Palavras chave: Militar; Exclusão; Ato Administrativo; Reforma; Reintegração, adido.
Breve colocação do Problema: Uma das grandes problemáticas que fazem parte do cotidiano dos militares é a aquisição de doenças ou lesões durante ou em decorrência do serviço na ativa, o que, não raras vezes, acaba por produzir a perda temporária ou mesmo permanente da capacidade laboral, tornando-o incapacitado para o exercício normal de suas funções. Entretanto, em situações em que este servidor público, já portador de moléstia incapacitante parcial ou total, vê-se envolvido em processo administrativo que resulta em exclusão dos quadros da Organização Militar, é agravada sua vulnerabilidade e a violação de direito. Neste caso, há o dever por parte do Estado e seus agentes tratarem de forma adequada a particular situação, devendo ser assegurado o constitucional direito fundamental à saúde, recaindo sobre este Estado que se beneficiou quando o militar estava em plena capacidade laborativa a responsabilidade de não apenas proteger tal direito, mas de garantir que o servidor militar retorne à vida civil nas mesmas condições de saúde que possuía quando de seu ingresso na caserna, ou em não existindo a possibilidade de cura ou recuperação, que o militar seja encaminhado para os procedimentos formais de reforma. Desde tal perspectiva, a autoridade administrativa, ao conceder o licenciamento do militar ou exclusão das fileiras das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) ou Forças auxiliares (Policia Militar e Bombeiro Militar), tem o dever de assegurar tratamento médico até a recuperação ou a reforma em casos de perda irreversível da capacidade laboral, como a seguir brevemente será demonstrado.
Ato administrativo: discricionariedade x vinculação
O ato da administração pública que incide sobre a exclusão ou reforma de militares é definido como o praticado no exercício da função administrativa, que se caracteriza por concretizar e/ou prover, de maneira imediata e concreta, às exigências individuais e coletivas para atender interesses públicos previstos em lei. Em síntese, pode-se compreender o ato administrativo como manifestação do Estado, através de seus agentes no exercício regular de suas funções, cuja finalidade imediata é criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir direitos em matéria administrativa (DI PIETRO, 2014, p.199 e segs). Constitui-se como uma declaração do Estado (ou quem lhe faça as vezes – como por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante jurídicas complementares da lei a título de lhe cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 389).
Portanto, o ato administrativo é, por sua essência e natureza, além de declaração jurídica, um agir exercido por aquele que é investido de prerrogativa estatal e sujeita ao exame de legitimidade por órgão judicial, devendo, desde tal perspectiva, ser compreendida a discricionariedade ou, como prefere Bandeira de Mello, designar atos praticados no exercício da competência discricionária, para diferenciar os atos vinculados – aqueles que, por tipificação legal, são os únicos possíveis da Administração, de objetividade absoluta – seriam os praticados com margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles (p.434).
Nos casos em que militares portadores de enfermidade incapacitante, parcial ou total, por sua particularidade, é que devem ser estabelecidos pressupostos e critérios discricionários adequados e válidos por parte da Administração Pública.
A discricionariedade inerente ao agente público não deve ser compreendida como ampla e ilimitada liberdade de decisão, mas sempre um ato relacionado ao fim, ou seja, obrigatoriamente a realização de um interesse público e, como alguns doutrinadores sublinham, o interesse público implica em juízo discricionário, em liberdade dentro da lei e nos limites legais, que é definida como:
A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, afim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 436).
Portanto, não há como divorciar o ato discricionário do princípio da legalidade, princípio este pelo que o Estado Democrático de Direito distancia-se do sentido original do Estado liberal clássico. Tão somente para estabelecer um marco divisório é necessário compreender a legalidade no marco do Estado Democrático como instrumento-meio que permite a alteração de situações concretas com vistas a corrigir desigualdades e, desta forma, garantir a isonomia não apenas formal, mas também material.
Assim, a lei tem a função de concretizar valores estabelecidos pela ordem constitucional, implementando intervenções e/ou modificações da realidade perdendo seu caráter meramente normativo formal tornando-se meio através do qual o Estado por seus agentes promove a concretização de direitos fundamentais.
É neste contexto que devem ser definidos os atos administrativos uma vez que há a supremacia da Constituição e dos direitos fundamentais na ordem jurídica e política e vincula de forma inquestionável a ação dos poderes públicos, uma vez que, embora o ordenamento jurídico seja composto por diversas categorias normativas, há uma rígida composição hierárquica entre as normas, essência da segurança jurídica, possibilitando afastar-se qualquer dúvida do órgão de decisão acerca de qual deve ser a norma a ser eleita para o caso concreto.
