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Dos pressupostos processuais e das condições da ação no processo civil

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27/07/2004 às 00:00
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3. CONDIÇÕES DA AÇÃO

3.1. Breve introdução

Ingressa-se, agora, num dos temas mais inquietantes da seara processual, qual seja, a ação. No dizer de Liebman, sobre a ação "está construído todo o sistema do processo." [92]

Ao longo dos séculos, mormente após a conquista da autonomia científica do direito processual, o instituto da ação vem sendo objeto de discussões pelos processualistas. A busca pela natureza jurídica é resultado de um longo processo histórico-evolutivo, o qual teve início com a concepção civilista do direito romano, perdurando até os dias de hoje as divergências a respeito.

Fábio Gomes, estudioso do tema há mais de vinte anos, atenta para a necessidade de uma adequada compreensão do conceito de ação e de mérito, sobretudo para a aplicação correta dos artigos 267 e 301 do CPC. [93]

A carência de ação constitui a principal questão da problemática que envolve o tema. A ausência de qualquer das condições da ação leva o juiz a proferir uma sentença meramente terminativa, isto é, sem adentrar no mérito da causa. Contudo, em muitos desses casos, embora profira sentença terminativa, o juiz acaba apreciando o mérito da questão.

É por essas e outras razões, que Alberto dos Reis trata o tema da ação, aqui abordado, como "ponto melindroso e grave, porque nem sempre é fácil a discriminação (entre ela e o mérito)". [94]

3.2. Teorias acerca da natureza jurídica da ação

Ao longo dos tempos, várias teorias surgiram com o intuito de determinar a natureza jurídica da ação. As concepções mais relevantes e que merecem destaque são: a teoria civilista; a teoria da ação como direito concreto; a teoria da ação como direito abstrato e a teoria eclética.

1.A teoria civilista

Tendo na pessoa de Savigny seu maior precursor, a teoria clássica ou civilista considerava a ação como anexo do direito material. Partindo da concepção dos romanos, retratada na definição de Celso (nihil aliud est actio quam ius, quod sibi debeatur judicio persequendi), os civilistas entendiam ser a ação como o direito de pleitear em juízo o que nos é de direito. Conforme afirmava Savigny, a ação seria senão, o próprio direito material em movimento.

Segundo esta doutrina, também conhecida como imanentista (porque imanente ao direito material), a ação seria "o direito que o titular de determinado direito tinha de pedir em juízo exatamente aquilo que lhe era devido em função das normas de direito material" [95].A ação, portanto, era considerada mero apêndice, anexo do direito material.

Conforme aduz Cândido Rangel Dinamarco,

nesse contexto, vista com os olhos da cultura atual, actio era muito mais que ação – era um conceito intrincadamente sincrético, que fundia em si os dois conceitos de direito subjetivo e do direito de buscar sua satisfação por via judicial. [96]

Face à autonomia do direito processual em relação ao direito material, a teoria civilista não pode ser aceita. Se adotada, só haveria ação se o pedido fosse julgado procedente. Ademais, não explica a existência da ação declaratória negativa, em que o autor vai a juízo pleitear, v. g., a inexistência de um débito contra ele cobrado.

3.2.2. Teoria da ação como direito concreto

Da polêmica travada em meados do século XIX entre os juristas alemães Windscheid e Muther, surgiu a teoria concretista, cujo mérito maior foi a afirmação da autonomia do direito de ação. [97]

Em 1856, Bernhard Windscheid publicou na Alemanha um trabalho sobre a actio romana intitulado Die Actio des römischen Civilrecths, vom Standpunkte des heutigen Rechts (A actio do Direito Civil Romano do ponto de vista do Direito moderno, Düsseldorf). Tal obra é considerada um os mais importantes marcos do conceito de ação, e mesmo do próprio direito processual civil, malgrado se tratasse de um livro de direito civil [98]. Windscheid afirmava que, para os romanos, a actio não era uma forma de defesa de um direito, mas sim o próprio direito. O cidadão romano não era um titular de um direito contra alguém, senão de uma actio, isto é, do poder de agir contra outrem. Assim, enquanto hoje se imagina a ação como o primeiro ato processual de quem deduz um pretensão em juízo, os romanos entendiam por actio toda atividade do autor desenvolvida até a sentença. [99]

