria apenas num processo intelectual de compreender uma realidade. Dessa forma, para os juristas, expressões como “urgência”, “ordem pública”, “calamidade pública” e “medidas adequadas e proporcionais” não permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, mas somente uma de acordo com cada caso:[11]
Pero al estar estar refiéndose a supusestos concretos y no a vaguedades imprecisas o contradictorias, es claro que la aplicacíon de tales conceptos o la calificaión de circunstancias concretas no admite más que una solución: o se da o no se da el concepto; o hay buena fe o no la hay; o el precio es justo o no lo es; o se ha faltando a la probidade o no se ha faltando.
Por outro lado, os autores reconhecem que a concretização de uma solução unívoca nem sempre é tarefa fácil quando confrontada com o caso concreto. Prova disso está na estrutura dos conceitos indeterminados formada por um núcleo fixo, denominado zona de certeza composta por dados seguros e precisos a respeito da possibilidade de incidência do conceito, por uma zona intermediária chamada de halo do conceito, mais ou menos imprecisa e por uma zona de certeza negativa também segura quanto aos fatos excluídos de aplicação do conceito. Entretanto, mesmo que diante de uma zona de incerteza, a qual conferiria certa margem de apreciação, é certo que não haveria disposição de livre vontade ao agente, característica esta exclusiva da discricionariedade, tratar-se-ia apenas de um âmbito cognoscitivo e interpretativo, outorgando à Administração, quando muito, o benefício da dúvida. Além disso, ao contrário de atos praticados no exercício da discricionariedade, que não ensejam controle judicial, a aplicação dos conceitos indeterminados admitiria fiscalização por parte do juiz, ao qual caberia apreciar o halo do conceito, reconduzindo-o às zonas de certeza, positiva ou negativa, operação completamente corriqueira em qualquer problema interpretativo, sendo a incerteza, imprecisão e dúvida inerentes a qualquer litígio.[12]
Em suma, para Enterría e Fernández, os conceitos jurídicos indeterminados não conferem discricionariedade à administração, tratando-se apenas de aplicação da lei, fenômeno comum a todos os ramos do direito; quando diante do caso concreto cabe ao agente interpretar o conceito e escolher a solução mais adequada à consecução do interesse público, pois “a indeterminação do conceito, não acarretaria em indeterminação de aplicação destes”; sendo, portanto, cabível eventual controle por parte do Poder Judiciário a quem caberia delimitar a incidência do conceito, bem como avaliar a decisão tomada.
Outra contribuição da doutrina espanhola vem dos ensinamentos de Fernando Sainz Moreno. Para o jurista, a verdadeira discricionariedade surgiria quando o critério da decisão deixa de ser jurídico e se converte em político. Além disso, a determinação do que seja o interesse público não consistiria somente uma questão político-filosófica, mas também um problema jurídico da maior importância:[13]
La solucíon del problema concreto de decidir em cada caso singular lo que conviene al interés público (...) exige operar com critérios y técnicas que no los proporcionan los estudios políticos e filosóficos sobre “el bien comum”, aunque de ellos procedan los princípios que deben inspirar la configuracíon de esas técnicas.
