A falta de previsão editalícia e exigência de medidas garantidoras da qualidade das compras e atendimento a outras normas nas compras governamentais

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19/01/2017 às 18:04
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Baseado em julgados da Egrégia Corte de Contas, abordaremos aspectos relativos à constatação da falta de exigência e previsão editalícia de certificações compulsórias e outras medidas necessárias à garantir a qualidade das compras governamentais.

Para organizar o texto, neste singelo estudo, faremos uso de determinadas definições do vocabulário técnico de auditoria do Tribunal de Contas da União. Para fins didáticos, utilizaremos as considerações derivadas do termo “achado” ou “constatação”, que segundo vocabulário técnico do Glossário de Termos do Controle Externo (BRASIL, 2012), do próprio TCU, significa:

Qualquer fato significativo, digno de relato pelo auditor, constituído por quatro atributos essenciais: situação encontrada (ou condição, o que é), critério (o que deveria ser), causa (razão do desvio em relação ao critério) e efeito (consequência da situação encontrada). Decorre da comparação da situação encontrada com o critério e deve ser devidamente comprovado por evidências. O achado pode ser negativo, quando revela impropriedade ou irregularidade, ou positivo, quando aponta boas práticas de gestão. (BRASIL, 2012, p.4)

Assim, entre outras, baseado em julgados da Egrégia Corte de Contas, abordaremos aspectos relativos à constatação da falta de exigência e previsão editalícia de certificações compulsórias e outras medidas necessárias a garantir a qualidade das compras governamentais no que diz respeito a bens e serviços comuns.


1 Situação encontrada

No que se aplica, falta de previsão em edital de certificação compulsória, o que inclui normas da ANVISA, ABNT, INMETRO, IBAMA e outros, bem como cláusulas obrigatórias de comprovação de qualidade, procedência e manipulação, além de estabelecer regras relativas às normas técnicas, embalagem, rotulação, ato de registro ou autorização para funcionamento de empresas e requisitos ambientais.


2 Critérios referenciais doutrinários e jurisprudenciais1

Cabe à administração verificar, conforme o caso, as normas em vigor que estabeleçam os critérios de compra e venda dos produtos ou serviços que se quer contratar, destacando que trata-se de uma obrigação, antes de mais nada, o atendimento aos preceitos legais por parte dos gestores em nome do princípio da legalidade (ou juridicidade, no sentido mais amplo de acordo com recentes entendimentos).

A literatura administrativa é pródiga acerca da omissão de cláusulas editalícias que garantem a qualidade mínima das contratações, deixando por conta da conveniência dos contratados a opção para atender parâmetros qualitativos e outras tantas premissas afins.

Para ilustrar o quanto aqui se defende, relevante transcrever excerto de lições do notável Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (2015, p.117), no que chama de “O dever jurídico de garantir a qualidade”, in verbis:

Em vários dispositivos, a Lei nº 8.666/1993 aponta como vetor de atuação administrativa e dever do gestor público a indicação de qualidade do produto. A administração tem o dever de indicar o objeto pretendido na licitação, inclusive com as características necessárias à qualidade satisfatória. Aliás, no pregão, muito criticado por apressar a licitação sem garantir a qualidade, a regra foi tão destacada que a própria lei só admite considerar como comum um objeto se for possível descrevê-lo assegurando a qualidade.

A respeito do assunto, Marçal Justen Filho (2009, p.10) dá a seguinte contribuição:

Isso significa que o pregão é necessariamente orientado a selecionar a melhor proposta, o que envolve uma avaliação da qualidade mínima do objeto. Lembre-se que as licitações de menor preço não excluem as exigências de qualidade mínima. Aliás, muito pelo contrário, é inafastável que o Edital estabeleça os requisitos de qualidade mínima, sob pena de nulidade insanável.

Assim, devemos enfatizar que não basta apenas os cuidados na descrição do objeto com vistas a impedir a contratação deficiente. As condições relativas às certificações, sempre que possível ou obrigatórias, devem ser estabelecidas no instrumento convocatório.