A polêmica surgiu quando Teodor Muther, então professor da Universidade de Könisberg na Alemanha, publicou uma obra em 1857 com o objetivo de contestar o trabalho de Windscheid. A impugnação de Muther intulava-se Zur Lehre von römischen Actio, dem heutigen Klagerecht, der Litiscontestation und der Singularsuccession in Obligationen – Eine Kritikl des Windscheid’schen Buches (Sobre a doutrina da actio romana do direito de acionar atual, da litiscontestação e da sucessão singular nas obrigações – crítica ao livro de Windscheid, 1857). Para Muther, no direito romano, a actio deve ser compreendida, em princípio, como ato bilateral pelo qual se dava início ao processo, pois na fase das ações da lei (legis actiones) a ninguém era permitido ingressar em juízo desacompanhado da parte adversa. Como a actio advinha de agere (comparecer, falar diante do pretor), também indicava a própria fórmula escrita nesse rito [100]. Fábio Gomes ensina que Muther foi ainda mais explícito ao afirmar que

a par dos direitos individuais existia um direito à proteção do Estado, razão pela qual não necessitavam os romanos pressupor uma lide, e que a relação de direito à fórmula com o direito originário consistia no fato de que no primeiro o obrigado era o pretor, como representante da soberania do Estado, e no segundo era o cidadão particular. E mais: enquanto o direito à fórmula era público, o direito originário (subjetivo material) era privado. [101]

Windscheid, no mesmo ano, apresentou sua réplica ao trabalho de Muther (Die Actio. Abwehr gegen Dr. Th. MutherA actio. Réplica ao Dr. Th. Muther, Düsseldorf, 1857). Embora num primeiro momento Windscheid afirme que as críticas de Muther são infundadas, acaba apoiando a tese deste, admitindo a existência de direitos de naturezas diversas: um dirigido contra o Estado, outro contra o particular. [102]

Em 1885, Adolf Wach publicou uma monografia sobre a ação declaratória, na qual demonstra a independência entre o direito de ação e o direito subjetivo material, deixando sem qualquer poder de reação os civilistas. Para Wach, a ação não se confunde com o direito material, entretanto, dele deverá decorrer sempre, com exceção da ação declaratória negativa [103]. Embora autônoma, a ação depende da existência do direito material, o que significa dizer que o exercício do direito de ação só é possível quando resultasse uma sentença favorável.

A teoria concretista não ficou imune às críticas. A doutrina apontou algumas falhas na posição de Wach, fazendo com que ela não obtivesse êxito em nosso sistema. Ao pregar que o direito à ação só é possível quando resultasse uma sentença favorável, a teoria não explica qual a natureza do direito exercido diante da improcedência da ação. Além disso, "ligando a ação ao direito a uma sentença favorável, ter-se-á que conferi-la também ao réu". [104]

Como dito alhures, a maior façanha da teoria da ação como direito concreto foi desvincular a ação do direito material, afirmando sua autonomia. Todavia, vale reproduzir a posição do professor Cândido Rangel Dinamarco, alicerçada nos ensinamentos de Vidigal:

Na realidade, tal linha de pensamento consistia somente em distingüir o conceito da ação em face do direito subjetivo material, sem no entanto demonstrar totalmente a sua autonomia: se a ação não é o próprio direito subjetivo mas não existe sem que ele também exista, ela não poderia ser considerada verdadeiramente autônoma. [105]

De grande relevância é também a teoria da ação como direito potestativo formulada por Chiovenda, considerada mera variante da concepção concretista. O mestre peninsular afasta o caráter publicístico da teoria de Wach, entendendo que a ação não é dirigida contra o Estado, mas contra o adversário, sujeitando-o [106]. Afirma Chiovenda:

A ação é um poder que nos assiste em face do adversário em relação a quem se produz o efeito jurídico da atuação da lei. O adversário não é obrigado a coisa nenhuma diante desse poder: simplesmente lhe está sujeito. Com seu próprio exercício exaura-se a ação, sem que o adversário nada possa fazer, quer para impedi-la, quer para satisfazê-la. [107]

Apesar do prestígio que gozava Chiovenda na Itália, sua teoria não foi poupada de críticas. Alfredo Rocco discorda da concepção chiovendiana, entendendo que a inexistência de uma obrigação por parte do réu, frente ao exercício de um direito potestativo por parte do autor, produziria uma relação jurídica deformada, já que teria um termo só. O que Chiovenda considerou como direito autônomo e potestativo, nada mais é do que a faculdade, inserida naquele direito de iniciar o exercício do mesmo através de uma declaração de vontade expressa. [108]

3.2.3. Teoria da ação como direito abstrato

A teoria do direito abstrato precedeu à teoria do direito concreto. O próprio Adolf Wach formulou críticas contra a concepção abstratista. Contudo, para que houvesse uma melhor compreensão das várias teorias, preferiu-se analisar após a teoria do direito concreto o posicionamento daqueles que viam a ação como direito abstrato, considerado mais avançado em relação à teoria de Wach.

