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Empréstimo compulsório sobre combustíveis.

A polêmica decisão do STF em ação rescisória

29/07/2004 às 00:00
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I – Introdução

No último dia 14 o Supremo Tribunal Federal, por sua 2ª Turma, julgou procedente uma Ação Rescisória movida pela União Federal contra a Associação Paranaense de Defesa do Consumidor (APADECO), desconstituindo, assim, antigo acórdão exarado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que assegurara aos paranaenses, em Ação Civil Pública movida pela associação, o direito à restituição daquele controvertido "empréstimo compulsório sobre combustíveis" criado pelo Decreto-Lei 2.288/86 e que vigorou sob a pecha de "confisco" e outros adjetivos que preferimos não reproduzir, mas que denotavam o descontentamento unânime dos brasileiros.

Essa recente decisão da Suprema Corte nem chegou a ser publicada oficialmente e diversos juízes federais já suspenderam o andamento das execuções que ainda se encontram sub judice aparelhadas com a decisão proferida na ACP. Pior: não se sabe exatamente como ficarão aqueles que já receberam seus valores antes do pronunciamento do STF. Essa decisão é grave e terá impacto sobre inúmeros cidadãos paranaenses, e gostaríamos aqui de tecer algumas considerações a respeito do assunto, conferindo-lhes ares de publicidade. Primeiro pela incerteza e insegurança jurídica que o pronunciamento tardio do STF está causando e causará ainda mais. Segundo, e principalmente, pelo desacerto do julgado (pedimos vênia para assim opinarmos), tomado – é bom que se diga – por maioria de votos. E ousamos asseverar isto não com base em opiniões pessoais, mas pela inobservância das regras mais elementares que norteiam o excepcional instituto da ação rescisória, segundo juristas de escol.

Faz-se mister, antes, uma apertada síntese do novelesco caso:

a) Em 1993 a APADECO ajuíza a ACP na defesa de todos os paranaenses que tiveram veículos no período de vigência do compulsório, sendo a ação julgada procedente pela 4ª Vara Federal de Curitiba/PR, que condenou a União à devolução do empréstimo, calculada pela média de consumo por veículo, conforme dados da Receita Federal;

b) Em agosto/97 transita em julgado o acórdão do TRF da 4ª Região mantendo a condenação da Fazenda Nacional. Desde então qualquer paranaense podia ajuizar, individualmente, execução de título judicial para repetição do empréstimo, aparelhando-a com aquela decisão. Essa legitimidade "ampla" decorria da própria Lei 7.347/85, a Lei da Ação Civil Pública (LACP), que no art. 16 confere efeitos "erga omnes" à sua sentença civil;

c) Em set/1998 (um ano após o trânsito em julgado) a União resolve interpor Ação Rescisória perante o TRF4, visando à desconstituição daquela sentença. A rescisória foi julgada improcedente, à unanimidade, pela Primeira Seção do eg. Regional. Desse decreto a União interpôs Recurso Extraordinário, que teve seguimento negado na instância "a quo".

d) Do despacho denegatório a União interpôs Agravo de Instrumento no STF. O Ministro CARLOS VELLOSO, relator do agravo, sabiamente negou-lhe seguimento. Dessa decisão a União interpôs Agravo Regimental (AgRg no AI 382.298). Em seu voto-vista, o ministro GILMAR MENDES entendeu que a APADECO não detinha legitimidade para aquela ACP, sendo seguido por seus pares da 2ª Turma, à exceção de CARLOS VELLOSO (mas a questão, desde já advertimos, deveria ser outra: se caberia tal discussão, sabidamente controvertida, em sede rescisória);

e) Infelizmente, já decorridos 7 (sete) anos do trânsito em julgado do v. acórdão do TRF4, veio o Supremo Tribunal Federal desconstituir aquele decisum. Frise-se: a União poderia ter recorrido da decisão do TRF, insistindo tempestivamente na ilegitimidade ativa da APADECO via Recurso Especial ou Extraordinário. Mas não quis fazê-lo, rebelando-se tardiamente através de sucessivos recursos, todos na Ação Rescisória, que, como procuraremos demonstrar, jamais poderia ser julgada procedente neste caso particular, por absoluta falta de previsão legal.

Por questão de brevidade deixaremos de reproduzir a incensurável decisão da Primeira Seção do TRF, que demonstrou claramente o incabimento dessa discussão (legitimidade ou não da APADECO) neste momento excepcional – em ação rescisória. Igualmente, o Ministro CARLOS VELLOSO, relator do Agravo Instrumental, que lhe negara provimento. Mas, infelizmente para os paranaenses, o voto-vista do Ministro GILMAR MENDES – ex-Advogado Geral da União – foi em sentido diverso, pelo acolhimento do agravo e, ato contínuo, pela procedência do RE e da ação rescisória. Não podemos afirmar que faltou ao ex-defensor da União a necessária e suficiente isenção de ânimo; apenas lamentamos a vitória, por maioria de votos, de sua tese, ainda que contrária a todas as lições até hoje proferidas pelos doutos acerca do excepcionalíssimo cabimento da AR.