Partindo desta ideia, o autor faz uma análise da noção de interesse público e revela que mencionado conceito pode ser compreendido como um princípio político ou como um conceito jurídico, neste último caso seria utilizado como pressuposto para diversos atos administrativos, tais como proibições e limitações, modificações ou suspensões de atos e contratos ou direitos patrimoniais, inclusive, muitas vezes, implícito na atribuição de faculdades à Administração.[14]
Acerca da função da noção de interesse público, Sainz Moreno distingue-a em três categorias entendendo mencionado conceito como: (a) um dos critérios que inspira a interpretação e aplicação da sua norma; (b) um conceito jurídico que necessita de ser interpretado; (c) um elemento nuclear das decisões administrativas.[15]
Dessa forma, conclui o autor que embora a Administração tenha o poder de apreciar no caso concreto o que é interesse público, tal fato não retira a possibilidade de controle, por parte do Poder Judiciário, dos conceitos indeterminados, do fim e do erro manifesto nos atos praticados no exercício da competência discricionária. Em verdade, competiria ao juiz institucionalmente decidir o que é justo e à Administração, em contrapartida, proceder de maneira justa, coisas completamente distintas. Assim, a subordinação da Administração ao ordenamento jurídico e seu inevitável controle pelos juízes seria uma ideia nuclear da organização democrática da vida comunitária:[16]
El pelo sometimento de la Administración al ordenamiento jurídico – princípio de legalidad – y, consecuencia ineludible, al control de los jueces, es uma ideia nuclear de la organizacíon democrática de la vida comunitária; significa que los interesses que la Administracíon gestiora no son sus próprios interesses, sino los de la comunidad a la que sierve y que portanto, es a esa comunidad y no a supuestos entes tutelares o guardianes de su pureza, a quién corresponde decidir lo que quiere y como lo quiere. Tal decísion se manifesta (no obstante, la ficcion entraña unificar em um solo mandato la pluralidad de voluntades que integran la comunidad) en la ley aprobada por los respresentates del pueblo
Portanto, para Sainz Moreno, considerando que a noção de interesse público comporta diversas interpretações, inclusive possuindo elementos de ordem política, a lei ao utilizar conceitos jurídicos indeterminados criaria uma zona de livre apreciação que deve ser analisada com base no critério do interesse público, elemento nuclear das decisões administrativas. Por outro lado, em razão do princípio da legalidade e da atribuição do Poder Judiciário como legítimo intérprete da lei, tornar-se-ia inevitável o controle da aplicação destes conceitos indeterminados pelos tribunais.
Na doutrina portuguesa, Afonso Rodrigues Queiró ensina que a atividade da administração é uma atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais. Em contrapartida, o legislador estaria lógica e materialmente impossibilitado de, na maioria das vezes, transmitir à Administração normas jurídicas com conceitos precisos e fechados, isto é, a lei “não consegue tudo regular em forma absolutamente especificada e detalhada”. Dessa forma, ao executar as ordens legais, caberia à autoridade agir conforme uma dentre as várias interpretações possíveis dos conceitos plurissignificativos, assim denominados pelo jurista que os classifica em conceitos práticos e de valor.
Mencionada atividade de interpretação conferiria discricionariedade ao administrador nos casos de conceitos de valor e nos conceitos práticos (não teoréticos, estes interpretáveis logicamente, conceitualmente, já que derivados das ciências do ser e das artes). Nos conceitos das ciências empírico-matemáticas, por outro lado, decorrido todo o processo interpretativo seria possível extrair “contornos absolutamente individualizáveis, com valor objetivo e universal”. Aos conceitos valor, a interpretação do agente deveria seguir os princípios norteadores do Estado, ou seja, a concepção política da sociedade em que a autoridade está inserida;[17] já os conceitos práticos, aqueles referidos ao mundo do dever-ser, a interpretação do agente seria baseada em seu sentimento de direito, guiado pelas exigências da concepção do Estado no caso concreto.[18]
Em relação ao controle jurisdicional, Queiró aduz que os atos discricionários não são passíveis de fiscalização pelo Poder Judiciário, sendo os seus limites fixados apenas pela lei: “os limites do poder discricionário serão aquêles comandos legais que vedem certas interpretações das condições de agir e imponham certas outras”. Segundo o autor, aludindo aos ensinamentos de Rudolf V. Laun, o juiz deveria intervir somente naqueles casos em que restasse evidente a consecução de um fim proibido pela lei por parte da autoridade administrativa ou quando o agente, por negligência, alcança com a prática do ato um efeito vedado pela lei, isto é, embora não desejasse atingi-lo, o ato, por sua natureza, tal como foi praticado atinge forçosamente.[19]