A fundação do pensamento abstrato deveu-se à publicação, no final do século XIX, de duas obras: Biträge zur Theorie des Klagerechts (Contribuição à teoria do direito de queixa), de autoria do húngaro Plósz, publicada em 1876 mas só traduzida para o alemão em 1890; e Einlassungszwang und Urtheilsnorm (Ingresso forçado e norma judicial), escrita pelo alemão Degenkolb e publicada em Leipzig em 1877. [109]

Plósz e Degenkolb procuraram demonstrar em seus trabalhos, que a ação independia do direito material. Para o exercício do direito de ação, bastava o titular de uma pretensão insatisfeita levar ao conhecimento do Estado-juiz a situação, tivesse ou não razão. Dinamarco esclarece que "ser direito abstrato significa ser desligado do direito subjetivo material, prescindindo-se da existência deste quando se trata de conceituar a ação – ou seja, abstraindo-se dele". [110]

A ação é um direito público, subjetivo e abstrato, cuja manifestação se dá quando o autor formula sua pretensão perante o Estado, cujo pronunciamento era obrigatório diante da vedação da autotutela. Nesse sentido, Fernando da Costa Tourinho Filho pontifica que o direito de ação não era apenas autônomo, distinto do direito que ele tende a fazer valer em juízo; não era um direito contra o réu, mas contra o Estado, para que este exercesse o seu poder de jurisdição; não era um direito condicionado à existência do direito material violado, mas, independente, porquanto o direito de ação existe ainda que a demanda seja julgada improcedente. E além de independente, além de ser distinto do direito material, de ser público, genérico e indeterminado, era, acima de tudo, um direito abstrato, isto é, com existência pré-processual. Concebia-se, pois, a ação, sob um ângulo bem vasto, como um direito subjetivo do cidadão, emanado do statu civitatis, de se dirigir incondicionalmente ao Poder Judiciário. [111]

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Não obstante ser seguida pela maioria dos processualistas modernos, a teoria da ação como direito abstrato ainda é objeto de críticas devido a sua tendência generalizadora. Rodrigo da Cunha Freire, reproduzindo lição de Botelho de Mesquita aduz que "a teoria dominante, por levar às últimas conseqüências a tão decantada autonomia da ação e do processo, não logra estabelecer o nexo que deve existir entre o processo e o direito material e acaba por aniquilar esse direito". [112]

No dizer de Lopes da Costa:

A teoria abstrata esvasia o processo de seu conteúdo material, que lhe explica a finalidade, reduzindo-o a um simples mecanismo de que falava Dostoievsky, nas Recordações da Casa dos Mortos, girando à toa sem nada lá dentro para triturar, indiferente ao rendimento do trabalho. [113]

3.2.4. Teoria eclética de Liebman

Após realizar uma análise detida das concepções desenvolvidas ao longo dos tempos, Liebman observa que dentre as diversas posições doutrinárias a respeito da ação, merecem destaque as duas teorias que a concebem como direito autônomo: a teoria do direito concreto, que define a ação como o direito a uma sentença favorável, e a teoria do direito abstrato, a qual considera a ação como direito de provocar a atuação do Estado-juiz.

Segundo Liebman, a adoção individual das teorias acima avençadas seria insuficiente para explicar o direito de ação. Isto porque a concepção concretista estuda a ação apenas do ponto de vista do autor, e equivoca-se ao concedê-la ao vitorioso com a sentença favorável. De outro lado, a teoria abstrata visualiza a ação sob o prisma do juiz, e não a identifica ainda, mas apenas seu fundamento, sua existência como garantia constitucional, sem qualquer pressuposto fático. [114]

