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Ensaio sobre justiça e lealdade

04/02/2017 às 13:10
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O presente ensaio tratará do questionamento levantado por Richard Rorty, em sua obra “Justiça como lealdade ampliada”, acerca das ideias de justiça e lealdade.

O presente ensaio tratará do questionamento levantado por Richard Rorty em sua obra “Justiça como lealdade ampliada”, acerca das ideias de justiça e lealdade. Além disso, analisará os conceitos e teorias utilizadas pelo autor para criticar ou defender, de modo a embasar a sua tese – de que a justiça é uma lealdade ampliada.

O termo “justiça” foi – e é – amplamente discutido e interpretado de maneiras diversas por vários filósofos. Uma das primeiras noções de justiça foi dada por Aristóteles. O filosofo defendia que toda ação humana é orientada a um fim que, através de sua racionalidade, o homem julga ser o bem. Logo, a ação humana tem como fim o que Aristóteles denomina “sumo bem”, que é o bem maior, fim último, autossuficiente. A forma de alcançar este bem máximo é através da chamada “vida boa”, vida virtuosa, que proporciona a verdadeira felicidade ao indivíduo. Aqui, Aristóteles formula a primeira ideia de razão prática (outro termo amplamente utilizado, e de diferentes formas). A razão prática consiste na prática da prudência, do “justo meio”. Exercitar a prudência requer também exercitar as virtudes. A justiça, para o filósofo, é uma virtude, que pode ser resumida na máxima “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”.[1]

Kant traz uma ideia de justiça menos subjetiva que a aristotélica. Abandona-se os conceitos de “fim” e “bem”, partindo para as noções de “dever” e de “lei”; procura-se a universalidade através do conceito de “lei moral”. A lei moral é um imperativo categórico[2], devendo ser obedecido seja seu fim qual for. Além disso, é derivada da razão, sendo, assim como esta, universal e necessária. Da mesma forma, a justiça também é originada na razão, e tem como fim não o bem, mas o próprio cumprimento da lei, que deve ser obedecida por todos. Kant esclarece, entretanto, que obedecer a lei é um ato de liberdade, já que a lei foi criada por todos, através da razão[3]. “O objetivo principal de Kant é aprofundar e justificar a idéia de Rousseau de que a liberdade consiste em agir de acordo com a lei que fixamos para nós próprios.” (SILVA, 1998, p.199)[4]. Ainda sobre a lei moral, Kant afirma que ela é puramente racional, mas pode sofrer influência de sentimentos irracionais que produzem discriminações injustas entre as pessoas.

Seguidor de Kant, Rawls vai tratar da justiça como equidade. O filósofo cria o conceito de "posição original”[5]. Neste estado, as pessoas estão envoltas pelo “véu da ignorância”, não sabendo a sua posição na sociedade. É nessa circunstância que os princípios da justiça são criados. A posição original e o véu da ignorância permitem que esses princípios sejam produzidos de forma racional, lógica, imparcial e equitativa. São dois os princípios básicos: garantia das liberdades individuais (pensamento, opinião etc.) e orientação das políticas públicas no sentido de diminuir as desigualdades sociais. Esses princípios devem nortear a criação das constituições, utilizando a racionalidade e a razoabilidade. Eles são invioláveis, como Rawls esclarece:

“A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais” (RAWLS, 2002, p. 3-4).[6]

O princípio da razoabilidade é o que permite a existência do pluralismo cultural. Deve-se aprender a admitir concepções diferentes, gerando um certo consenso dentro do pluralismo das sociedades. Sobre isso, Sidney Reinaldo da Silva comenta:

“Uma sociedade justa deveria admitir a existência de várias doutrinas abrangentes razoáveis ainda que conflitantes cada qual com suas próprias concepções de bem e cada uma coerente com a concepção política de pessoa. Assim produzir-se-ia um equilíbrio entre valores políticos e não políticos, um consenso sobreposto (overlapping consensus) entre elas. A concepção política não é cética ou indiferente: embora tenha seus valores específicos, ela mantém-se congruente com as concepções abrangentes.” (p. 9)[7]

A construção do overlapping consensus (o chamado construtivismo de Rawls) é dada através da razão prática. Não se deve achar que o termo “razão prática” é usado pelo autor com o mesmo sentido dado por Kant. A razão prática kantiana tem um caráter moral, indicando o que é moralmente aceito. Rawls utiliza esse termo de modo completamente diferente. Para ele, razão prática é a construção gradativa de um consenso universal em relação ao pluralismo cultural. Essa construção é espontânea, não imposta por algum tipo de autoridade – razão ou moral, por exemplo. A sua autoridade é derivada exatamente a forma como ela é concebida.

