Desde o alvorecer dos Estados Nacionais na Europa Centro-Ocidental, ocorrida nos primórdios da Idade Moderna (século XV d. C.), os estadistas e os seus representantes diplomáticos desempenham um papel de capital importância no âmbito das relações internacionais.
De outro lado, os governantes e líderes políticos, via de regra, atuam guiados unicamente por considerações práticas, tendo em vista os interesses políticos e econômicos dos seus respectivos países.
Um exame, ainda que superficial, da História comprova sobejamente as assertivas feitas acima, aí incluindo a recente invasão e posterior ocupação do Iraque pelos EUA e seus aliados.
De fato, a recente Guerra de "libertação" do Iraque das garras do ditador Saddam Hussein está sendo mal compreendida pela grande mídia, em especial a grande imprensa nacional. Ao menos, vejo que está sendo passado para a opinião pública nacional uma visão parcial ou deturpada dos motivos e/ou fatores que conduziram à invasão norte-americana daquele país do Oriente Médio, nação tão-sofrida por anos de uma ditadura sanguinária e vários conflitos, tanto internos, quanto externos.
Antes de prosseguirmos adiante, entendo ser necessário lembrar que a Guerra Fria (1946-1991) projetou os EUA para a linha de frente das crises internacionais em escala global. Em outras palavras, após o final da Segunda Guerra Mundial, os EUA descartaram de vez a sua tradicional política isolacionista quanto aos assuntos internacionais, adotando uma nítida política de comprometimento intervencionista em nível mundial. No seu confronto político-ideológico com a ex-U.R.S.S. os EUA montaram um sistema de autodefesa global alicerçado em alianças regionais ou locais, alianças essas que adquiriram caráter formal, v.g., a OTAN, ou um cunho informal, conforme as condições geopolíticas e econômicas regionais ou locais. Não raro, regimes ditatoriais e autoritários encontraram apoio dos EUA, ainda que relutante, justamente em nome do combate à ameaça soviética. A derrocada do império soviético, no início dos anos 90 do século passado, não resultou, necessariamente, no fim de tais alianças. (1)
Por outro lado, importa lembrar que Saddam Hussein chegou ao poder em meados da década de 1970 com a conveniência explícita do Ocidente e, durante vários anos, recebeu apoio e investimentos de vários países ocidentais, inclusive o Brasil, e da ex-U.R.S.S., sobretudo na forma de venda de armas ou de vultosos contratos de serviço (v.g., construção de obras de infra-estrutura).
Feitas as considerações supra, sigamos adiante.
As explicações oficiais norte-americanas e britânicas para a invasão e ocupação do Iraque foram, uma a uma, demolidas com o passar dos meses. Ficou evidente que as Armas de Destruição em Massa iraquianas não passam de uma miragem e as intenções humanitárias de ajudar os iraquianos, em especial os curdos localizados na região norte do Iraque e os xiitas do sul daquele país, estão se esfumaçando em meio ao caos político e social reinante no Iraque e à relutância de uma parcela crescente de iraquianos em ver os americanos e seus aliados como libertadores de fato e de direito.
A própria conquista e ocupação do Iraque mostrou-se, no decorre do tempo, um completo fiasco político, na medida em que a coalizão liderada pelos EUA obteve uma clara vitória militar em termos clausewitzianos, mas não alcançou o objetivo político de promover uma ocupação pacífica daquela infeliz nação e promover a reestruturação política e econômica iraquiana em conformidade com os interesses do Ocidente (leia-se, dos EUA).
Na verdade, as baixas civis e militares norte-americanas se avolumam dia-a-dia sem que haja uma perspectiva de solução definitiva, pelo menos a curtíssimo prazo, para as agruras do povo iraquiano e para o derramamento de sangue diário que ocorre em solo iraquiano.
O conflito de guerrilhas que se instalou no Iraque pós-ocupação só pode ser compreendido a partir como um confronto entre duas culturas militares totalmente distintas: a cultura militar ocidental de um lado e a cultura militar islâmica de outro. Nestes termos, o radicalismo político inato e a xenofobia viceral dos vários grupos de militantes xiitas e sunitas existentes no Iraque pode vir a se tornar um fator de instabilidade de conseqüências graves e imprevisíveis, caso os americanos permaneçam por um longo período de tempo no Iraque. A queda de Saddam Hussein e a sua posterior captura pelos americanos em meados de 2003 foi um bem menor para os EUA e para o povo iraquiano.