Desta forma, Liebman afasta o caráter concreto da ação, "pois a única coisa certa é que o juiz sentenciará, e a ação tem por objeto imediato justamente esse seu provimento, qualquer que ele seja, favorável ou desfavorável" [115]. Ao realizar a distinção entre a ação em sentido constitucional (incondicionada) e a ação em sentido processual (condicionada), Liebman se afasta da concepção abstrata. Ensina o mestre:

No seu significado pleno e verdadeiro, a ação não compete de fato a qualquer um e não possui conteúdo genérico. Ao contrário, ela se refere a uma fattispecie determinada e exatamente individuada, e é o direito de obter que o juiz sentencie a seu respeito, formulando (ou atuando) a regra jurídica especial que a governa. Ela é, por isso, condicionada a alguns requisitos que devem ser verificados em cada caso, preliminarmente. [116]

Assim, é ação na visão de Liebman, o direito público, subjetivo, de provocar a atuação da jurisdição, para que se possa obter um pronunciamento sobre o mérito da questão, isto é, o julgamento do pedido, a decisão da lide, desde que preenchidas as condições da ação. A ausência se qualquer destas condições impede o juiz de apreciar o mérito da causa e, por corolário, implica na inexistência da própria ação.

Impõe-se, neste momento, esclarecer, a posição de Liebman sobre lide, mérito e jurisdição.

A lide é definida por Liebman como o conflito efetivo de pedidos contraditórios. Não compartilha ele, portanto, da posição de Carnelutti, e com razão afirma que, se o conflito de interesses não for trazido para o processo conforme se verificou na vida real, não cabe ao juiz conhecer do que não constitui objeto do pedido [117]. Para Liebman, a lide é um fenômeno endoprocessual. No que tange ao mérito, ele se identifica com o conceito de lide, incluindo-se nele todas as questões controversas entre as partes posta à apreciação do juiz, cuja solução pode levar à procedência ou improcedência do pedido. Por jurisdição, Liebman entende como atividade mediante a qual o poder judiciário possibilita, na prática, a realização da ordem jurídica, através da aplicação da lei aos casos concretos. E essa realização só é conseguida pela apreciação do mérito. [118]

3.2.4.1. Análise das condições da ação

Embora autônomo e abstrato, o direito de ação está instrumentalmente ligado a uma pretensão sobre a qual deverá incidir a prestação jurisdicional invocada. Dessa forma, para que o juiz possa adentrar no mérito da questão, é necessário o preenchimento de determinadas condições que se relacionam com a pretensão a ser julgada. Discípulo de Liebman e propagador de suas idéias no Brasil, José Frederico Marques ensina que "chamam-se condições da ação os elementos e requisitos necessários para que o juiz decida do mérito da pretensão, aplicando o direito objetivo a uma situação contenciosa". [119]

Nas palavras de Liebman, as condições da ação

são os requisitos de existência da ação, devendo por isso ser objeto de investigação no processo, preliminarmente ao exame do mérito (ainda que implicitamente, como se costuma ocorrer). Só se estiverem presentes essas condições é que se pode considerar existente a ação, surgindo para o juiz a necessidade de julgar sobre o pedido (a domanda) para acolhê-lo ou rejeitá-lo. Elas podem, por isso, ser definidas também como condições de admissibilidade do julgamento do pedido, ou seja como condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência à situação concreta (concreta fattispecie) deduzida em juízo. [120]

A concepção liebmaniana da ação desfruta de largo prestígio no Brasil, tanto que o CPC a adota claramente ao determinar a extinção do processo sem resolução do mérito na ausência de quaisquer das condições da ação (art. 267, VI).

O professor Alfredo Buzaid, na condição de autor do anteprojeto do CPC de 1973, inclui as três condições oriundas da teoria de Liebman: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade ad causam e interesse de agir. Contudo, em 1970, entrou em vigor na Itália a lei que instituiu o divórcio (lei nº 898 de 1.12.70), o que fez com que Liebman, na 3ª edição de seu manual se sentisse desencorajado a incluir a possibilidade jurídica como condição da ação, pois o divórcio era o principal exemplo de impossibilidade jurídica da demanda. Por ironia do destino, em 1973, ano em que entrou em vigor a lei nº 5.869 que instituiu o novo CPC brasileiro, consagrando legislativamente a teoria liebmaniana com as suas três condições, surgia, outrossim, a nova posição do pai da idéia, renunciando a uma delas. [121]

A partir da 3ª e 4ª edições de seu manual, Liebman aponta apenas duas condições da ação: a legitimação e o interesse de agir. As hipóteses de impossibilidade jurídica do pedido passaram a ser vistas como ausência de interesse de agir.

