A polícia judiciária militar e o delito de violação de recato

16/01/2017 às 15:58
Leia nesta página:

O crime de violação de recato é pouco conhecido pela Polícia Judiciária Militar e não tem tipificação no Código Penal comum. Desse modo, seu estudo é de grande relevância para o mundo acadêmico.

O delito de violação de recato está inserido no Código Penal Militar (CPM), no capítulo VI: dos crimes contra a liberdade, na Seção IV, dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos de caráter particular.

Tem a seguinte redação o art. 229 do CPM:

Art. 229. Violar, mediante processo técnico o direito ao recato pessoal ou o direito ao resguardo das palavras que não forem pronunciadas publicamente:
Pena – detenção, até um ano.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem divulga os fatos captados.

  De forma imediata, houve uma preocupação do legislador em tutelar a intimidade e privacidade do militar.

  Todavia, não nos pareceu técnica a opção legislativa em delimitar a tutela da intimidade e privacidade aos casos em que estão envolvidos somente militares da ativa.

  Com efeito, o art. 231 do CPM, fazendo referência expressa ao aludido art. 229 do mesmo diploma penal, restringiu a incidência do crime aos fatos em que figuram no polo ativo e polo passivo da conduta delituosa somente militares da ativa (militar da ativa contra militar da ativa).

  Assim sendo, com a referida restrição legislativa, torna-se factível que um civil, funcionário da Administração Militar, em lugar sujeito à administração militar, venha violar, mediante processo técnico, o direito ao recato pessoal de militar, em local privado, e o fato ser considerado um indiferente penal, perante a legislação penal militar.

  Enfatize-se que a norma penal em menção não constava nas legislações anteriores e, desde sua inserção no atual Código Penal Militar de 1969, a estatística demonstra sua incidência tímida, notadamente no que tange à conduta de violação ao resguardo das palavras não pronunciadas em público.

  O crime estampado no art. 229 do CPM é caracterizado por dupla ação nuclear:

  1 – violar, mediante processo técnico, o direito ao resguardo das palavras que não foram pronunciadas publicamente;

  2 – violar, mediante processo técnico, o direito ao recato pessoal.

  No tocante à elementar referente à violação, mediante processo técnico, do direito ao resguardo de palavras, o legislador foi feliz quando estabeleceu uma ressalva às palavras que não forem pronunciadas publicamente.

  Nesse sentido, ressalte-se que não há, em tese, proteção jurídica de palavras pronunciadas em alto e bom som em locais públicos ou entre interlocutores em que não haja relação de sigilo, por exemplo, cliente e advogado.

  A esse respeito, pronunciou-se o STF, em 2009, no RE 402717/PR/Segunda Turma, no qual o relator, Ministro Cezar Peluso, registrou que o uso de conversa privada é perfeitamente legal, sobretudo se ela é usada para defesa própria em investigação criminal.
 
  Ressaltou o Ministro que somente as gravações de conversas protegidas pelo sigilo constitucional, como entre advogados e clientes ou entre padres e fiéis, são ilícitas. Entendeu ainda o Ministro relator que quem revela conversa da qual participou, como emissor ou receptor, não intercepta, apenas dispõe do que também é seu e, portanto, não subtrai, como se fosse terceiro, o sigilo à comunicação.

  Posteriormente, o pleno do STF, analisando um caso com repercussão geral (RE 583.937/RJ/2009), decidiu: “É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro”.

  De observar-se que não há consenso, na doutrina e na jurisprudência, a respeito da privacidade de alguns locais públicos, por exemplo, o espaço reservado de um restaurante. Desse modo, a análise dessa questão vai depender de cada caso em concreto pelos operadores jurídicos.

  Adite-se, contudo, que se vem firmando uma tendência no Brasil em se adotar uma teoria empregada pela Suprema Corte Americana denominada “Teoria da Razoável Expectativa de Privacidade”.
 
  A aludida teoria preconiza que a prática de uma conduta ou diálogo (audível para os transeuntes) em local público não está acobertada pela expectativa de privacidade. De outro modo, havendo uma certa expectativa de privacidade no local onde ocorre uma conduta ou um diálogo, a captação de conversa ou imagem por terceira pessoa pode constituir-se em prova ilícita.

  À guisa de exemplo, vale trazer à colação um fato ocorrido nos EUA, envolvendo o caso Katz vs United States.

  A Suprema Corte americana se deparou com uma difícil questão, referente à violação de privacidade, por iniciativa do FBI, o qual havia instalado escutas no exterior de uma cabine telefônica, de forma a obter provas incriminadoras para o autor Charles Katz, que usou o telefone público para transmitir apostas ilegais de jogos de azar. As provas obtidas embasaram a condenação de Katz, motivo pelo qual houve recurso para a Suprema Corte.
  