Assentada sobre essa premissa, básica, frise-se, nem sempre lembrada pelos operadores do direito, em especial, os administradores públicos, que, por muitas vezes, declaram o direito sob uma ótica avessa ao texto constitucional, nossa constituição pauta toda atividade administrativa, elencando princípios e demais cominações de observância obrigatória a toda atividade da administração pública, Federal, Estadual ou Municipal.
É neste sentido que deve ser compreendido o princípio da legalidade insculpido no artigo 37 da Constituição Federal, e, reafirma-se, vincula os demais mandamentos que regem as atividades administrativas, afastando-se a visão simplista e superficial da lei.
Por sorte, essa constitucionalização do princípio da legalidade promoveu um freio às mazelas promovidas no seio da coisa pública (teorias do desvio de poder e dos motivos determinantes), bem como promoveu não só uma diminuição no âmbito do poder discricionário da administração, mas, efetivamente, promoveu uma vinculação do ato discricionário, que precisa ser legal e revestido de legitimidade constitucional. Dentro dessa roupagem jurídica, por condução lógica, também foi ampliado à esfera de controle judicial sobre os atos discricionários, pois a decisão deixou de ser uma mera escolha e passou a possuir vinculação legal de berço constitucional, dando ensejo a um controle de constitucionalidade dos atos administrativos discricionários.
Em síntese, muito embora o “ato administrativo discricionário” faça parte de uma zona de autonomia do administrador, há muito está superada a tradicional tese de que apenas cabe o controle jurisdicional em relação à forma. No caso brasileiro a existência de uma Constituição compromissória impõe obrigações ao administrador. Por outras palavras, o ato administrativo não escapa ao controle da constitucionalidade, é sempre um ato autorizado.
Dessa forma resta claro e certo que a Administração Pública é dotada de poder discricionário, mediante o qual, dentre duas ou mais opções de agir válidas perante o Direito, incumbe a ela a escolha, obedecidos os critérios de conveniência e oportunidade. Contudo, o exercício da discricionariedade administrativa não é absoluto, intocável ou arbitrário, cabendo ao Judiciário exercer o controle sobre os atos da Administração quando em desconformidade com os valores norteadores da ordem legal e constitucional.
Discricionariedade do Ato Administrativo x Direito à Saúde
Ora, outra não é a certeza nos dias atuais quanto à essência das funções estatais, com especial atenção à função administrativa, que estas funções estatais somente possuirão o selo da legitimidade se estiverem voltadas a conjugar as necessidades do interesse público (frise-se), de forma discricionária, mas vinculada com a norma constitucional, afinal, a constituição de 1988 é uma constituição cidadã e, por sorte, representa uma outorga do povo, da qual emana todo o poder e por consequência teve ter como bússola a concretude de direitos fundamentais, em especial o da saúde antes e primeiro do que qualquer outro.
Se o cidadão tem assegurado na Constituição o direito fundamental à saúde (Art. 6º), por sorte, o respectivo direito recai sobre a responsabilidade do Estado a quem compete não somente proteger, mas promovê-la em todas as suas vertentes, quanto à garantia de saúde do indivíduo.
Em tal perspectiva de controle jurisdicional do ato administrativo é visível a possibilidade de anulação dos atos discricionários, produzidos pela administração pública, quando eivados pela ilegalidade e em confronto com princípios e direitos de envergadura de direito social fundamental, como o direito a saúde.
As alterações legais promovidas pela Constituição Federal, fruto das mudanças sociais que eclodiram no novo espaço democrático, intuíram na sociedade brasileira a inserção do direito à saúde como direito social fundamental. Não por outra razão, verifica-se que, dentre os direitos sociais elencados no texto constitucional, precipuamente dentro dos direitos sociais, foi reservado especial destaque ao direito à saúde, reservando a este importante direito fundamental, tratativas em capítulo específico, o que denota a preocupação e o cuidado do constituinte originário com este importante e fundamental direito, ligado umbilicalmente à dignidade da pessoa humana, pois atrelado ao direito à vida e a tratamento médico digno, que se reveste dentre as mais básicas necessidades humanas, posicionando-se em patamar superior a qualquer ato administrativo, que, em confronto com este (fundamental), por sorte, restará inválido.
Reintegração do Militar às fileiras castrenses para tratamento de saúde ou Reforma.
