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A possibilidade de integração de subgrupos culturais por meio da atividade jurisdicional

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31/07/2004 às 00:00
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IV – Os reflexos que dessas peculiaridades devem advir, na atividade de aplicação do direito:

            Constatadas pelo operador do direito as peculiaridades existentes no seu campo de atuação, haverá ele de tentar contemplá-las tanto quanto mais esteja consciente da necessidade de integração que deve nortear a sua intervenção junto à comunidade através da sua atividade profissional. Dito de outra maneira, que na busca de um maior grau de legitimidade na decisão que prolata deve procurar impregnar essa decisão da coloração ditada pelas nuanças da vida daquela comunidade, destinatária da decisão – porque inicialmente é naquela comunidade que irão repercutir os efeitos da sua decisão. Assim, a legitimidade da decisão se coloca como condição imprescindível para a objetivada integração.

            Quanto a esta "integração", não é outra coisa que não a recomendação constante do art. 5.º do Dec. Lei 4.657/42, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, que dispõe que, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Na verdade, os fins sociais a que a lei se dirige não poderão ser outros que não a perfeita convivência no interior do grupo social (integração de todos). Da mesma forma, as exigências do bem comum dizem respeito à necessidade de convivência harmônica do grupo (integrando todos). Por outro lado, o bem comum atinge-se, aqui, pela via da regular distribuição de justiça, única forma, no Estado democrático de direito, de dirimir conflitos (o que, em última análise, vai possibilitar essa convivência harmônica pela integração de todos).

            Mas esse bem comum pode assumir um outro significado quando se pensa na necessidade de integração do grupo diferenciado ao âmbito maior da comunidade. Esta necessidade não escapou a Renato Pacheco no seu "Atitudes perante a lei, em uma sub-cultura brasileira": o autor conclui dizendo que só através da aplicação da lei na área da colônia objeto de seu estudo é que se conseguirá uma mais rápida assimilação da comunidade (23). Assim, no caso específico da voluntária contemplação das peculiaridades que ocorrem no Espírito Santo, a intervenção do aplicador do direito será de molde a fomentar a integração de um sub-grupo cultural diferenciado à comunidade nacional (aqui no sentido daquela que faz editar a norma de conduta dominante, positivada) pela administração eficiente da diversidade. E por "administração eficiente" não outra coisa se entende que o impregnar a sua intervenção dos valores correntes no sub-grupo, obviamente nos limites que lhe impõe a legalidade.

            Esta necessidade, de certa forma, não escapa também aos juízes de direito em contato com essas comunidades, em maior ou menor grau, e a investigação deve ser feita, agora, da possibilidade ou não dessa administração das diferenças dentro da legalidade, utilizando o ferramental que a dogmática penal coloca à disposição.


V – Breves considerações sobre a doutrina penal, para resolução do problema em sede de direito positivo:

            O trato penal das diferenças culturais do agente delituoso se faz, no direito brasileiro, em sede de imputabilidade, que significa a possibilidade (por questões de desenvolvimento biológico) de se atribuir a prática do delito ao agente. Assim, são inimputáveis os menores de dezoito anos, os loucos e que apresentem desenvolvimento mental incompleto ou retardado e os silvícolas, na medida de sua integração à civilização branca.

            Com relação a estes últimos, tal construção se baseia em tese antropológica de há muito ultrapassada, a de que a comunidade avança rumo à civilização em estágios sucessivos, desde a barbárie até uma situação de civilização plena. Esta tese, devida a Tylor, foi abrandada pelo relativismo de Franz Boas, que introduziu no modelo uma variante referente à condicionante histórica da evolução do grupo. Ou seja, a evolução pode-se dar de maneira distinta para grupos humanos distintos (24). Portanto, em matéria de aplicação da pena ao agente de um delito, a distinção que se deve fazer entre um adulto europeu são e um índio do Xingu da mesma forma são diz respeito, tão somente, ao desenvolvimento cultural diferenciado entre ambos. O que desloca o problema da aplicação da pena da sede da imputabilidade para a da consciência da ilicitude: tem ou não o agente a consciência de que o ato que pratica é contrário ao direito em vigor (e com o qual direito, pelas suas condições pessoais, não tem maior contato)? Retorna a questão do direito vigente no sub-grupo culturalmente diferenciado de onde seja originário o infrator (25).