A expressão "condições da ação" é criticada pela doutrina. Seria melhor considerar a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade ad causam, como "requisitos para a prolatação de uma sentença de mérito". No magistério de Alexandre Freitas Câmara, de fato

não se mostra adequada a utilização da designação "condições", uma vez que não se está aqui diante de um evento futuro e incerto a que se subordina a eficácia de um ato jurídico, sendo por esta razão preferível falar em requisitos.

Na seqüência, conclui o autor:

Assim, e considerando que a presença de tais requisitos se faz necessária para que o juízo possa proferir o provimento final do processo (a sentença de mérito no processo de cognitivo, a satisfação do crédito no processo executivo, a sentença cautelar no processo dessa natureza), é que preferimos a denominação requisitos ao provimento final. [122]

3.2.4.1.1. Legitimidade das partes

A legitimidade das partes, também conhecida como legitimatio ad causam, pode ser definida, nas palavras de Alfredo Buzaid, como a "pertinência subjetiva da ação" [123]. Diz respeito à titularidade a ser observada nos pólos ativo e passivo da demanda.

Conforme preceitua o art. 3º do CPC, "para propor ou contestar uma ação é necessário ter interesse e legitimidade". Assim, somente os titulares da relação jurídica de direito material deduzida em juízo é que podem demandar. Na ação de despejo, v.g., são partes legítimas o locador (ativa) e o locatário (passiva), pois figuram na relação jurídica de direito material (contrato de locação) trazida a juízo.

Segundo Lopes da Costa, parte legítima "é a pessoa do processo idêntica à pessoa que faz parte da relação jurídica de direito material e nesta ocupa a posição correspondente à (sic) que vem tomar no processo". [124]

Em regra, só está autorizado a demandar o titular do interesse deduzido em juízo. Nesse caso, fala-se em legitimação normal ou ordinária, hipótese em que as partes do processo coincidem com as partes da relação substancial.

Todavia, excepcionalmente, a lei permite que alguém atue em nome próprio para preservar direito alheio, ou seja, concede legitimidade à pessoa que não é titular do direito material. É a hipótese de legitimidade extraordinária ou anômala, que segundo Liebman "é o direito de perseguir em juízo um direito alheio". [125]

A doutrina costuma apontar duas espécies de legitimidade extraordinária: exclusiva e concorrente.

A legitimidade extraordinária é exclusiva quando a lei permite apenas o legitimado extraordinário a demandar, retirando a qualidade para agir do legitimado ordinário, titular do interesse. É o caso do marido que atua em juízo na defesa dos bens dotais da mulher (art. 269, III do Código civil).

A legitimidade extraordinária é concorrente quando a lei autoriza tanto o legitimado extraordinário quanto o ordinário a demandar, isoladamente, ou em conjunto. É o que ocorre, v.g., "na ação de investigação de paternidade, em que o titular do interesse ao reconhecimento da paternidade é legitimado ordinário e o Ministério público é legitimado extraordinário concorrente". [126]

Alexandre Freitas Câmara aponta, ainda, uma terceira espécie de legitimação anômala, a legitimidade extraordinária subsidiária, que ocorre "quando o legitimado extraordinário só pode demandar na omissão do ordinário" [127]. Ex.: qualquer credor pode propor ação revocatória se o síndico não o fizer.

Grande parte dos processualistas, arraigados nas lições de Chiovenda, consideram substituição processual e legitimação extraordinária como expressões sinônimas. Contrapondo esse pensamento, vale ressaltar o entendimento de Alexandre Freitas Câmara, para quem a substituição processual só ocorre

quando, em um processo, o legitimado extraordinário atue em nome próprio, na defesa de interesse alheio, sem que o legitimado ordinário atue com ele. (...) Em outros termos, só ocorrerá substituição processual quando alguém estiver em juízo em nome próprio, em lugar do (substituindo) legitimado ordinário. [128]

A legitimação extraordinária tem representado papel de extrema relevância nos dias atuais, principalmente no que concerne ao amparo dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Basta observar o conteúdo da lei de Ação civil pública (nº 7.347/85), o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, CF) e as ações coletivas do Código de defesa do consumidor (Lei nº 8.078/90).