A razão, no paradigma da modernidade, surge como algo subjetivo, centrado no sujeito, na autoafirmação, não havendo interação com o exterior ao indivíduo. Habermas critica esse modelo, afirmando que essa é uma razão exclusiva, que tende à autodestruição. Na obra “Verdade e Justificação”, o autor defende uma razão comunicativa: “Essa racionalidade comunicativa exprime-se na força unificadora da fala orientada ao entendimento mútuo, discurso que assegura aos falantes envolvidos um mundo da vida intersubjetivamente partilhado e, ao mesmo tempo, o horizonte no interior do qual todos podem se referir a um único e mesmo mundo objetivo.” (HABERMAS, Verdade e Justificação, p.107). [8]

Habermas é um crítico da proposta construtivista de Rawls, por julgar que o próprio autor não conseguiu ser fiel à sua teoria. Richard Rorty vai mostrar, entretanto, que as teorias de Habermas e de Rawls se diferem apenas no aspecto da terminologia, tendo, no final, o mesmo objetivo. Através da sua concepção de razão prática, Rawls propõe que dê-se mais importância a como o conhecimento é construído do que ao conhecimento em si. Essa proposta assemelha-se com a teoria da razão comunicativa de Habermas, que pretende substituir a razão centrada no sujeito. Além disso, os dois filósofos desprezam a ideia de autoridade da razão, defendendo que a racionalidade deve ser usada como uma ferramenta de comunicação entre as pessoas para se chegar num ponto comum – uso da argumentação, e não da coerção.

Habermas, na sua teoria sobre o uso comunicativo da linguagem, distingue o uso estratégico da linguagem do uso genuinamente comunicativo da linguagem, afirmando que o primeiro é uma espécie manipulação retórica e o segundo é o uso de argumentos genuínos, válidos. Annete Baier teoria de modo a atenuar essa separação. Como esclarece Rorty “A sugestão de Baier de que assumimos a confiança antes do que a obrigação como nosso conceito moral fundamental, então, produziria um borrão na linha entre manipulação retórica e argumento genuíno que busca validade” (RORTY, 2005, p. 118). Baier questiona Habermas também quanto a moralidade. Para Baier, a moralidade tem início na relação de confiança recíproca entre as pessoas – o que se aproxima da concepção de lealdade – e não como uma imposição.

Aproximando-se dessa ideia de Baier, Michael Walzer contesta a ideia de Habermas de que a moralidade surge de forma rala e vai gradativamente tornando-se caudalosa. Walzer defende o caminho contrário: “a moralidade é caudalosa desde o início, integrada culturalmente, completamente ressonante, e revela-se mais rala somente em ocasiões especiais, quando a linguagem moral é voltada para propósitos especiais”.

Rorty utiliza as concepções de Rawls e Habermas acerca da racionalidade para defender a tese de que a justiça nada mais é do que uma lealdade ampliada. Essa separação surge com a ideia kantiana de que a justiça deriva da razão e a lealdade surge do sentimento. Entretanto, quando se substitui a coerção pela argumentação racional, o que produz a identidade moral (que é o que gera a lealdade) é a razão, e não o sentimento. Essa identificação moral baseada no compartilhamento racional e espontâneo de crianças em comum possibilita uma ampliação da lealdade. Percebe-se que essa lealdade ampliada origina-se no uso da razão. Logo, a diferenciação feita por Kant entre justiça e lealdade desaparece.

O que Kant afirmava ser um conflito entre justiça – obrigação moral (racional) – e lealdade é, para Rorty, o conflito entre lealdades diferentes. O autor utiliza exemplos para demonstrar isso. Um exemplo é o de se uma pessoa estiver sendo perseguida pela polícia e pedir abrigo a um familiar, a tendência é que este o esconda. Se, como consequência disso, alguém inocente for preso, surgirá um conflito entre a lealdade com o familiar e a justiça. Sobre isso, Rorty comenta

“Esse conflito será sentido, contudo, tão-somente na medida em que nos identificarmos com a pessoa inocente que prejudicamos. Se for com um vizinho, o conflito provavelmente será intenso. Se for com um estranho, sobretudo alguém de raça, classe ou nação diferentes, o conflito poderá ser consideravelmente mais fraco. Deve haver algum sentido em que ele ou ela seja ‘um de nós’, antes de começarmos a ficar atormentados pela questão de se fizermos ou não a coisa certa ao cometermos perjúrio. Assim, pode ser também adequado nos descrever como divididos entre lealdades conflitantes – lealdade para com nossa família e grupo amplo o suficiente para incluir a vitima de nosso perjúrio – em vez de divididos entre lealdade e justiça” (RORTY, 2005, p. 100).