Há quem possa entender que quando o objeto é considerado comum, não caberia a exigência de qualquer norma técnica em razão da sua própria natureza, ou seja, que para ser considerado como tal haveria de possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado. Ocorre que entre os bens com especificações usuais de mercado, há os que possuem certificação obrigatória ou estão sujeitos a regulamentação específicas – e assim devem ser tratados.

Nessa senda, é possível compreender que, ao verificar os contornos do texto normativo, a falta de menção aos pressupostos aplicáveis a dada norma não implica inaplicabilidade deles e que, na questão aventada, a exigência de certificação, seja do objeto, seja da licitante, quando for o caso, deve ser incluída no rol dos atos vinculados.

Justen Filho (2009, p.19), apresenta outro argumento relevante:

Em suma, o pregão facilita a ocorrência de um problema diagnosticado pela Economia sob a expressão “seleção adversa”. A questão foi objeto de um estudo de George A. Akerlof, que a ele propiciou a obtenção do Prêmio Nobel da Economia de 2001. O estudo versou sobre qualidade e incerteza, que afeta todo o mercado em que existam produtos com grau de qualidade muito diferentes. A aquisição de produtos sem critérios de qualidade gera o risco da redução na qualidade média dos bens e na própria redução do mercado. O tema envolve assimetria de informações entre comprador e vendedor. Ou seja, o comprador não dispõe de conhecimento preciso e exato sobre a qualidade do objeto ofertado no mercado. Se o critério de escolha for simplesmente o menor preço, o resultado será a aquisição do pior produto possível. (grifamos).

Frise-se, porque extremamente importante, que não se trata de fazer exigências desnecessárias e que possam constituir abuso e restrição à competição pretendida nos processos licitatórios. Como regra, os órgãos de controle aplicam penalidades aos que elaboram editais que restringem a competição. Tratamos, portanto, de prever em edital e termo de referência, cláusulas e especificações suficientes que cumpram exigências legais e que garantam o resultado final desejado da contratação e não de indébitas restrições à competitividade que, por corolário, são vedadas pelo art. 3º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993.

O mister não é tão simples. O próprio Jacoby Fernandes (2015, p.157), reconhece o grau de dificuldade: “Uma das atividades mais difíceis do gestor público consiste na definição do produto com a qualidade pretendida. O produto, a embalagem e a quantidade mínima são entraves que só a experiência e a técnica permitem afastar com eficiência”.

E é na jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) que vamos encontrar diversas considerações a respeito, tanto no que diz respeito à falta, como ao excesso de exigências editalícias relativas a qualidade das compras governamentais. Senão vejamos:

Administração Pública deve procurar produtos e serviços com a devida qualidade e que atendam adequadamente às suas necessidades”. Nesse sentido, destacou (o relator) a importância de se mudar o paradigma predominante da busca do menor preço a qualquer custo, que, muitas vezes, ocasiona contratações de obras, bens e serviços de baixa qualidade, que não atendem a contento às necessidades da entidade contratante, afetando o nível dos serviços públicos prestados. Assinalou que a certificação de acordo com norma da ABNT permite à Administração assegurar-se de que o produto a ser adquirido possui determinados requisitos de qualidade e desempenho. Ponderou, contudo, que a busca pela qualidade não significa descuidar da economicidade ou desconsiderar a necessidade de ampliação da competitividade das licitações, devendo ser avaliado em cada caso “se as exigências e condições estabelecidas estão em consonância com as normas vigentes e se elas são pertinentes em relação ao objeto do contrato, inclusive no intuito de garantir que o produto/serviço a ser contratado tenha a qualidade desejada. Acórdão 1.225/2014 – Plenário. (Grifo nosso)

Especificamente sobre os produtos saneantes, que são substâncias ou preparações destinadas à higienização, desinfecção ou desinfestação, a Corte de Contas recomendou em acórdão publicado no Informativo de Licitações e Contratos nº 298/ 2016:

O edital de licitação para aquisição de produto sanitário deve prever a exigência de que as empresas participantes comprovem o cumprimento dos requisitos previstos na Lei 6.360/1976, no Decreto 8.077/2013 e na Resolução-Anvisa 16/2014, quando aplicável, de modo a garantir que o produto a ser licitado atenda às exigências técnicas necessárias. Acórdão 2000/2016 Plenário, Representação, Relator Ministro José Múcio Monteiro.