Por outro lado, entendo que o conflito difuso que se seguiu à derrota de Saddam Hussein pode, eventualmente, prenunciar tempos escuros ou de sérias dificuldades econômicas e políticas para o povo iraquiano, fato esse que não está sendo devidamente apercebido por boa parte da opinião pública, em especial a brasileira. As diferenças religiosas entre a maioria xiita e a minoria sunita do Iraque, somada ao pluralismo étnico existente nesse país, são ingredientes altamente explosivos e uma dor de cabeça para os americanos e os seus aliados (ingleses, australianos, italianos, etc.). (2)
Em conformidade com o discorrido no início deste artigo, os verdadeiros motivos para a invasão e a ocupação do Iraque pelas forças militares norte-americanas se inserem na lógica da política externa norte-americana pós-Guerra Fria em função de dois fatores ou elementos condicionantes: 1º.)fatores econômicos; e 2º.)fatores geopolíticos. Por outras palavras, o Iraque recebeu a "visita" das tropas estado-unidenses unicamente por causa dos interesses econômicos e das necessidades geo-estratégicas dos EUA.
Os aludidos fatores econômicos carecem de maiores explicações. Qualquer pessoa medianamente informada ou esclarecida sabe que os EUA sempre tiveram interesse em acessar e controlar diretamente os gigantescos recursos petrolíficos iraquianos.
Quanto aos fatores geopolíticos, importa destacar que os mesmos não foram objeto de maiores destaques na época da invasão do Iraque e, ainda hoje, não são motivo de maiores reflexões ou discussões amplas por quem quer que seja, salvo alguns especialistas em relações internacionais.
Ao invadir e ocupar o Iraque em 2003 os EUA deram um passo importante para estabelecer o controle das rotas comerciais e de comunicação entre a Europa e o Extremo Oriente, bem como possibilitou aos norte-americanos uma excelente posição estratégica para "acertar as contas" com o Irã, país vizinho do Iraque. Não se pode esquecer que a Revolução Xiita, que derrubou o falecido Xá Reza Parlevi em 1979 e elevou ao poder o Aiatolá R. Komehini, representou um sério golpe nos interesses políticos, militares e econômicos dos EUA naquela região do planeta, além, é claro, de ter sido um profundo golpe no orgulho norte-americano. (3)
O eventual controle das rotas comerciais e de comunicação entre a Europa e o Extremo Oriente que passam pelo Oriente Médio dariam aos EUA um poder nunca vista antes na História, na medida em que permitiria aos norte-americanos manipular, ao seu bel-prazer, o fluxo comercial e financeiro entre a Europa e a Ásia.
Acrescente-se a tudo isso, o fato de que a invasão norte-americana apresentou aos militares norte-americanos a oportunidade de experimentarem, in loco, novos armamentos e táticas militares que, eventualmente, podem ser utilizados em futuros conflitos militares, tanto no próprio Oriente Médio, quanto alhures.
A oposição de alguns países à invasão e ocupação norte-americana do Iraque, notadamente França, Alemanha, Rússia e China, nada mais é que o resultado dos respectivos interesses econômicos e políticos que eventualmente foram contrariados ou violados com a invasão e ocupação daquele país.
Em termos da geopolítica internacional deste começo do Terceiro Milênio, o que está por detrás da resistência de alguns países à aludida ocupação do Iraque é a (re)definição de correlações de forças no tocante à (re)distribuição do botim econômico e da (re)estruturação da hierarquia de influência militar na região, bem como o receio de que os EUA se sintam tentados a fazer o mesmo com outras nações num breve espaço de tempo. (4)
Aqueles países que firmaram posição contrária à invasão americana do Iraque perceberam que tal invasão alterou significativamente a correlação de forças e interesses no Oriente Médio na medida em que possibilitou o incremento do poderio e influência americana naquela região e o correspondente decréscimo do poderio e influência desses países.
Uma vez que as grandes potências equacionem os respectivos interesses no Iraque, e por tabela em toda a região do Oriente Médio, em conformidade com as suas necessidades econômicas e respectivo poderio militar, não me surpreenderia em ver o sofrido povo iraquiano ser abandonado à própria sorte, sem qualquer esperança de um futuro melhor.
Infelizmente, esta é mais uma dura lição da História que poderá se concretizar num curto lapso de tempo.
Por oportuno, ressalte-se que, diferentemente do que ocorreu em 1990/1991 - quando da Primeira Guerra do Golfo -, não houve qualquer ataque iraquiano a nenhum país vizinho, ou mesmo ameaça de agressão, que justificasse o direito à autodefesa dos aliados árabes dos EUA na região.
Os mecanismos políticos e jurídicos criados após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 para a solução dos conflitos militares, manter a paz internacional, bem como para reprimir a prática de crimes de guerra e do terrorismo internacional em larga escala, se mostraram totalmente impotentes para impedir a invasão do Iraque e o imbróglio subseqüente, justamente porque o que acabou prevalecendo foram os interesses da superpotência americana.