Enfim, não queremos discutir aqui acerca da legitimidade ou não da associação para ajuizar a ACP – controvérsia original de mérito –, pois evidentemente controvertida (e aqui está o nó górdio da questão, como se verá). O que nos causou espécie, por contrariar um sem número de julgados e incontáveis lições doutrinárias de escol, é o alcance que se deu a uma ação rescisória. Expliquemos, e aqui inicia-se nosso arrazoado propriamente dito:


II – A segurança jurídica como instrumento de pacificação social.

Para qualquer pessoa que já manteve contato com ações rescisórias, propondo-as ou respondendo-as, não importa, é sabida a enorme dificuldade com que se depara o seu autor, dada a excepcionalidade de seu cabimento, pois não se trata de recurso. Isto é de sabença comum. De fato, para reverter os efeitos de uma decisão transitada em julgado somente motivos extremos e inquestionáveis. Tanto que a decisão da 2ª Turma do STF, aqui comentada, contraria frontalmente outros julgados da 1ª Turma. Lembra a associação que o próprio STF, em inúmeras ocasiões, já advertia que "o cabimento, ou não, de Ação Rescisória, é tema meramente processual, que não alcança nível constitucional e por isso não viabiliza o reexame em RE". (Grifamos)

Importante destacar, ainda, que nas poucas vezes em que o STF opinou sobre a ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar Ação Civil Pública – como considerou GILMAR MENDES –, tais decisões foram proferidas dentro do processo originário, ou seja, em Recurso Extraordinário nele impetrado; nunca decidindo o Extraordinário em Ação Rescisória – estranha àquele e de excepcional cabimento.

De fato, a ação rescisória não se presta para qualquer "reavaliação" do acerto ou desacerto da sentença rescindenda. Não podemos equipará-la aos recursos normais, cuja procedência é certamente mais fácil de se alcançar exatamente porque ainda não existe sentença transitada em julgado e, via de conseqüência, não está em jogo a própria "segurança jurídica" e a estabilidade e consolidação da relação sub judice, desaguando definitivamente na entrega da prestação jurisdicional com a coisa julgada a acobertá-la. Também é consabido que a coisa julgada, protegida constitucionalmente, é inerente e necessária à pacificação social – fim último e razão de ser da atividade judicante. Por isso mesmo há quem defenda o fim da ação rescisória, vista como instrumento que mais incerteza jurídica acarreta, proporcionalmente aos raríssimos casos de sua procedência.

No dizer do festejado mestre HUMBERTO THEODORO JÚNIOR:

"A certeza do direito ‘é uma exigência essencial dos ordenamentos modernos’ – como observa MARIO VELLANI. ‘Exigência essencial, porque é a certeza do direito que assegura a paz social’. E a certeza deve existir ‘não somente sobre a norma do direito objetivo, mas também sobre as relações singulares’. E como destaca SEGNI, ‘a certeza da relação se garante com a sua indiscutibilidade’.

‘Por conseguinte, é a certeza do direito que impõe a coisa julgada como característica da jurisdição contenciosa’." (AÇÃO RESCISÓRIA – VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI, periódico Juris Síntese nº 36, jul/ago de 2002).

E adiante complementa:

"A coisa julgada não é apenas a declaração da norma existente na lei. É algo mais: alem da certeza, que se apresenta como um ‘quid novum’ em relação à lei, a coisa julgada tem o condão de, após ela, restarem excluídas todas as demais interpretações e aplicações possíveis que o juiz poderia ter feito e não fez. ‘El derecho de la cosa juzgada es el derecho logrado a través del proceso’ (COUTURE, ob. cit., n. 268, p. 412)." (Idem).


III – "O direito (não) socorre a quem dorme"?

Pelo acima exposto, é bastante restrito o cabimento da ação rescisória. A enumeração de suas hipóteses permissivas é taxativa e vem elencada no artigo 485 do Pergaminho Processual Civil:

"Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - ofender a coisa julgada;

V - violar literal disposição de lei;

VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;"

Pois bem. A polêmica decisão do STF não poderia se dar com base em elementos que ressumam erro ou dolo do juiz ou das partes (incisos I, III, VI, VII, VIII, IX), incompetência ou impedimento do magistrado e tampouco ofensa à coisa julgada (II e IV), pois disso obviamente não se tratava. O "punctum saliens" da rescindência só poderia estar no inciso V (violar literal disposição de lei).