Lembramos que a exigência da certificação visa tão somente comprovar que o produto atende a critérios legalmente impostos e deve ser tratada como requisito de qualificação técnica, a ser fornecida junto com o protótipo do equipamento e não considerada requisito de habilitação.

Com efeito, nos casos de certificação voluntária, cumpre esclarecer que a exigência de apresentação de certificações com base na Portaria nº 170 do Inmetro e no Decreto nº 7.174/10 é permitida em licitações como requisito dos bens a serem adquiridos, e não como critério de habilitação:

[…] a Portaria nº 170, de 10 de abril de 2012, estabeleceu, sob a modalidade de certificação voluntária, os requisitos técnicos para produtos de informática, uma vez que tal avaliação de conformidade tem como única finalidade informar e atrair o consumidor. Efetivamente, não se trata de uma certificação compulsória (obrigatória), pois não é resultante do exercício do poder de polícia da autarquia. Logo, é razoável que a Administração exija dos licitantes que os produtos por eles ofertados cumpram os requisitos técnicos previstos na referida norma, mas não podem ser obrigados a apresentar a certificação correspondente, pois ela é emitida por requerimento do fabricante, que não tem nenhuma obrigação legal de fazê-lo”. Acórdão 445/2016 – Plenário

Portanto, nos casos de certificação voluntária, a Administração deve abster-se de exigir a certificação correspondente, mas pode estabelecer como critério de aceitação de propostas em que os produtos ofertados cumpram os requisitos técnicos previstos na portaria de certificação.

Não obstante, a lei de licitações prevê a possibilidade da exigência nos editais de licitação, como prova de conformidade dos produtos ofertados às normas aplicáveis e como requisito de qualificação técnica, comprovações como certificados ou laudos técnicos (relatórios de ensaios) emitidos por laboratórios acreditados pelo Inmetro, a depender do tipo de produto que se pretende adquirir.

No arremate deste item, aponta-se outros julgados, todos do TCU, que ilustram apropriadamente o assunto e se prestam a excelentes referenciais: Acórdão nº 2.392/2006-Plenário, Acórdão nº 2.378/2007-1ª Câmara, Acórdão nº 7.737/2011-2ª Câmara, Acórdão nº 3.663/2013-Plenário, Acórdão nº 545/2014-Plenário, Acórdão nº 1.594/2014-Plenário, Acórdão nº 165/2015-Plenário, Acórdão nº 539/2015-Plenário e Acórdão nº 7.499/2015-2ª Câmara.


3 Causas

As causas objetivas da constatação decorrem da insuficiência de informações constantes nos instrumentos convocatórios, em boa medida decorrente da padronização de modelos de editais pré confeccionados pela Advocacia-Geral da União, os quais induzem ao equivocado entendimento de que não devem ser ajustados de acordo com o objeto licitado.

Além disso, o fato de que o pregão é uma modalidade de licitação do tipo menor preço, também leva ao entendimento errôneo que as características técnicas das propostas podem ser relegados para segundo plano.

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Entre as causas subjetivas, podemos apontar a imperícia dos responsáveis pela elaboração de editais e pregoeiros que, em boa medida, desconhecem a importância de incluir cláusulas editalícias garantidoras da qualidade por receio de restringir a competitividade.


4 Efeitos

Omitir a exigência de certificações compulsórias e demais previsões específicas no instrumento convocatório deixa a critério do fornecedor as especificações dos artigos, condições de embalagem e rotulação do produto, a posse das licenças sanitárias, os registro da empresa ou dos produtos na ANVISA ou órgão certificador equivalente, as condições de transporte para entrega e o cumprimento dos requisitos ambientais exigidos por lei. Esta omissão no edital contraria os princípios do julgamento objetivo e da economicidade, pois não estabelece critérios relativos à comprovação da efetividade das contratações, concorrendo para ocorrência de aquisições de produtos de baixa qualidade que não atendem as necessidades da administração e causam dano ao erário, pois qualquer produto deve possuir determinadas características e atender um conjunto de normas e requisitos, de acordo com sua natureza e destinação, de modo a apresentar uma qualidade mínima, abaixo da qual o objeto é inservível.