Num segundo momento, Queiró mudou sua posição passando a considerar como poder discricionário aquele que decorre exclusivamente de outorga legal:[20]
O poder discricionário é concebido, entre nós, como uma certa margem de liberdade, concedida deliberadamente pelo legislador à Administração a fim de que esta escolha o comportamento mais adequado para a realização de um determinado fim público. O poder discricionário não se confunde, portanto, com toda e qualquer margem de precisão, ainda a mais ampla, na formulação dos comandos legais. Noutras palavras: não se confunde com os chamados conceitos vagos ou conceitos indeterminados, de que o legislador administrativo tão largamente lança mão para exprimir as suas previsões. Estes são, simplesmente, o produto da impossibilidade prática ou simples dificuldade técnica, em que o legislador frequentemente se encontra, de enunciar, com toda nitidez, com todo o rigor, quer as circunstâncias ou pressupostos de fato em que os órgãos da Administração hão de exercer a sua competência no futuro, quer as finalidades a realizar pelos órgãos da Administração - e originam, para estes órgãos, o dever de realizarem, antes de exercerem essa competência, a respectiva interpretação. Por muito que, no exercício desta tarefa interpretativa, intervenham necessariamente elementos subjetivos, por muito que a interpretação envolva elementos pessoais ou autônomos, esta liberdade interpretativa nunca poderá confundir-se com o poder discricionário da Administração. Estamos aí no domínio do poder vinculado. O poder discricionário, pelo contrário, consiste, por sua vez, numa outorga de liberdade, feita pelo legislador à Administração, numa intencional concessão do poder de escolha, ante o qual se legitima, como igualmente legais, igualmente corretas de lege lata, todas as decisões que couberem dentro da série, mais ou menos ampla, daquelas entre as quais a liberdade de ação administrativa foi pelo legislador confinado.
Dessa forma, para Queiró, os conceitos indeterminados seriam produto da impossibilidade do legislador exprimir comandos precisos para todas as situações e, ainda que durante o processo interpretativo destes conceitos possam intervir elementos subjetivos, eles integrariam o domínio do poder vinculado.
Ainda na doutrina portuguesa, António Francisco de Sousa, alinhado à moderna doutrina alemã, rejeita a existência de figuras como margem de apreciação, discricionariedade técnica ou discricionariedade imprópria, as quais são consideradas por ele cientificamente imperfeitas. O mesmo ocorreria com os conceitos indeterminados, estes dariam origem a atos vinculados, pois sua interpretação, consistente em reconhecer ou constatar uma realidade existente, apontaria sempre para uma única solução justa imposta pelo comando legal; portanto, seriam insuscetíveis, por si só, de atribuírem à Administração um poder discricionário propriamente dito. Segundo o autor, reconhecer discricionariedade ou margem de apreciação diante da interpretação dos conceitos indeterminados, acarreta, na prática, em sujeitar a realização de certos direitos fundamentais dos particulares ao livre critério da autoridade administrativa à semelhança do que acontecia no Estado Policial.[21]
Diante deste contexto, os conceitos jurídicos indeterminados estariam, de acordo com o jurista, sujeitos a controle total pelo Poder Judiciário: “a recusa ou redução do controlo jurisdicional dos ‘conceitos jurídicos indeterminados’ representaria a eliminação de uma parte essencial da proteção dos cidadãos.”[22] Além disso, o autor observa que, sendo a aplicação e interpretação da lei ao caso concreto uma atividade sempre vinculada, a dificuldade na realização do controle desta aplicação não pode ser entendida como uma base de legitimidade de discricionariedade ou de margem de interpretação para a Administração. No entanto, haveria limites para o controle jurisdicional que, em razão de inúmeras circunstâncias – por exemplo, o distanciamento do juiz do caso concreto – poderia até mesmo entender não controlar a decisão em sua plenitude.[23]
DOUTRINA NACIONAL
Na doutrina brasileira, temos o posicionamento de Eros Roberto Grau tendente a afastar qualquer atribuição de discricionariedade quando da concreção de conceitos jurídicos indeterminados.