A discricionariedade de que goza a administração para licenciar/excluir militares não pode se sobrepor ao direito à saúde e à integridade física do militar, conforme assegura todo o desfralde argumentativo ora esposado, tendo o servidor militar o direito de retornar à vida civil nas mesmas condições de saúde de que gozava quando ingressou na caserna, em virtude da vinculação do militar ao Estado, razão por que a autoridade administrativa, ao proceder ao licenciamento do militar das fileiras do serviço castrense, deve observar a garantia legal que confere ao militar incorporado o direito a tratamento médico, até sua recuperação, ou reforma em caso de não recuperação.
O STJ e o STF, em diversos julgados, já reconhecem a ilegalidade do ato administrativo que culmina com a exclusão de militar que, por motivo de doença ou acidente em serviço, torna-se temporariamente incapacitado para o serviço ativo, fazendo jus à reintegração como adido, para fins de tratamento médico adequado, conforme pode ser observado nos julgados: STJ - AgRg no Ag 1340068/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 17/02/2012 e ARE: 879140 RS - RIO GRANDE DO SUL 5032157-80.2010.4.04.7100, Data de Julgamento: 13/04/2015, Data de Publicação: DJe-072 17/04/2015.
Dessa forma não se exige nenhum esforço hermenêutico para interpretar que a condição prévia para o licenciamento/exclusão de um militar, que, nos termos da melhor jurisprudência, doutrina referencial, assentados no postulado básico e fundamental da dignidade da pessoa humana, tão bem esculpido em nossa carta cidadã de 1988, é que o militar esteja em perfeita condição de saúde, caso contrário, não pode ser desligado da corporação enquanto não curado da convalescença.
O Direito à garantia da saúde não pode, como bem coleciona o arrazoado de jurisprudência e doutrina, ser colocado em detrimento de uma penalidade administrativa. O direito à saúde, sobretudo, o direito à saúde de um militar que se acidentou ou adoeceu em serviço ou durante o período que estava incorporado à vida castrense é a consagração constitucional da "teoria do mínimo existencial de dignidade humana".
Do restabelecimento das verbas remuneratórias (alimentos) vincendas e a devolução das verbas alimentares vencidas desde o licenciamento indevido do Militar acometido por doença/moléstia incapacitante temporária ou permanente.
Restando claro que, no momento em que foi excluído, o militar portava doença que carecia de tratamento, mostra-se ilegal sua exclusão, devendo o militar ser reintegrado como adido para tratamento da doença e como consectário legal deve-se restabelecer as verbas alimentares (remuneração) vincendas e operar a devolução das verbas vencidas desde o marco inicial da exclusão indevida, uma vez que o militar mantido como agregado para tratamento de saúde faz jus à percepção da remuneração equivalente à graduação que possuía na ativa, desde o desligamento até a efetiva reabilitação.
Nesse mesmo sentido, a posição do STJ sobre o tema é de que, constatada a ilegalidade do ato administrativo que excluiu o militar, é legítimo o pagamento das parcelas pretéritas relativas ao período que medeia o licenciamento ex officio e a reintegração do militar, conforme podemos colher dos seguintes julgados: STJ - AgRg no REsp 1137594 / RS - QUINTA TURMA – Rel. Ministro JORGE MUSSI – Decisao de 10/08/2010 – Pub. 13/09/2010. Outros precedentes: STJ - AgRg no REsp 1226918/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 27/04/2012; STJ - AgRg no Ag 1340068/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 17/02/2012; TRF2 - AC 200751010224043 - SEXTA TURMA ESPECIALIZADA – Rel. Desembargador Federal GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA – Decisao de 19/03/2012 – Pub. 26/03/2012.
Nesse mesmo caminho, a anulação do ato administrativo de exclusão do militar opera efeitos ex tunc, porque, assim, tem o militar pleno direito de perceber os vencimentos que lhe seriam pagos no período em que ficou ilegalmente afastado.
Isso porque a ilegalidade do ato administrativo culmina, por vezes, em uma situação de total desamparo do militar, que, uma vez excluído da corporação militar portando moléstia incapacitante, ainda enfrenta o grave problema da ausência de remuneração e, muitas vezes, excetuado a profissão de militar, não possui qualquer outra qualificação profissional, encontrando sérios problemas em recolocação no mercado de trabalho, pois desqualificado e portador de moléstia incapacitante que reduz ou nulifica sua capacidade laborativa.
Referências.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: ed. Atlas, 27ª ed., 2014.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: ed. Malheiros, 31ª ed., 2014.