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O teletrabalho como novo meio de laborar e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro

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24/07/2004 às 00:00
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4 Compatibilidade das normas vigentes com o Teletrabalho.

            Ainda não temos legislação específica que trate do tema. Utiliza-se então a analogia ou amplia-se os conceitos das leis vigentes, para que se possa enfrentar estas novas formas de trabalho, que vem sendo uma crescente na história do mundo globalizado.

            Em Portugal, grade berço desta espécie de trabalho, também não há normas específicas. Lá como aqui equipara-se o teletrabalhador ao tipo análogo respectivo nas leis vigentes. No caso do teletrabalhador autônomo é pacífico que este deve ser enquadrado no contrato de empreitada ou no contrato de prestação de serviço, inscritos respectivamente nos artigos 1207º [35] e 1154º [36] do Código Civil Português. No Brasil o teletrabalhador autônomo pode ser enquadrado, além nestas duas espécies, em trabalhador eventual e avulso, pois estes como aqueles não se configuram a relação de emprego e sim de trabalho.

            Já para o teletrabalhador em domicílio, podem ser usadas analogicamente as normas referentes ao trabalho em domicílio tradicional, conforme a CLT em seu Art. 6º "Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego". Assim, a lei equipara os locais de trabalho. Havendo subordinação ficará provada a relação de emprego. Outra norma que regulamenta o Teletrabalho em domicílio na consolidação é a do Art. 83 em que "É devido o salário mínimo ao trabalhador em domicílio, considerado este como o executado na habitação do empregado ou em oficina de família, por conta de empregador que o remunere". Assim, esta espécie de Teletrabalho não traz maiores problemas para o direito.

            No âmbito internacional a Convenção da OIT n. 177 [37] de 1996, obtida por uma pesquisa interna relativa ao trabalho em domicílio tradicional, deu cobertura ao teletrabalhador subordinado em domicílio. Vale a pena ressaltar que a OIT teve um papel muito importante na pesquisa e publicidade dos estudos relativos ao tema.

            Algumas dúvidas podem surgir quanto aos teletrabalhadores de telecentros, mas os telecentros são, na verdade, ou a própria empresa ou prolongamentos desta. Como os telecentros de centro-satélite são de propriedade da empresa ou cedidos em regime de leasing, não existira problema em definir que este telecentro é um estabelecimento do empregador. Já os centros comunitários não são necessariamente estabelecimentos de propriedade dos empregadores. E quando forem de propriedade exclusiva do Estado que somente elaboram os locais não tendo vínculo direto algum, seja do Estado com o empregador, ou daquele com o empregado? Neste caso não se pode equiparar o empregado dos centros comunitários com o empregado em domicílio ou em oficina de família. O problema é a falta de normas para os teletrabalhadores nômades. Neste sentido, pode-se dizer que a lei é omissa, não tratando como deveria esta forma de emprego. A princípio, para resolver tal impasse, se faz mister a elaboração de um contrato de trabalho bem elaborado.

            Não poderíamos deixar de salientar que se provada a relação de emprego, o teletrabalhador tem os mesmos direitos e deveres do trabalhador normal. Direitos como férias, licença de saúde, hora extra, medidas diciplinares e outros. Quanto às horas extras, estas, na grande maioria dos casos, só poderão ser exigidas se houver alguma forma de controlar o horário de trabalho. O que não é muito difícil. Pelo contrário. Os softwares que integram esta nova forma de trabalho "são de ponta", e podem, sem maiores dificuldades, medir a quantidade de horas trabalhadas e a disposição que foram realizadas. Contudo, os pontos relativos ao controle de horas extras e férias são muito controvertidos e precisaram de um maior estudo por parte dos doutrinadores ou mesmo elaboração de leis com mais rapidez que os outros pontos. Robortela afirma que: "O direito do trabalho deve ajustar-se cuidadosamente a essas mutações. Os institutos jurídicos, embora com mais lentidão, acabam por adaptar-se e depois influem nas transformações sociais, como a história repetidamente demonstra". [38]

            A Constituição Federal do Brasil de 1988 no artigo 7º demonstra um grande avanço no tocante a proteção dos trabalhadores. José Afonso lembra que "[...] é a importante inovação do inciso XXVII, que prevê "a proteção em face a automação, na forma da lei"; embora dependendo de lei, essas normas criam condições de defesa do trabalhador diante do grande avanço da tecnologia, que o ameaça, pela substituição da mão-de-obra humana pela de robôs, com vantagens para empresários e desvantagens para a classe trabalhadora; o texto possibilitara a repartição das vantagens entre aqueles e estes; [...]" [39]. Esta é uma norma de eficácia limitada que precisa de regulamentação posterior para que tenha plena aplicabilidade. As transformações tecnológicas no campo do trabalho podem causar vários danos ao empregado, enquadrando também nestas transformações o Teletrabalho. Deste modo, se faz mister a elaboração normativa que venha regulamentar este inciso da Constituição, que poderá suprir as eventuais lacunas na figura do Teletrabalho. Esta é uma hipótese de regulamentação por via indireta, pois não teria o tema Teletrabalho como foco da discussão, mas como um elemento incidental.