            Levando-se em conta que a alegação de desconhecimento da lei não é escusa que em matéria penal aproveite ao agente, a única solução que se coloca é a de, movendo-se dentro do grau de discricionariedade permitida ao julgador pela fixação de limites mínimos e máximos da pena cominada a cada delito, dosar a sanção na medida inversamente proporcional ao esforço despendido pelo agente para compreender a ilicitude da conduta que praticou. Ou seja, se no seu meio a conduta punível é pouco censurada à vista dos usos locais, de molde a exigir-lhe maior esforço para alcançar a reprovabilidade do ato que cometeu, mais a pena se deverá aproximar do mínimo legal (obviamente levando em conta as demais circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal Brasileiro, que cuida da fixação do quantum da pena) (26). O julgador estará, dessa forma, a desincumbir-se de sua função – especificamente, em matéria penal, promovendo a retribuição do Estado ao que tenha atentado contra a ordem pública – mas, pela contemplação da diferença, estará também promovendo a chancela do Estado à sobrevivência do pluralismo que decorre da diversidade.

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VI – Por fim...

            A necessidade da composição de diferenças decorrentes da diversidade pela atividade jurisdicional não é, propriamente, preocupação nova. Desde a época em que as legiões romanas marcharam sobre os quatro cantos da Europa a administração do Império teve que andar às voltas com a questão de integrar os povos dominados ao direito que oferecia ao mundo. Cristianizados os romanos, miscigenados de povos ditos bárbaros que se aproveitaram da decadência de Roma para penetrar-lhe a civilização, passaram a conviver, nos mesmos espaços urbanos, com judeus e mouros e outros grupos étnicos, sob a mesma lei (já não, necessariamente, o direito romano). A não tolerância do Estado significaria sempre, nestas condições, a insurreição contra o poder constituído. Da mesma forma se deparam com o problema os operadores do direito atuais, que devem ter em conta a legitimidade da decisão como fator maior de sua eficiência. Num território como o do Brasil, em geral, e do Espírito Santo, em particular, marcados por detectáveis diversidades culturais, esta questão deveria ocupar mais de perto tanto investigadores quanto operadores do direito. Foi a ausência de construção doutrinária a respeito que me levou a encarar o trabalho, na certeza de que a necessária crítica só fará enriquecer o acervo respeitante ao tema.

            Portanto, outro não foi o propósito deste texto que não o de expor em linhas gerais as vigas mestras da argumentação que resultou na tese de mestrado a seu tempo aprovada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. A propósito, foram privilegiadas as referências ao levantamento das peculiaridades locais que inspiraram o trato do objeto de estudo. Se o problema, como referido no parágrafo acima, pode surgir – e de fato surgiu - da contemplação dos milenares edifícios das judiarias e mourarias de Évora e Toledo, este problema está efetivamente presente também aqui, nas serras da região central e no litoral centro-norte do Espírito Santo. Porque os problemas que o homem tem que resolver no cotidiano são sempre os mesmos, ainda que possam parecer tão distantes no tempo e no espaço.


Referências Bibliográficas:

            ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral. 10ª ed. Coimbra: Almedina, 1999.

            BARRADO, Castor Diaz. La Proteccion de las Minorias Nacionales por el Consejo de Europa. Madrid, 1999.

            BERNARDI, Bernardo. Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos. Trad. A. C. Mota da Silva. Lisboa: Ed. 70 Ltda., 1992.

            CRUZ, Maurilen (org.). Faça-se Aracruz: Subsídios para estudos sobre o município. Serra: Ed. Tempo Novo, 1997.

            ERLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito. Tradução de René Ernani Gertz. Brasília: Ed. UNB, 1986.

            HERKENHOF, João Baptista. A função judiciária no interior. 1977. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1977.

            LÉVY-BRUHL, Henry. Sociologia do Direito. Tradução de Antônio de Pádua Daueri. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

            MEDEIROS, Rogério. Espírito Santo: Encontro das Raças. Vitória, 1997.

            MIRANDA ROSA, F. A. Sociologia do Direito: O Fenômeno Jurídico como Fato Social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999

            MURSWIECK, Dietrich.. Modern Law of Self- Determinacion. "The Issue of a Rigth of Secession - Reconsidered". Developments in Internacional Law. v. 16. Christian Tomuschat ed.. Dordrecht/Boston/London: Martinus Nijhoff Publishers, 1993.

            NEVES, Getulio Marcos Pereira. A Aplicação da Lei Penal num ambiente multicultural: o caso do Estado do Espírito Santo. 2001. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001.

            ------------------------------------------- Dois estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo e sua atualidade. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória, n.º 55, pp. 175/183.

            ------------------------------------------- O Homem e a Norma. Revista Destarte. Vitória, vol. 2, n.° 1, pp. 29/56, 1.° sem 2003.

            PACHECO, Renato José Costa. Atitudes Perante a lei, em uma sub-cultura brasileira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória, n. 21, p.54/56, 1960.

            OSÓRIO, Carla et al. Negros do Espírito Santo. São Paulo: Escrituras, 1999.