3.2.4.1.2. Interesse de agir

Alguns autores consideram inapropriado o termo "interesse de agir" por ser destituído de técnica e precisão. Como bem destaca Nelson Nery Júnior, "agir pode ter significado processual e extraprocessual, ao passo que interesse processual significa, univocamente, entidade que tem eficácia endoprocessual". [129]

O termo interesse é empregado em dois sentidos: como sinônimo de pretensão, classificando-se, nesse caso, como interesse substancial ou primário, e para definir a relação de necessidade entre a dedução de uma pretensão em juízo e a atuação do poder judiciário, qualificando-se, nessa hipótese, como interesse processual [130]. Segundo Liebman, o interesse de agir é

um interesse processual secundário e instrumental com relação ao interesse substancial primário; tem por objeto o provimento que se pede ao juiz como meio para obter a satisfação de um interesse primário lesado pelo comportamento da parte contrária, ou, mais genericamente, pela situação de fato objetivamente existente. [131]

O interesse processual consiste na utilidade do provimento jurisdicional solicitado. Essa utilidade depende da presença de dois elementos: necessidade de tutela jurisdicional e adequação do provimento solicitado.

O interesse-necessidade decorre da vedação da autotutela. Dessa forma, para que se verifique a necessidade de se recorrer ao Estado-juiz para satisfazer uma pretensão, basta a impossibilidade do autor fazer valer seu interesse através do emprego de meios próprios. Conforme ensina Luiz Rodrigues Wambier

essa necessidade tanto pode decorrer de impossibilidade legal (separação judicial, p. ex.) quanto da negativa do réu em cumprir espontaneamente determinada obrigação ou permitir o alcance de determinado resultado (devedor que não paga o débito no vencimento). [132]

Não é suficiente, porém, que a atuação jurisdicional seja necessária para que o interesse processual se configure. Faz-se mister, ainda, que haja o interesse-adequação, isto é, a utilização do método processual adequado à tutela jurisdicional almejada. Assim, p. ex., o cônjuge que pretenda desfazer seu casamento em razão de ser o outro adúltero deverá mover ação de separação judicial, e não ação de anulação do casamento. [133]

Elucidativa é a lição de Nelson Nery Júnior:

Existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade, do ponto de vista prático. Movendo a ação errada ou utilizando-se do procedimento incorreto, o provimento jurisdicional não lhe será útil, razão pela qual a inadequação procedimental acarreta inexistência do interesse processual. [134]

3.2.4.1.3. Possibilidade jurídica do pedido

Há possibilidade jurídica do pedido quando o ordenamento jurídico admite, em tese, a pretensão deduzida pelo autor. Melhor dizendo, a possibilidade jurídica estará preenchida se o direito material não veda o exame da matéria pelo poder judiciário.

O termo "possibilidade jurídica do pedido" não é adequado, pois restringe o preenchimento dessa "condição da ação" apenas a um dos elementos identificadores da demanda, qual seja, o pedido (petitum). No dizer de Nelson Nery Júnior, "deve entender-se o termo pedido não em seu sentido estrito de mérito, pretensão, mas sim conjugado com a causa de pedir". [135]

A preocupação com a técnica, sobretudo no que tange à terminologia adequada, faz-se necessária tendo em vista os reflexos práticos que ocasiona. Por exemplo, "A" propõe em face de "B" uma ação de cobrança, cujo pedido é a condenação do réu no pagamento de certo valor monetário oriundo de dívida de jogo. Aqueles que consideram a "condição da ação" em questão apenas como possibilidade jurídica do pedido, terão de considerar preenchidos todos os requisitos para apreciação do mérito, e que a decisão, nessa hipótese, seria de improcedência do pedido. Por outro lado, para os processualistas que ampliam o conceito da referida condição, afirmando que a mesma abarca também a causa de pedir, a decisão será de carência de ação. [136]

Destarte, não basta que o pedido seja juridicamente possível, mas também seu fundamento. Para Alexandre Freitas Câmara, o termo mais adequado seria "possibilidade jurídica da demanda". [137]

3.2.4.2. Análise crítica da teoria eclética

Não obstante ser a teoria insculpida no CPC, a concepção liebmaniana também sofreu críticas. Esclarece Kazuo Watanabe que

a procedência dessa críticas está na dependência da adoção, pelos defensores da teoria eclética, dos seguintes pontos: a) as condições da ação são pressupostos para a existência da ação e por isso, quando o juiz pronuncia a "carência de ação", nem mesmo haverá processo, mas mero fato, e o juiz não terá exercido função jurisdicional; b) as condições da ação devem ser aferidas sgundo o que vier a ser comprovado no processo, após o exame das provas, e não apenas tendo em consideração a afirmação feita pelo autor na petição inicial (in statu assertionis). (...) Semelhante entendimento levaria a tornar uma coisa só as condições da ação e o mérito da causa [138]