Neste diapasão, entendo que se deve incluir a ONU no rol das baixas da Segunda Guerra do Golfo, eis que foi simplesmente desconsiderada, sobretudo no tocante a sua função de mantenedora da paz e da segurança mundiais. Importa lembrar que o artigo 24 da Carta das Nações Unidas, da qual os EUA é signatário, proíbe o uso da força militar, ou ameaça de força militar, contra a integridade de um país ou a sua independência política, salvo nas exceções previstas no artigo em tela, a saber: 1º.)autodefesa individual ou coletiva; 2º.)mediante autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU; e 3º.)mediante intervenção humanitária que visem remediar situações de crise decorrentes de catástrofes naturais e/ou violentos conflitos que afetem diretamente a população de determinado país ou região.
Resumindo tudo o que foi colocado até aqui, a lição mais importante que podemos abstrair da invasão militar do Iraque, no âmbito da geopolítica internacional contemporânea, é que a velha raison d’état ainda é o elemento predominante ou fundamental nas relações entre os Estados-Membros do sistema internacional atualmente vigente. Certamente, a invasão e ocupação do Iraque resultou de uma decisão tomada em conformidade com os fins estratégicos da política externa norte-americana e não por causa dos sentimentos altruístas do Presidente George W. Bush Jr.
De fato, o combate ao terrorismo de origem muçulmana e a eliminação das supostas Armas de Destruição em Massa (ADM) que o Senhor S. Hussein tenha eventualmente desenvolvido escondem uma triste verdade: o interesse das grandes potências em submeter um país subdesenvolvido aos seus desígnios econômicos e estratégicos. Ainda hoje, as preocupações humanitárias pesam muito pouco em face dos interesses das grandes potências e, enquanto tal, as manifestações pacifistas ocorridas nos EUA e na Europa contra a invasão e ocupação do Iraque, apesar de expressivas e numerosas, não foram obstáculo intransponível para que o Iraque fosse atacado e ocupado em apenas um mês.
Apesar de reconhecer que muito foi tentado e feito nos últimos cinqüenta ou sessenta anos para se construir uma ordem política e social internacional mais justa, a triste verdade é que não existe, na prática, uma motivação jurídica supra-estatal que permita soluções eficazes e coerentes para os graves problemas internacionais existentes neste início do século XXI.
A título de conclusão deste opúsculo, entendo que as recentes e lamentáveis violações ao Direito de Guerra maculam os EUA. Em especial, as claras agressões e/ou desrespeitos aos direitos dos prisioneiros de guerra iraquianos feitas por militares norte-americanos atentam não somente contra o próprio Direito Internacional como também contra os princípios éticos, políticos e sociais que sempre regeram a Sociedade Americana desde os seus primórdios em meados do século XVIII.
Notas
(1)Vale lembrar que, com o fim da U.R.S.S., a OTAN, criada em 1949 justamente para fazer frente a uma possível invasão soviética à Europa Centro-Ocidental, viu o número de países-membros crescer significativamente com o ingresso de vários países da ex-Cortina de Ferro.
(2)Na minha visão, resta evidente que as baixas fatais causadas por constantes ataques contribuem para salopar o moral e a autoridade das tropas americanas e britânicas aquarteladas no Iraque no período pós-invasão. No caso, mesmo a esmagadora superioridade tecnológica militar ocidental e o profissionalismo apurado das tropas anglo-americanas, não são suficientes para contrabalançar a engenhosidade e a determinação fanática dos iraquianos que se opõem à ocupação do Iraque.
Por outro lado, é forçoso lembrar que alguns grupos radicais islâmicos iraquianos que se opõem à ocupação norte-americana já ameaçaram promover ataques contra a pequena minoria cristã existente no Iraque em nome da jihad - a "Guerra Santa".
(3)A Revolução Xiita criou profundos ressentimentos nos altos círculos do poder político e militar norte-americanos, ressentimentos esses que ainda não foram totalmente absorvidos ou esquecidos por segmentos importantes do governo americano. Some-se a isto o fato de que o Irã, desde a derrubada do Xá, adotou uma notória política de apoio a grupos extremistas islâmicos em todo o mundo árabe, bem como, mais recentemente, pôs em prática a construção de usinas nucleares e o desenvolvimento da tecnologia de enriquecimento do urânio, o que pode, num futuro muito próximo, dar àquele país o acesso a armas nucleares, fato este que não é, evidentemente, do inteiro agrado dos norte-americanos.
(4)Não é de se surpreender que a Coréia do Norte, nação que está sendo duramente pressionada pelos EUA em virtude dos seus programas nuclear e de construção de mísseis de médio alcance, foi, e ainda é, um dos países que mais criticaram a invasão e ocupação do Iraque pelos norte-americanos.