Ora, a razão de ser do adjetivo "literal", utilizado pelo legislador, pode ser encontrada em uma Súmula do próprio STF:

"343 - Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos Tribunais." (Grifamos)

Ou seja: uma ação rescisória só pode (deveria) vingar, se estribada apenas no inciso V, quando a sentença rescindenda violasse, ofendesse, contrariasse norma expressa, literal e com sentido unívoco nos Tribunais e, por correspondência, entre os operadores do direito. Insista-se uma vez mais: o feito rescisório não se presta a reavaliar acertos e desacertos de um julgado em matéria controvertida. É conseqüência da segurança jurídica, da estabilidade das relações jurídico-processuais e da própria força contida nos comandos jurisdicionais, a excepcionalidade da rescisão. Assim, "a tendência exegética das regras excepcionais que abrem ensejo à rescisória deve ser sempre no rumo restritivo e jamais no ampliativo" (HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, ob. cit.).

Especificamente sobre o inciso V, valemo-nos da mesma obra supracitada, segundo a qual:

"Por violação literal entende-se não a decorrente de divergências de interpretação, entre vários sentidos razoáveis admitidos, mas apenas a frontal ofensa à exegese unívoca ou inconteste do texto de lei." (Idem)

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Já para JOSÉ FREDERICO MARQUES, o inciso V está a exigir a violação à literalidade do dispositivo dito violado, ou seja, "violação da lei ou da tese jurídica nela contida; vulneração do ‘ius scriptum’ por infringência do conteúdo normativo de seu texto; afronta o sentido unívoco e incontroverso do preceito legal." (Manual de Direito Processual Civil, v. III, 2ª Parte, n. 707, p. 263).

Ora, se assim é com a violação de lei, o que dizer de meros precedentes jurisprudenciais, ainda que de nossa Corte Suprema? Aliás, repisamos: o entendimento do ilustre ministro GILMAR MENDES, data venia, não encontra guarida em precedente algum, pois as manifestações anteriores do STF sobre a ilegitimidade do MP para ações civis públicas foram sempre exaradas em Recurso Extraordinário manejado tempestivamente, ou seja, dentro do feito principal, e não em sede rescisória. Pelo contrário: o STF já declarou que o apelo extraordinário não se prestava para discutir o cabimento da AR. E foi isto que, infelizmente, neste caso ocorreu: o TRF da 4ª Região havia decidido contra a ação rescisória e negado seguimento ao RE interposto. E como já se manifestara antes o próprio STF, "o cabimento, ou não, de Ação Rescisória, é tema meramente processual, que não alcança nível constitucional e por isso não viabiliza o reexame em RE". Sem falarmos no óbice da Súmula 343, retromencionada.

A propósito: se há um campo onde grassam as divergências a respeito do assunto, este campo é o das ações civis públicas, direitos homogêneos e sua defesa e representatividade, etc., envolvendo-se na discussão, rotineiramente, entidades civis, membros do Ministério Público e juristas em geral.

Todavia, graças ao voto do Ministro GILMAR MENDES, ex-Advogado Geral da União, a Fazenda Nacional, que dormiu no início e conformou-se com a decisão de segunda instância, acabou ganhando uma ação que desafia todas as lições até hoje pregadas sobre o cabimento restrito da via rescisória. Data venia, a decisão parece mais política que jurídica propriamente dita. E afirmamos isso com segurança, pois tanto a questão invocada era controvertida que o TRF da 4ª Região entendera diversamente do ilustre Ministro, como também seu colega, o Ministro CARLOS VELLOSO, relator originário e voto vencido na causa. E sobre a capacidade intelectual e dotação jurídica deste último ninguém duvida.

O ministro CARLOS VELLOSO, como sempre, pautou-se exclusivamente nos inegáveis conhecimentos jurídicos que detém, sem preocupar-se com questões estranhas à atividade judicante, o que é louvável. Até porque o problema de "caixa" do governo é afeto a outras áreas, não devendo jamais ser motivo para o atropelo do bom direito e da melhor doutrina...

Em suma: se a matéria (legitimidade ou não da associação para propor ACP) não era mansa e pacífica, e, principalmente, se não fôra ventilada no momento azado, em sede de Recurso Especial ou Extraordinário, onde – aí sim – seria perfeitamente normal o acolhimento de tese diversa e contrária aos paranaenses, jamais deveria o STF socorrer tardiamente quem dormiu e não recorreu tempestivamente do acórdão Regional, deixando-o transitar em julgado.

Para o subscritor destas linhas em particular, desta feita "o direito socorreu a quem dormiu"... É a antiga máxima "in dubio pro fisco" mais viva (e, quiçá, distorcida) do que nunca.

Fica aqui nossa torcida para que a ilustre advogada que defende a associação e todos os paranaenses consiga reverter essa decisão (política, a nosso ver) em Embargos de Divergência. A "segurança jurídica" e a "paz social" agradecem.

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Sobre o autor
Ivan Cesar Moretti

advogado em Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORETTI, Ivan Cesar. Empréstimo compulsório sobre combustíveis.: A polêmica decisão do STF em ação rescisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 387, 29 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5513. Acesso em: 19 abr. 2024.

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Título original: "A polêmica decisão do STF em ação rescisória".

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