            A mais recente regulamentação internacional sob o tema aconteceu em Bruxelas, no dia 16 de julho do ano de 2002, onde os órgãos da União Européia, ETUC, UNICE e CEEP assinaram um acordo sob Teletrabalho que será usado pelos países membros do bloco, elaborado pela Comissão Européia de Modernização das Relações de Emprego. Vale a pena ressaltar que o acordo sob Teletrabalho será o primeiro a ser implementado pela rota voluntária prevista no artigo 139 do Tratado da União Européia, seguindo os tramites legais do bloco. A comissão teve que consultar os membros antes de submeter propostas no campo de política social, conforme o artigo 138 do Tratado da UE. Na ocasião de tais consultas, os membros podem decidir lidar com o assunto por negociações, abarcando toda a UE. De acordo com o artigo 139 do Tratado da UE, para implementar um acordo concluído em âmbito europeu, os membros, ou pedem à comissão para transmitir o Acordo ao Conselho, que o transforma legislação da UE, ou confia em seus membros na implementação conforme a especificidade de cada país membro. No Acordo sob Teletrabalho onde ficou definido respectivamente: a licença parental, os contratos fixos e o trabalho de meio período, todos implementados por uma Diretiva do Conselho deixando para os países membros, seguindo suas devidas peculiaridades e a escolha dos procedimentos e ferramentas para implantação destas diretivas. O Acordo prevê ainda a possibilidade de revisão por qualquer dos membros.

            Neste Acordo, [40] ficou definido que a União Européia deve encorajar o desenvolvimento do ¨Telework¨, num determinado contexto, em que a flexibilidade e segurança sejam compatíveis com o aumento dos empregos e a qualidade do trabalho. Nele engloba-se as diferentes formas de teletrabalho, com a ressalva, que o teletrabalhador regular é aquele enquadrado no contrato ou na relação de emprego. Também, esta inserido, que os teletrabalhadores gozam dos mesmos direitos individuais e coletivos do empregado normalmente equiparado, igualando a carga de trabalho e padrões de desempenho com as dos trabalhadores comparáveis.

            O Acordo trata este novo tipo de trabalho como preenchedor de necessidades dos empregados e dos empregadores, descreve o caráter de voluntariedade na troca do trabalho normal pelo Teletrabalho sem perdas. Reafirma, ainda, áreas que demandam maior atenção ou adaptação específica como: treinamento do empregado, privacidade. E caso qualquer meio de monitorar todo sistema seja posto no lugar, precisa ser proporcional ao objetivo que o introduziu, conforme Diretiva 90/270. Como também, em casos de segurança, onde o empregador é responsável em adotar medidas necessárias e possíveis para proteção dos dados profissionais e ainda pontos relevantes à saúde do trabalhador. Em suma, este acordo assinado pela União Européia é o mecanismo legal mais importante já elaborado sob o tema, que poderá e deverá ser usado como fonte inspiradora de normas por todo mundo.

            Nos Estados Unidos da América o governo deu um importante passo para adoção do Teletrabalho pelos empregados de agências federais. De acordo com a Lei pública n.106-346, § 359, onde cada agência executiva estabelecerá uma política de incentivo, dando subsídios tecnológicos para seus empregados executarem todo ou em parte seus deveres peculiares, flexivelmente por meio de tecnologias que permitam sua feitura a distância. Para efetivar esta proposta, a Lei Pública 105-277 seção 630(a) do Programa de Flexibilidade do Trabalho Telemático, autorizou certas agências Executivas a gastar um mínimo anual de cinqüenta mil dólares para o ano de 1999 e seguintes, respectivamente.

            Outra forma de garantir direitos relativos ao Teletrabalho é a sindicalização. Assim por meio de Acordos ou Convenções Coletivas, os trabalhadores afirmam seus direitos. Esta seria a via mais fácil de "regulamentação" desta figura, contudo, pode não ser a melhor forma. Mas superar a dificuldade de associação que é peculiar a esta espécie de trabalho traria grandes benefícios.

            Ensina Robortela que "a intervenção estatal nos processos de reestruturação varia de um país a outro, mas todos a reconhecem necessária, porque o domínio da tecnologia significa maior poder político e econômico". [41] Então uma lei específica sob o Teletrabalho se faz necessária para dirimir os conflitos oriundos desta forma de trabalho e ajudar a compor esta relação de trabalho ou de emprego com maior precisão, afastando o critério da discricionariedade na elaboração do contrato. Evita-se, assim, a ampliação de conceitos ou mesmo o uso da analogia que sempre dão margem para interpretações duvidosas ou ate mesmo injustas. No entanto, não podemos ser imediatistas ao resolver uma questão tão delicada, como regulamentar um tema tão novo, sabendo que não estamos completamente desamparados frente a matéria.

