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Estado Democrático

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26/07/2004 às 00:00
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4. O Espírito de Grandeza Pública

Esse espírito de grandeza pública que deve orientar o atual Estado Democrático, na verdade, já constava dos primeiros textos e das clássicas manifestações dos pioneiros ou orientadores da Revolução Francesa, como vemos em Saint-Just (1989). Aliás, um projeto de Constituição intencionalmente intitulado de O Espírito da Revolução:

A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo que não é depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o mar sobre sua base e contra suas margens (...) na França não há poder, falando sensatamente; só as leis comandam, seus ministros impõem-se a obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à opinião, que é o espírito dos princípios (...) Os poderes devem ser moderados, as leis implacáveis, os princípios irreversíveis. A opinião é a conseqüência e a depositária dos princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se tocam onde estão prestes a se dissolver. Há uma diferença entre o espírito público e a opinião: o primeiro é formado pelas relações de constituição ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público (p. 50, 51, 52).

O apego à respeitabilidade do espírito público é inegável, óbvio e ao que não restou dúvidas ao longo do texto. Uma constatação que terá conseqüências diretas, e ainda mais objetivas no pensamento de Saint-Just quando se refere à constitucionalização dos princípios políticos e das finalidades que conformariam o Estado gerado após a Revolução Francesa:

A Constituição é o princípio e o fulcro das leis; toda instituição que não emana da Constituição é tirania; é por isso que todas as leis civis, as leis políticas, as leis do direito das gentes devem ser positivas e nada deixar nem para as fantasias, nem para as presunções do homem (...) Uma Constituição livre é boa na medida em que se aproximam os costumes de sua origem, que os pais são amados, as inclinações puras e os laços, sinceros (pp. 57 - 60).

Esta imagem ou mensagem também surge bem definida, clara na Revolução Americana, uma vez que, além da independência, os colonos e pioneiros, elaboraram a matriz e o perfil do Estado e da Federação americana (após a própria organização da Confederação em torno das 13 Colônias), inaugurando a prática do plebiscito e do referendo para cada uma dessas deliberações. Este aspecto, porém, é tão importante que mereceria uma análise substancial e em separado.

Por fim, como vimos todo o tempo, esse modelo de Estado é um caso clássico em que a política virou lei e assim passou a ser regulada pela Constituição Federal. Historicamente, remete-nos a pensar que a discordância e a diferença acabaram no consenso e no consentimento, visualizando-se que a prática, a experiência, a história orientaram o Direito e os poderes públicos.

Mas, de forma prática ou técnica, como pensar no direito como fator democrático?

Uma possibilidade seria tomar a síntese política, a constitucionalização dos conflitos sociais, como equivalente do esforço pela maior efetividade democrática da Constituição e, assim, da política e do Estado – primando pela síntese constitucional que não esteriliza a política ou as vontades dos participantes da vida pública. E devendo, então, como ensina Konrad Hesse (1991), assegurar que:

Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa (p. 21).

A Constituição deve assimilar os contrários, os dissensos, as demais possibilidades sociais e políticas de sua sociedade, inaugurando um pluralismo sócio-político e não o monismo jurídico (ou totalitarismo, de prevalência do pensamento único). Nesta trilha, porém mais tecnicamente, deve-se tomar o direito na forma das garantias institucionais (assegurando-se os direitos fundamentais), como seguridade jurídica necessária à livre fruição das vontades políticas socialmente válidas, pois que o direito, assim considerado, figurará como garantia da vida pública no bojo do Estado Democrático de Direito.

Trata-se, em outras palavras, de assegurar a função jurídica do Estado em que os direitos individuais fundamentais (co)existam com a mesma inclinação de força devida aos deveres públicos. Por fim, da auto-regulação da política e da democratização do direito (direito democrático) podemos extrair a necessária mediação entre o governo dos homens (da política) e o governo das leis (o Telos, a finalidade projetiva da justiça social).

Em sentido estrito, esta passagem da política ao Direito (a positivação dos objetivos fundamentais do Estado Democrático) tem sua fórmula definida pelo princípio democrático (tomo emprestado o conceito de Canotilho), pois que será uma espécie de garantia popular a fim de que as políticas públicas e sociais estejam resguardadas (positivadas, ao abrigo das facticidades e com "força de lei") como finalidades do Estado Público. Por esta razão, passaremos a analisar o princípio democrático com mais vagar.