De acordo com o jurista não é possível referir-se ao tema utilizando a denominação de conceitos jurídicos indeterminados, pois a indeterminação discutida na doutrina é a respeito dos termos aos quais se expressam os conceitos, estes entendidos como uma suma de ideias que, no mínimo, devem ser determinadas.[24]
O autor também diferencia a técnica utilizada pela Administração no exercício da discricionariedade daquela verificada na aplicação dos conceitos indeterminados. No primeiro caso o agente cuidaria da emissão de juízos de oportunidade e na eleição de indiferentes jurídicos; a segunda hipótese estaria relacionada à emissão de juízos de legalidade, formulados através da interpretação:[25]
A interpretação (interpretação/aplicação), consubstanciando prudência, que não conhece o exato, porém apenas o correto, supõe a faculdade, do intérprete, de escolher uma, entre várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo que essa escolha seja apresentada como adequada – sempre, em cada caso, inexiste uma interpretação verdadeira (única correta). (destaques do original).
Dessa forma, confrontando a definição de discricionariedade formulada por Bandeira de Mello, o jurista aduz que a doutrina tradicional confunde discricionariedade com interpretação. A discricionariedade seria sempre consequência de atribuição normativa conferida à Administração e as escolhas do administrador feitas a partir de juízos de oportunidade que comportam indiferentes jurídicos; nos conceitos indeterminados, a solução a ser encontrada se daria por meio da interpretação dos termos; assim, discordando de Garcia de Enterría e Fernádez quanto à possibilidade de apenas uma solução justa perante o direito quando da aplicação desses conceitos, Eros Grau afirma que no âmbito da interpretação inexiste providência ideal e, ainda que ela existisse, seria objetivamente incognoscível quanto ao atendimento da finalidade preconizada em lei.[26]
Em relação ao controle jurisdicional, o autor afirma que atos praticados em razão do interesse público não podem ser classificados como discricionários, uma vez que interesse público é um conceito indeterminado, passível de interpretação e, portanto, sujeito ao exame e controle do Poder Judiciário. Ao juiz caberia verificar se ato foi correto, isto é, se está inserido na moldura do direito, se o discurso que o justifica se processa de maneira racional, bem como se está de acordo com o código dos valores dominantes.[27]
Por fim, conclui que sendo a discricionariedade uma técnica de legalidade, seria injustificável no Estado de Direito a inclusão dos conceitos indeterminados em sua definição, pois referida percepção fragilizaria a legalidade introduzindo nela “um autêntico cavalo de troia”.[28]
Para Di Pietro a grande dificuldade reside em definir aprioristicamente todas as hipóteses em que o uso de conceitos indeterminados pela lei confere discricionariedade à Administração. Para a jurista, apenas pelo exame da norma, em cada caso, é que podem ser extraídas as conclusões. Assim, quando a lei se utiliza de conceitos técnicos que dependem de manifestação do órgão técnico, sem a possibilidade de mais do que uma solução válida juridicamente, não haverá discricionariedade. Ao contrário, haveria discricionariedade ao agente na hipótese de ser não ser vinculativa a conclusão do órgão técnico, pois em vista de todos os interesses públicos envolvidos na questão, ele poderia escolher entre obedecer ou não o parecer expedido pelo referido órgão.
Aos conceitos empíricos a autora afasta qualquer discricionariedade, porque quando a lei utiliza expressões como “caso fortuito”, “força maior”, “jogos de azar” etc., quer que sejam empregados em seu sentido usual. Dessa forma, existiriam critérios objetivos, práticos, extraídos da experiência comum que permitiriam concluir por uma única solução possível.