Objetivamente, trata-se de defeito insuprível ou vício insanável e impossibilidade de aproveitamento do certame.

Impõe destacar que não se pode confundir critérios de aceitabilidade das propostas com requisitos de habilitação técnica, que possui um rol exaustivo de documentos que poderão ser exigidos das licitantes de acordo com os art. 27 a 31 da Lei Geral de licitações e contratos, embora existam pelo menos dois dos dispositivos citados ( art. 30, IV e o art. 28, V) que dão abertura para inclusão de diversos documentos e comprovações, desde que essas exigências sejam previstas em lei especial, tenham pertinência com a contratação a ser realizada e não frustrem desarrazoadamente a isonomia e o caráter competitivo do certame.

Nesse sentido, trazemos manifestação parcial de parecer da Advocacia-Geral da União2:

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS. LICITAÇÕES SUSTENTÁVEIS. EXIGÊNCIA DE CRITÉRIOS E PRÁTICAS DE SUSTENTABILlDADE SÓCIOAMBIENTAL NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS. EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO E REGULARIDADENO CADASTROTÉCNICO FEDERALDO IBAMA (CTF)

I - Os critérios e práticas de sustentabilidade serão exigidos por vezes como especificação técnica do objeto; por vezes como obrigação da contratada; e por vezes como requisitos de habilitação técnica ou jurídica, seja na execução dos serviços/obras contratados ou no fornecimento de bens, devendo ter como princípio a preservação do caráter competitivo do certame.

II - Não se pode confundir critérios de aceitabilidade da proposta (critérios e práticas de sustentabilidade exigidos como especificação técnica do objeto ou como obrigação da contratada) com requisitos de habilitação.

III - O Guia Prático de Licitações Sustentáveis da CjU/SP orienta quando se deve exigir a inscrição e regularidade no CTF do IBAMA como critério de aceitabilidade da proposta ou como requisito de habilitação.

IV - Diante de todas as normas de defesa do meio ambiente citadas neste parecer, a Administração tem a prerrogativa e o dever legal e moral de exigir nas contratações públicas

critérios de sustentabilidade socioambiental, entre eles o registro no Cadastro Técnico Federal, acompanhado do respectivo Certificado de Regularidade válido, quando a Lei no 6.938, de 1981 e a regulamentação pelo IBAMA assim o exigem (atualmente o tema é regulamentado pela Instrução Normativa no 6, de 15 de março de 2013), sob pena de não aceitação da proposta ou inabilitação da licitante, conforme o caso.

V - Portanto, a exigência é legal e não viola os artigos 27 a 31 da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos (Lei no 8.666, de 1993).

VI - A afirmação de que os artigos 27 a 31 da Lei Geral de Licitações e Contratos enumeram um rol exaustivo de documentos que poderão ser exigidos na etapa de habilitação das candidatas à contratação não é de todo correta. Pelo menos dois dos dispositivos citados dão abertura para inclusão de diversos documentos e comprovações, desde que essas exigências sejam previstas em lei especial, tenham pertinência com a contratação a ser realizada e não frustrem desarrazoada mente a isonomia e o caráter competitivo do certame. Os dispositivos são o art. 30, IV e o art. 28, V, da Lei no 8.666, de 1993.

VII - Foram rechaçados todos os argumentos conhecidos contrários à exigência, consoante fatos e fundamentos expostos neste parecer.

É claro que este último exemplo trata da questão específica de ordem ambiental. Importa ao estudo acrescentar que é desse raciocínio, em relação à exigências certificatórias, que deve o gestor partir, pois, ao contrário do que muitos defendem, é possível garantir a qualidade das contratações e o atendimento de variadas normas por meio da cuidadosa elaboração do edital e do termo de referência.

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Sobre o autor
Adriano Bochi

Pregoeiro, mestre em Ciências Militares e especialista em gestão pública e recursos e meios de impugnações em licitações e contratos administrativos. Especializando em direito da administração pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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