A teoria de Liebman sofre de pelo menos três vícios: o primeiro consiste em se criar uma posição intermediária entre a concepção eclética e abstrata; o segundo foi reduzir o âmbito de atuação da jurisdição, devendo-se criar uma quarta atividade estatal, distinta das três existentes (executiva, legislativa e jurisdicional), para enquadrar a atuação do juiz ao decidir sobre as condições da ação; o terceiro foi confundir os conceitos de ação e pretensão, pois conceituando a ação como direito a uma sentença de mérito, confere o direito de ação também ao réu. [139]

Tendo em vista os argumentos contrários à teoria eclética, parece mais aceitável considerar a ação como direito abstrato de agir.

Assim, adotando uma concepção abstrata, a ação é um direito público, subjetivo e autônomo de atuar em juízo, deduzindo uma pretensão, destituída ou não de fundamento, exigindo o provimento jurisdicional.

A ação é um direito público, porque exercido contra o Estado, o qual por ter vedado a autotutela, é obrigado a atuar quando provocado; subjetivo, pois fica ao alvedrio do titular exercê-lo ou não; autônomo, posto que independe do direito material invocado; abstrato, pois independe do resultado final do processo.

3.2.4.3. Adaptação da teoria de Liebman ao CPC: adoção da teoria da asserção

Conforme já salientado alhures, o CPC brasileiro adotou a teoria eclética de Liebman ao impor condições para a existência do direito de ação. Entretanto, a forma pela qual o legislador tratou a matéria, exigindo que a presença das condições da ação deva ser demonstrada, cabendo inclusive produzir prova para convencer o juiz, acaba tornando a possibilidade jurídica da demanda, o interesse processual e a legitimidade para a causa, questões de mérito.

O ponto principal da questão consiste em se determinar a maneira pela qual se verifica a presença das "condições da ação": através das provas produzidas pelas partes ou com base na afirmativa feita pelo autor na petição inicial.

Se o juiz, ao analisar as "condições da ação", exigir prova visando à verificação da existência efetiva dos fatos narrados, acaba examinando o mérito. Por exemplo, "A", afirmando ser proprietário do imóvel, ajuiza ação de despejo contra "B" por falta de pagamento dos aluguéis. Para verificar se "A" tem legitimidade para propor a ação, o juiz precisa examinar a relação jurídica de direito material (mérito) e constatar se o autor consta como locador. Ao aprofundar sua cognição no contrato de locação, o juiz ingressa no mérito da causa. Nesse sentido, a posição de Alberto dos Reis:

Para que se possa determinar qual a parte ativamente legitimada e qual aquela a quem cabe a legitimação passiva, seria preciso examinar a natureza do contrato e os direitos e obrigações por êle (sic) produzidos, o que seria entrar no mérito da causa. [140]

Em vista das razões expostas, para que se possa ter uma concepção abstrata da ação, será necessária a adoção da teoria della prospettazione (teoria da asserção). Segundo seus adeptos, as "condições da ação" devem ser aferidas in statu assertionis, ou seja, à luz das afirmativas do autor na petição inicial.

Como preleciona José Carlos Barbosa Moreira, a análise das condições da ação" dever ser feita

com abstração das possibilidades que, no juízo de mérito, vão deparar-se ao julgador: a de proclamar existente ou a de declarar inexistente a res in iudicium deducta; vale dizer, o órgão julgador, ao apreciá-las, considera tal relação jurídica in statu assertionis, ou seja, à vista do que se afirmou, raciocinando ele, ao estabelecer a cognição, como que admita, por hipótese e em caráter provisório, a veracidade da narrativa, deixando para ocasião própria (o juízo de mérito) a respectiva apuração, ante os elementos de convicção ministrados pela atividade instrutória. [141]

Vale ressaltar que, embora a teoria eclética ser a predominante no nosso sistema processual, não foi ela seguida conforma os ensinamentos de Liebman. O mestre peninsular, a quem o processo civil brasileiro muito deve, já afirmava em conferência pronunciada em 29 de setembro de 1949 que