Contudo, em relação aos conceitos de valor, Di Pietro considera que haverá discricionariedade quando terminado o trabalho de interpretação não for atingida uma zona de certeza positiva ou negativa, ocasião em que restará uma zona cinzenta na qual se reconhece ao agente alguma margem de apreciação. De acordo com a jurista: “diante de uma decisão devidamente motivada em razões de razoabilidade ou aceitabilidade haverá discricionariedade a ser respeitada pelo Poder Judiciário”.[29]
Analisando a questão do ponto de vista de suas repercussões jurídicas, Dinorá Adelaide Musetti Grotti considera que o tema dos conceitos jurídicos indeterminados não é estranho ao tema da discricionariedade. Embora a questão trate de duas realidades distintas, um ato de intelecção e um ato de volição, o fenômeno jurídico que se opera no mundo dos fatos seria o mesmo, portanto, “não haveria razão para atribuir designações diferentes a situações com igual caracterização jurídica”.[30]
Partindo deste pressuposto, Mussetti Grotti esclarece que a existência de conceitos plurissignificativos não levará necessariamente à atribuição de competência discricionária, a solução só poderia ser fornecida casuisticamente, pois o exame de diversos aspectos como as circunstancias de fato, a finalidade da norma, as zonas de certeza positiva ou negativa diminuiriam o número de possibilidades, levando, até mesmo, a uma única opção legítima perante o direito.[31]
Regina Helena Costa afirma que quando a indeterminação do conceito não puder ser totalmente eliminada por meio de sua interpretação, remanescerá breve margem de liberdade ao aplicador da norma para preencher a significação do termo. Assim, “além de toda a interpretação possível restará, afinal, um campo nebuloso onde não há como desvendar um significado milimetricamente demarcado para os conceitos práticos”. Entretanto, seguindo a mesma linha de Mussetti Grotti, a autora esclarece que este fenômeno não ocorrerá sempre do manuseio, pela lei, dos conceitos indeterminados, devendo a questão ser resolvida casuisticamente.[32]
Em relação aos conceitos empíricos, esclarece não haver qualquer margem de liberdade para o aplicador, pois sua determinação se dá pela interpretação, sendo, portanto, ampla a possibilidade de controle jurisdicional, uma vez que é função típica deste Poder interpretar o alcance das normas jurídicas para sua justa aplicação. Por outro lado, aos conceitos de valor não é dada a mesma prerrogativa, tendo em conta que sua significação é preenchida por meio da apreciação subjetiva do órgão administrativo, exceto nos casos passíveis de se extrair por meio da interpretação apenas uma solução adequada ao caso concreto, hipótese em que o controle jurisdicional deve ser feito a fim de substituir decisão administrativa.[33]
Conforme já visto, Bandeira de Mello inclui no conceito de discricionariedade administrativa a fluidez dos conceitos como uma das causas geradora desse fenômeno. De acordo com o autor, o modo impreciso com que a lei descreve a situação fática (motivo, hipótese da norma) gera discricionariedade à Administração, o mesmo ocorre no caso da finalidade da norma que aponta para conceitos de valor. Assim, por exemplo, se a lei determinar que devam ser expulsas da praia pessoas que estejam trajando vestes de banho “pouco indecorosas”, o pressuposto do comando seria veste pouco indecorosa, conceito fluído, variável no tempo e no espaço. Contudo, de acordo com o jurista, a imprecisão não está no pressuposto em si mesmo considerado, mas sim na finalidade da norma que trata de moralidade pública. Isto é, dependendo da noção que se tenha de moralidade pública, determinado traje será pouco decoroso ou será decoroso.[34]
O autor também refuta a posição de Eros Grau que aduz não existir conceitos indeterminados e sim termos indeterminados de conceitos. Para o jurista, o conceito sempre seria certo, pois considerando tratar-se de uma suma de ideias, o mínimo que se esperaria deles é a precisão. Entretanto, Bandeira de Mello afirma que:[35]
Se a palavra fosse precisa – e não o conceito – bastaria substituí-la por outra ou cunhar uma nova para que desaparecesse a fluidez do que se quis comunicar. Não há palavra alguma (existente ou inventável) que possa conferir precisão às mesmas noções que estão abrigadas sob as vozes de “urgente”, “interesse público”, “pobreza”, “velhice”, “relevante”, “gravidade”, “calvície” e quaisquer outras do gênero. A precisão acaso aportável implicaria alteração do próprio conceito originalmente veiculado. O que poderia ser feito, evidentemente, seria a substituição de um conceito impreciso por um outro conceito – já agora preciso, portanto um novo conceito – o qual, como é claro, se expressaria através da palavra ou das palavras que lhe servem de signo. (grifos do original)