  A Suprema Corte Estadunidense entendeu que Katz possuía naquela cabine uma “razoável expectativa de privacidade” e que, portanto, a prova obtida com a escuta era ilegal, e, por força da Quarta Emenda, deveria ser excluída da instrução penal.

  Dessa forma, a captação de conversas, por intermédio de processos técnicos, em local sujeito à administração militar, onde haja uma razoável expectativa de privacidade, pode configurar, em tese, o crime de violação de recato, caso adequada a uma das circunstâncias descritas no art. 9º do Código Penal Militar (militar da ativa contra militar da ativa).

  O fato não se confunde, conforme já mencionado, com a gravação ambiental clandestina feita por um dos interlocutores (militar gravando conversa entabulada com outro militar), a qual, em regra, não é ilícita.

  Advirta-se, contudo, que o encarregado de inquérito não pode gravar, de forma sub-reptícia, oitiva formal ou conversa informal de indiciado, sem que este seja advertido quanto ao seu direito ao silêncio, conforme já decidiu o STF no HC 80.949 de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence.

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  No que concerne à outra elementar do tipo do art. 229 do CPM, vale dizer, violar, mediante processo técnico, o direito de recato pessoal, a estatística demonstra que, no passado, sua incidência era insignificante e, com o passar dos tempos, notadamente a partir do ingresso de mulheres no efetivo das três Forças Armadas, o delito em questão, nessa modalidade, passou a ganhar destaque, fato que se comprova em razão da instauração de diversos IPMs para apurar uma espécie de voyeurismo em ambiente castrense.

  O voyeurismo constitui-se em uma invasão de privacidade, uma vez que pessoas são observadas geralmente em trajes íntimos, sem consentimento.


  Estima-se que, nos dias atuais, existam 22.208 mulheres integrando o efetivo das Forças Armadas. A Aeronáutica é a Força que possui o maior corpo feminino em seus quadros.

  Os casos de IPM, instaurados na circunscrição do Rio de Janeiro, para apurar o delito de violação de recato, retratam, em sua essência, a utilização de aparelho celular ou aparelhos espiões (chaves e canetas), colocados clandestinamente em alojamentos e banheiros femininos com a finalidade de captar imagens de militares femininas sem trajes ou em trajes íntimos.
 
  Ressalte-se que na legislação penal comum não há norma penal com similitude ao crime de violação de recato no CPM.

  De fato, recentemente, em junho de 2016, foi noticiado na mídia o caso de um garçom que teria filmado, via celular, clientes que usavam banheiro feminino em um restaurante no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro. A conduta do garçom foi enquadrada na contravenção penal denominada “importunação ofensiva ao pudor”: “Art. 61 – importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor. Pena: multa”.

  Como visto, o celular vem sendo utilizado como instrumento para a prática do crime de violação de recato.
  
  Nesse sentido, uma questão processual exsurge como relevante: o celular utilizado para a prática do crime de violação de recato (art. 229, CPM) pode ser apreendido sem ordem judicial? Caso apreendido, sem ordem judicial, seria considerado prova ilícita captação de imagens contidas no celular?

  O STF, julgando uma questão similar, no HC 91.867/2012, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, ao analisar uma prisão em flagrante, no qual os agentes policiais examinaram os últimos registros telefônicos do celular apreendido, decidiu que não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos. Os registros telefônicos (depósito registral) não estão protegidos pela cláusula do art. 5.º, XII, da CF. Considerou ainda o relator que é dever da autoridade policial proceder à coleta de material comprobatório de prática de infração penal.

  Dessa forma, na hipótese aventada acima, tendo em vista que o celular foi usado como instrumento para a prática de crime, a PJM deverá, aplicando interpretação jurisprudencial, submeter o celular apreendido à perícia a fim de que resulte demonstrada a prova da materialidade do delito.

  Por fim, vale ressaltar que o legislador do CPM (1969) foi visionário ao projetar um tipo penal futurista, cuja mens legis tinha como objetivo a proteção da privacidade e intimidade de violações, obtidas por processo técnico, em uma época na qual seria inimaginável vislumbrar o boom hodiernamente existente nas redes sociais com a utilização indiscriminada e indevida de sofisticados aparelhos eletrônicos, nas mais diversas ambiências possíveis.

Referências:


            ASSIS, Jorge César. Código de Processo Penal Militar anotado. Curitiba: Juruá, 2004.

FREITAS, Ricardo; ROCHA, Guilherme; MARREIROS, Adriano Alves. Direito Penal Militar – Teoria, Crítica e Prática. São Paulo: Método, 2015.

GORRILHAS, Luciano Moreira; BRITTO, Cláudia Aguiar. A Polícia Judiciária Militar e seus desafios – Aspectos Teóricos e Práticos. Nuria Fabris, 2016.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de Direito Processual Militar. Saraiva, 2014.

Katz v. United States. 389 U.S. 347 (1967). U.S. Supreme Court.

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Sobre o autor
Luciano Gorrilhas

Subprocurador-geral de Justiça Militar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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