Analisando as teorias de Habermas, Rawls, Baier, Walzer e Kant, concluiu-se que justiça e lealdade têm a mesma origem: a razão. Como conseqüência disso, e observando exemplos práticos, percebe-se que justiça nada mais é do que um tipo de lealdade ampliada, e o que muitos consideram conflito entre justiça e lealdade é apenas conflito entre lealdades diferentes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, André Luiz Souza. Críticas de Jürgen Habermas à “justiça como eqüidade”, de John Rawls. p. 2-4. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/Andre%20Luiz%20Souza%20Coelho_Teoria%20da%20Justica.pdf>. Acesso em: 01 abril 2013.

FREITAS, André Martins de. Racionalidade comunicativa na filosofia de Jürgen Habermas. Disponível em: <http://pensamentoextemporaneo.wordpress.com/2009/06/27/racionalidade-comunicativa-na-filosofia-de-jurgen-habermas/>. Acessado em: 01 abril 2013.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 3-4. (Coleção justiça e direito).

RICHARD, Rorty. Justiça como lealdade ampliada. In: _________. Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005. p. 101 – 122.

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível em: <http://www.uff.br/direito/images/stories/ARQUIVOS_PARA_DOWNLOAD/artigos_em_pdf/TeoriadaJusticaSenadoFederal.pdf>. Acesso em: 01 abril 2013.

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SILVA, Sidney Reinaldo da. Razoabilidade, Pluralismo E Educação Segundo John Rawls. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/8709/8709.PDFXXvmi=wVKj4W3NFDsJTx3rdQhDlgk5qb5Vujk3f5mj3q8I5Cs0avrnnJ2J1nPsAUo5fJ8uPvPTWZD3B63MDub1fdLhBBKbwagMUpiKV8FT8iWJp0w3vI4LWP4xrOKZZ2LTr4FodkilEg64gD8NldAi3ERvtCusEhn7m4vBpPX4649nIic5vMoArg6VTBozTNGgRdRi4PnbUwADPMImA7W2o3XiFnRzbzQ4MJmRzK3uiD89qRv1Zs3nw1HcpzMC9DGWm4OW>. Acessado em: 01 abril 2013.


Notas

[1] COELHO, André Luiz Souza. Críticas de Jürgen Habermas à “justiça como eqüidade”, de John Rawls. p. 2-4. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/Andre%20Luiz%20Souza%20Coelho_Teoria%20da%20Justica.pdf>. Acesso em: 01 abril 2013.

[2] “o imperativo categórico é aquele que ordena incondicionalmente, o que significa que ele ordena independentemente dos fins – contingentes ou necessários – que o sujeito tem em vista” COELHO, p. 5.

[3] COELHO, André Luiz Souza. Críticas de Jürgen Habermas à “justiça como eqüidade”, de John Rawls. p. 4-5. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/Andre%20Luiz%20Souza%20Coelho_Teoria%20da%20Justica.pdf>. Acesso em: 01 abril 2013.

[4]SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da Justiça de John Rawls. Disponível em: <http://www.uff.br/direito/images/stories/ARQUIVOS_PARA_DOWNLOAD/artigos_em_pdf/TeoriadaJusticaSenadoFederal.pdf>. Acesso em: 01 abril 2013.

[5] COELHO, André Luiz Souza. Críticas de Jürgen Habermas à “justiça como eqüidade”, de John Rawls.  Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/Andre%20Luiz%20Souza%20Coelho_Teoria%20da%20Justica.pdf>. Acesso em: 01 abril 2013.

[6] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli

Esteves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 3-4. (Coleção justiça e direito).

[7] SILVA, Sidney Reinaldo da.Razoabilidade, Pluralismo E Educação

Segundo John Rawls. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/8709/8709.PDFXXvmi=wVKj4W3NFDsJTx3rdQhDlgk5qb5Vujk3f5mj3q8I5Cs0avrnnJ2J1nPsAUo5fJ8uPvPTWZD3B63MDub1fdLhBBKbwagMUpiKV8FT8iWJp0w3vI4LWP4xrOKZZ2LTr4FodkilEg64gD8NldAi3ERvtCusEhn7m4vBpPX4649nIic5vMoArg6VTBozTNGgRdRi4PnbUwADPMImA7W2o3XiFnRzbzQ4MJmRzK3uiD89qRv1Zs3nw1HcpzMC9DGWm4OW>. Acessado em: 01 abril 2013.

[8] FREITAS, André Martins de. Racionalidade comunicativa na filosofia de Jürgen Habermas. Disponível em: <http://pensamentoextemporaneo.wordpress.com/2009/06/27/racionalidade-comunicativa-na-filosofia-de-jurgen-habermas/>. Acessado em: 01 abril 2013.

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Sobre a autora
Fábia de Brito Lima

Graduada no curso de Direito da Universidade Federal do Piauí – UFPI – Teresina/PI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fábia Brito. Ensaio sobre justiça e lealdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4966, 4 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54724. Acesso em: 21 nov. 2024.

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