O jurista considera existir a possibilidade de diante do caso concreto a interpretação de conceitos como “pobreza”, “velhice”, “notável saber” etc. resultar numa multiplicidade de soluções válidas perante o direito. Dessa forma, restaria afastado qualquer controle jurisdicional, pois tendo o administrador adotado entendimento razoável não se poderá alegar qualquer transgressão à lei, pois, de um modo geral, a atribuição do juiz é de apenas reparar violações ao direito e não procedimentos que estejam em conformidade com o ordenamento jurídico.[36]
Ademais, Bandeira de Mello reconhece que a noção de discricionariedade não se limita apenas ao campo das opções administrativas efetuadas com base em critérios de conveniência e oportunidade, mas também à intelecção de conceitos vagos, uma vez que o fenômeno jurídico que resulta à administração é exatamente o mesmo.[37]
Por fim, em relação à interpretação dos conceitos indeterminados, o jurista aduz que esta deve ser feita com base em um critério socialmente reconhecido com o que lhes corresponde, pois apesar de indeterminados, haveria uma zona de certeza negativa em que é certo que sua aplicação não estaria abrigada. Além disso, a opinião pessoal do administrador acerca da concepção dos conceitos indeterminados não teria nenhuma relevância para a interpretação deles, devendo prevalecer o sentido razoavelmente reconhecido em dado meio social, bem como o contexto jurídico em que a norma está inserida.[38]
CONCLUSÃO
Analisadas as mais variadas opiniões acerca da matéria, é forçoso reconhecer que os conceitos jurídicos indeterminados, diante do caso concreto, podem conferir competência discricionária à Administração.
É impossível vislumbrar uma atividade legislativa que regule minuciosamente cada comportamento a ser adotado pela Administração quando confrontada com algum acontecimento da vida cotidiana. Justamente por este motivo, são editados comandos legais que explicitamente autorizam o administrador agir de acordo com os ditames da conveniência e oportunidade, sempre objetivando a satisfação do interesse público primário. Estes comandos dão origem aos chamados atos discricionários ou atos praticados no exercício da competência discricionária, sendo inequívoco que, por expressa determinação legal, compete exclusivamente à autoridade administrativa encontrar a melhor solução.
Contudo, mencionada competência discricionária não decorre apenas de expressa autorização da lei. A utilização de conceitos indeterminados pelo legislador revelam seu desejo de abarcar várias situações em apenas uma norma, conferindo ao administrador, pessoa mais próxima da realidade fática, a prerrogativa de analisar cada particularidade do caso concreto.
Parte da doutrina aduz que bastaria a interpretação destes conceitos para que se extraísse a melhor solução. Entretanto, conforme já demonstrado, inclusive entre os autores que discordam da posição aqui defendida, a interpretação do direito dificilmente comporta uma solução unívoca, o produto da interpretação de uma norma que contém conceitos plurissignificativos é, na maior parte das vezes, uma multiplicidade de soluções, cabendo ao administrador adotar a solução que reputar mais adequada ao caso concreto, partindo de um juízo de oportunidade e conveniência e sempre visando à consecução da finalidade legal que é o interesse público em sua mais diversas facetas.
Dessa forma, é equivocado colocar em lados opostos discricionariedade e interpretação quando justamente a interpretação acarreta competência discricionária. Isto é, a repercussão jurídica da discricionariedade decorrente da interpretação de conceitos indeterminados é a mesma daquela advinda da discricionariedade explicitamente prevista em lei: a possibilidade de o administrador escolher uma entre duas ou mais soluções válidas perante o direito.
Entretanto, a constatação deste fenômeno somente poderá ser verificada casuisticamente. Diante do caso concreto é que a autoridade saberá se a interpretação do conceito indeterminado lhe outorgará ou não competência discricionária, pois ainda que o conceito seja plurissignificativo, as contingências do momento, aliadas às técnicas de interpretação e exclusão da zona de certeza negativa poderá resultar em apenas uma solução, tornando o ato vinculado.
Por fim, o controle jurisdicional deverá operar na análise da proporcionalidade e razoabilidade da solução adotada.[39] Considerando que o conceito indeterminado não constitui um campo de livre apreciação, possuindo zonas de certeza negativa as quais é certa a sua não incidência, caberá ao juiz verificar, conforme observado por Flávio José Roman, se a autoridade administrativa ateve-se ao campo semântico razoável do conceito indeterminado, diante das circunstâncias concretas e das possíveis consequências do sentido empregado pela Administração.[40]