Notas

            1

Vide, por exemplo, Miranda Rosa (1999:173/187); Eugen Erlich (1986:97/107); Lèvy-Bruhl (1997:65/77).

            2

Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória: IHGES, n.º 55, 2001.

            3

Conforme Bokatola, I., apud Barrado (1999:19).

            4

Para Murswieck (1993:38) "if a state does not satisfy people´s claim to cultural rights and autonomy, then the people must have right of secession, in order to exercise its self-determination."

            5

Da lição de José de Oliveira Ascensão (1999:253/255).

            6

O termo "usos" foi utilizado pelo legislador no significado de costume eis que, não havendo consciência da obrigatoriedade da conduta, esta torna-se juridicamente irrelevante para o fim de regular relações jurídicas.

            7

É interessante notar que a população em sua maioria descendente de alemães (na verdade, existem os descendentes de alemães e os descendentes de pomeranos, da antiga região hoje dividida entre a Alemanha e a Polônia) são ainda menos integrados que os descendentes de italianos. Os imigrantes e seus descendentes tinham necessidade de se defender do meio hostil pela preservação de sua cultura, resistindo, assim, sobremaneira à aculturação. Neste processo de resistência a religião tinha, como é óbvio, muita importância, sendo que ainda hoje o líder religioso tem grande ascendência sobre a comunidade. No caso dos alemães e pomeranos, de profissão religiosa luterana, a desconfiança com relação aos "da terra", católicos, era ainda maior. Este problema não se verificou de forma tão dramética com italianos, também católicos, e seus descendentes.

            8

Esta distribuição geográfica, bem como aspectos históricos e econômicos dos grupos de imigrantes no Espírito Santo e seus descendentes em MEDEIROS, Rogério. Espírito Santo – Encontro das Raças. Vitória: 1997.

            9

Especificamente sobre as comunidades negras não só do norte, mas de todo o Estado, OSÓRIO et al, Negros do Espírito Santo. São Paulo: Escrituras, 1999.

            10

Como consta em Faça-se Aracruz – subsídios para estudos sobre o município. Maurilen de Paulo Cruz (org.). Serra/ES: Ed. Tempo Novo, 1997.

            11

Em sua dissertação de mestrado intitulada "A Função Judiciária no Interior" apresentada em 1977à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; conforme concluí em "Dois Estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo em sua Atualidade", in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória: IHGES, n.º 55, 2001.

            12

Ambos serviram de tema a obras literárias: o primeiro, além do "Insurreição do Queimado", do Desembargador Afonso Cláudio de Freitas Rosa (publicado originalmente em 1884 e reeditado em 1979 e 1999), deu motivo também à peça de teatro "Queimados", de 1977, e ao romance "O Templo e a Forca", de 1999, ambos de Luiz Guilherme Santos Neves; o segundo serviu de tema a "Canaã", de Graça Aranha, publicado em 1901 e saudado como o primeiro romance a manifestar idéias socialistas na literatura brasileira.

            13

De que também me ocupei no já referido texto "Dois Estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo e sua Atualidade".

            14

Informante o Juiz Amílcar Fernando de Oliveira Lellis.

            15

Informante o Juiz Luiz Guilherme Risso.

            16

Informante o Juiz Sebastião Vieira Rangel.

            17

Corroborando a opinião, registre-se que no processo 1118/98, uma das três únicas ações penais contra indígenas nos últimos cinco anos, o Tribunal Popular do Juri da Comarca houve por bem desclassificar a imputação de tentativa de homicídio que se fazia ao Réu para a de lesões corporais qualificadas, sendo que em virtude da desclassificação a pena aplicada foi de um ano e nove meses de reclusão.

            18

Informante o Juiz José Renato Silva Martins.

            19

José Renato Silva Martins.

            20

Idem.

            21

Sebatião Vieira Rangel.

            22

Patrícia Pereira Neves.

            23

Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória, n.º 21, 1961.

            24

Mais sobre teorias antropológicas em Bernardi (92:165/223).

            25

Explorei o problema no texto "O Homem e a Norma", in Revista Destarte. Vitória: Faculdade Estácio de Sá de Vitória, vol. 2. N.º 1, 1.º Sem 2003.

            26

A idéia encontra-se desenvolvida com o devido rigor dogmático em Neves (2001:107/116).
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Sobre o autor
Getúlio Marcos Pereira Neves

juiz de Direito em Vitória (ES), mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Getúlio Marcos Pereira. A possibilidade de integração de subgrupos culturais por meio da atividade jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 389, 31 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5514. Acesso em: 3 mai. 2024.

Mais informações

Artigo publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Vitória: IHGES, n.° 57, 2003.

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