Todo problema, quer de interesse processual, quer de legitimidade ad causam, deve ser propostos e resolvido admitindo-se, provisoriamente, em via hipotética, que as afirmações do autor sejam verdadeiras, só nesta base é que se pode discutir e resolver a questão pura da legitimidade ou do interesse. Quer isto dizer que, se da contestação do réu surge a dúvida sobre a veracidade das afirmações feitas pelo autor e é necessário fazer-se uma instrução, já não é mais um problema de legitimação ou de interesse, já é um problema de mérito. [142]

Na época em que o CPC de 1939 vigorava, já havia autores que aderiam à teoria da asserção. O professor Lopes da Costa em trabalho específico sobre a legitimidade para a causa, entendia que a teoria mais aceitável "é a da legitimação considerada em face da relação jurídica material, afirmada pela inicial da ação". [143]

No mesmo sentido de Kazuo Watanabe, Barbosa Moreira e Elio Fazzalari, Alexandre Freitas Câmara manifesta sua adesão à teoria da asserção:

Exigir a demonstração das "condições da ação" significaria, em termos práticos, afirmar que só tem ação quem tenha o direito material. Pense-se, por exemplo, na demanda proposta por quem se diz credor do réu. Em se provando, no curso do processo, que o demandante não é o titular do crédito, a teoria da asserção não terá dúvidas em afirmar que a hipótese é de improcedência do pedido. Como se comportará a outra teoria? Provando-se que o autor não é credor do réu, deverá o juiz julgar seu pedido improcedente ou considerá-lo "carecedor de ação"? A se afirmar que o caso seria de improcedência do pedido, estariam os defensores dessa teoria admitindo o julgamento da pretensão de quem não demonstrou sua legitimidade; em caso contrário, se chegaria à conclusão de que só preenche as "condições da ação" quem fizer jus a um provimento jurisdicional favorável.

Mais a frente, faz sua ilação:

As "condições da ação", portanto, deverão ser verificadas pelo juiz in statu assertionis, à luz das alegações feitas pelo autor na inicial, as quais deverão ser tidas como verdadeiras a fim de perquirir a presença ou ausência dos requisitos do provimento final. [144]

Cândido Rangel Dinamarco, defensor da teoria eclética, discorda da aproximação da concepção liebmaniana com a teoria do direito concreto, sustentando que

Não é correto tachar de eclética a teoria de Liebman, acatada pelo Código: ela é abstrata, porque não inclui a existência do direito do autor entre as condições da ação, limitando-se a condicionar a ação a requisitos que a situação jurídico-substancial fornece em cada caso. [145]

Em que pese a opinião desse renomado jurista, a teoria de Liebman acaba retornando à concepção concretista. Nesse sentido, posiciona-se Fábio Gomes:

Para a maioria dos que seguem a doutrina de Liebman e consideram a ação como o direito a um provimento de mérito, uma vez extinto o processo por ausência de uma das condições da ação poderá o autor intentá-la de novo; neste sentido é expresso nosso Código em seu art. 268. Aqui, a identidade com a Teoria do Direito concreto revela-se ainda mais forte. Tomemos como exemplo um caso em que o juiz extinguiu o processo julgando o autor de uma ação de despejo parte ilegítima por não ser locador do prédio. Estaria o Código autorizando, em seu art. 268, o mesmo autor a propor novamente a mesma ação? Obviamente não! Parece evidente haver o legislador se referido àquela ação de despejo que não foi proposta. [146]

Portanto, o exame das "condições da ação" deve ser realizado através de um juízo hipotético, pressupondo verdadeiras as afirmações do autor na inicial. Estarão preenchidas as "condições da ação" se a resposta for afirmativa às seguintes perguntas: "se verídicos os fatos narrados, existe lei que ampare a pretensão? Estaria o autor realmente interessado? Seria ele o titular do direito que pretende, e o réu sujeito passivo da eventual relação?" [147] Positiva a resposta, o juiz deve considerar presentes as "condições da ação", tudo o mais é mérito.

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Sobre o autor
Leandro Silva Raimundo

Técnico Bancário pela Caixa Econômica Federal em Jacarezinho – PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAIMUNDO, Leandro Silva. Dos pressupostos processuais e das condições da ação no processo civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 385, 27 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5493. Acesso em: 18 abr. 2024.

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