            Com propriedade, Däubler afirma que: "Controlar a tecnologia através de normas é uma tarefa difícil pelo fato de se tratar de uma realidade variegada. A técnica de regulamentação tradicional se orienta pelo sujeito abstrato do direito, por suas relações contratuais e não contratuais com outros sujeitos do direito, por sua condição de cidadão. Esse acesso generalizador reduz a complexidade de modo substancial". [42] No entanto, não podemos deixar de considerar a pouca maturidade doutrinaria e prática a despeito do tema, então se faz mister um estudo doutrinário mais amplo, pois as discussões ajudam a dirimir eventuais dúvidas e filtram a matéria, enfocando os pontos de maior relevância.

            4.1 O fenômeno da flexibilização.

            O papel do Estado nas novas relações de trabalho está sendo discutido, surge um novo conceito de Estado, menos centralizado, dentro de uma economia de mercado altamente competitiva que necessita cada vez mais de estímulos para manutenção dos empregos.

            O professor Rodrigues Pinto ensina que: "No Direto do Trabalho, a Revolução Tecnológica plantou as raízes de um movimento revisionista, tão controvertido quanto inevitável, o da flexibilização de princípios e normas, que permita a sobrevivência de seu papel de regulador tutelar das relações de trabalho subordinado no mundo capitalista ocidental". [43]

            O estudo da flexibilização pode determinar pontos obscuros que rondam a figura do teletrabalhador, como o das horas trabalhadas e jornada de trabalho. A possibilidade de uma jornada de trabalho menor ou variável é um dos assuntos que podem ser abordados em relação ao Teletrabalho, viabilizando-o de uma melhor forma. Não extinguindo com a flexibilização a possibilidade de adoção de uma legislação específica.

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            A flexibilização como um fenômeno revisional supriria eventuais lacunas ou barreiras oriundas dos constantes avanços tecnológicos, mudando ou inserindo na lei conceitos que ao tempo de sua feitura lhe eram estranhos. Evitando, assim, eventuais discussões como a presença da subordinação no Teletrabalho nômade.


5 Considerações Finais.

            O Teletrabalho é a flexibilização do tempo, meio e lugar da prestação do trabalho. Não se pode ignorar sua importância nos tempos modernos. O que muitos doutrinadores tem feito, até agora, foi tentar distanciar esta figura da realidade brasileira, mas o mundo sem fronteiras é um fato, e não se pode ignorar isso. A globalização é a bola da vez, e com ela, a relativização da distância. A tecnologia deixa de ser um fator exclusivo de países de desenvolvimento pleno para ser parte integrante de um todo, o mundo.

            Com enfoque especial ao Teletrabalho é necessária uma maior discussão, sejam elas na área administrativa, sociológica e jurídica que devem ser travadas com objetivo de auxiliar a produção normativa, assegurando a solução de conflitos advindos desta relação, pois o Direito é algo "orgânico" que acompanha a própria evolução da sociedade.

            Apesar de termos um ordenamento jurídico relativamente moderno, que, a princípio, não afastaria o instituto do Teletrabalho, ainda há alguns pontos não definidos, e para prevenir os conflitos judiciais devem ser regulamentados.

            De forma imediata à adoção desta espécie de trabalho requer um contrato com cláusulas muito bem definidas, com o fito de evitar que eventuais conflitos que venham prejudicar o trabalhador, e o próprio Teletrabalho.

            As especificidades do teletrabalho aqui analisadas demonstram que esta é uma forma de trabalho que não merece descrédito, ou mesmo, alguma forma de preconceito.

            A Câmara dos Deputados, homenageado o cinqüentenário de falecimento do escritor Monteiro Lobato, lembra que: "Como pioneiro da Telemática, Lobato também estaria lançando agora uma Campanha pelo Teletrabalho, igualmente previsto em ´O choque das Raças´, onde escreveu que: ´A roda terá seu fim. O rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir, todos os dias, o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde (...) fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório´. Em suma, diz Lobato nessa obra: ´Trabalhar-se-á a distância´. Esse trabalho á distância previsto por Monteiro Lobato é hoje a base da prosperidade asiática, reduzindo custos e aumentando a produtividade do trabalhador. Em Cingapura, como muitos sabem, 30% da população já trabalha em casa, via redes de computador. Nos Estados Unidos os teletrabalhadores já são cerca de 48 milhões, economizando combustível, evitando stress, congestionamento e o tempo perdido". [44]

            Com a proposta do novo governo em promover uma mini reforma na Consolidação das Leis Trabalhistas, esperamos que temas como o Teletrabalho e utilização de novos meios tecnológicos na relação laboral sejam objeto de pesquisa e discussão, servindo assim de subsídio para o Legislador.

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Sobre o autor
Frederico Silveira e Silva

bacharelando em Direito pelas Faculdades Jorge Amado, em Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Frederico Silveira. O teletrabalho como novo meio de laborar e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 382, 24 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5499. Acesso em: 19 abr. 2024.

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