5. As Finalidades Públicas do Princípio Democrático

Em outro momento, mais brevemente e de forma tangencial, já abordamos o princípio democrático, mas devemos retomá-lo por se tratar de uma especificidade do Estado Democrático, ou seja, por se constituir num dos traços fundantes e como um dos princípios mais importantes e reveladores do Estado Democrático. Portanto, hoje, no dizer de Canotilho, como princípio basilar e já positivado, o princípio democrático é uma norma jurídica constitucionalmente democrática:

O princípio democrático, constitucionalmente consagrado, é mais do que um método ou técnica de os governantes escolherem os governados, pois como princípio normativo, considerado nos seus vários aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, ele aspira a tornar-se impulso dirigente de uma sociedade (s/d, p. 286).

O princípio democrático que norteia o Estado Democrático, por sua vez, é parte dessa complexidade que é o próprio Estado:

Em primeiro lugar, o princípio democrático acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática representativa (...) Em segundo lugar, o princípio democrático implica democracia participativa, isto é, a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões, produzir inputs político-democráticos. É para este sentido participativo que aponta o exercício democrático do poder (...), a participação democrática dos cidadãos (...), o reconhecimento constitucional da participação direta e ativa dos cidadãos como instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático (...) e aprofundamento da democracia participativa (Canotilho, p. 286).

Como analisa Canotilho, o princípio democrático ainda será um processo dinâmico e informador do poder:

O princípio democrático não se compadece com uma compreensão estática de democracia. Antes de mais, é um processo de continuidade transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas. Por outro lado, a democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e ativa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social (...) O princípio democrático aponta, porém, no sentido constitucional, para um processo de democratização extensiva a diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural (...) A democracia é, no sentido constitucional, democratização da democracia (s/d, p. 287-8).

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De modo complementar, o princípio democrático deve institucionalizar a prática democrática da política, como meio de regulação e de limitação ou controle do poder e dos que têm seu exercício como profissão voltada ao domínio:

O princípio democrático não elimina a existência das estruturas de domínio mas implica uma forma de organização desse domínio. Daí o caracterizar-se o princípio democrático como princípio de organização da titularidade e exercício do poder. Como não existe uma identidade entre governantes e governados e como não é possível legitimar um domínio com base em simples doutrinas fundamentantes é o princípio democrático que permite organizar o domínio político segundo o programa de autodeterminação e autogoverno: o poder político é constituído, legitimado e controlado por cidadãos (povo), igualmente legitimados para participarem no processo de organizar da forma de Estado e de governo (Canotilho, s/d, p. 288).

Por fim, ainda salientando os ensinamentos de Canotilho, o princípio democrático deverá, outrossim, pautar-se pelos direitos fundamentais:

Tal como são um elemento constitutivo do Estado de Direito, os direitos fundamentais são o elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: 1) significa a contribuição de todos os cidadãos (...) para o seu exercício (princípio-direito da igualdade e da participação política); 2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos do próprio princípio democrático); 3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural (s/d, p. 288)

Por fim, como ainda salienta Canotilho, o princípio democrático também será um meio/instrumento do direito constitucional (se institucionalizado, positivado) de modo a atuar com um caráter funcional, regulador e que possa dimensionar as funções essenciais à democracia:

Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia. Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos da liberdade criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio maioritário, publicidade crítica, direito eleitoral). Por fim, como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais, direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos (s/d, p. 288-9)

De qualquer modo, por mais relevante que seja o princípio democrático, para o Estado Democrático, este princípio foi organizado e estruturado a partir do contexto capitalista e, por isso, até o presente não se mostrou suficiente para superar as crises sociais e econômicas.

Enfim, concluindo, no Brasil, a despeito de toda análise constitucional, por mais refinada que seja (e comandada pelo mais brilhante dos constitucionalistas), de maneira bem prosaica, colocando-se submisso às circunstâncias e limitando-se aos escaninhos da barganha do poder, o Estado acaba por alegar que precisa pagar os juros da dívida externa e que, por isso, é levado a não cumprir as metas sociais estabelecidas pela Constituição, e mesmo que para isso descumpra diariamente a lei, afrontando a Constituição.

Deixei para o final a tarefa de relacionar algumas características, traços ou princípios do Estado Democrático, inclusive, porque o debate já se fez ao longo do texto. Relacionei-os da seguinte forma: eletividade, rotatividade, responsabilidade, transparência, tolerância, publicidade, referendo e participação popular.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado Democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 384, 26 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5497. Acesso em: 25 abr. 2024.

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