Fordismo e Prosperidade na Europa Pós-Guerra: A expansão do capitalismo como método de reconstrução

26/01/2017 às 05:00
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Parte-se do documentário "O século do Povo" (A Era da Prosperidade) para pensar a reconstrução da Europa pós-Segunda Guerra. Com o apoio teórico de Harvey, conclui-se que o fordismo migrado dos EUA representou, na verdade, a expansão do capitalismo.

Este artigo inspira-se no documentário "O século do Povo", episódio “A Era da Prosperidade” para pensar a reconstrução da Europa pós-Segunda Guerra. Com o apoio teórico de Harvey, conclui-se que o fordismo migrado dos EUA representou, na verdade, a expansão do capitalismo, adaptando-o a uma Europa destruída e vulnerável a uma ideologia fascinante de desenvolvimento material, ainda que com o arcabouço de um Estado de Bem Estar Social. Nesse sentido, o filme nos ajuda a entender a prosperidade econômica vivida pela Europa Ocidental especialmente nas décadas de 50 e 60, mostrando como o modelo de produção e de vida americano foi exportado por meio do Plano Marshall ao velho continente até então devastado. 

A Segunda Guerra deixou a população europeia exausta, na miséria, reduzida a mínimas condições básicas de subsistência, profundamente abalada psicologicamente e praticamente sem qualquer tipo de produção (da agricultura à indústria). Os governos não conseguiam a reconstrução prometida, e o comunismo era uma possibilidade real. O começo da Guerra Fria e a dualidade capitalismo X socialismo/comunismo atemorizava os políticos pró-Ocidente, em especial os Estados Unidos.

Foi aí que o governo norte-americano lançou um grandioso programa de ajuda aos aliados da Europa Ocidental, o Plano Marshall, oficialmente intitulado de Plano de Reconstrução Europeia. Comida, máquinas agrícolas e industriais foram enviadas dos EUA para a Europa, que logo iniciou a sua transformação. Claro que a recepção ao plano não foi unânime, tendo despertado a revolta dos simpatizantes da esquerda comunista e a desconfiança de muitos europeus quanto aos reais objetivos políticos dos americanos. De fato, podemos dizer que os objetivos tinham duas frentes: por um lado, evitar o avanço comunista e consolidar o bloco capitalista no lado ocidental; por outro fazer prosperar o sistema econômico capitalista, que beneficiaria o próprio Estados Unidos.

De início, o estímulo à produção na Europa foi uma constante, com a exportação de máquinas americanas para a reconstrução das indústrias e de tratores para serem usados na agricultura. Aos poucos, a ideologia americana também foi chegando, fosse por meio dos seus produtos (como no exemplo da Coca-Cola), fosse através da concepção ideologizada do consumo de massa como horizonte de felicidade.

Dada à destruição quase completa do continente, o primeiro setor a receber investimentos foi a indústria pesada, base para as demais. O setor automobilístico foi o que mais se beneficiou dessa base, tendo se expandido em diversos países europeus ao longo das décadas de 50 e 60, como a Fiat na Itália, a Volkswagen na Alemanha, de modo que os veículos foram se tornando o grande sonho de consumo do cidadão europeu. Como na década de 50 a compra de um carro era muito distante para o trabalhador comum, criou-se a lambreta, veículo mais acessível e que passava a sensação de prosperidade ao operariado.

Ademais, os Estados Unidos exportou para a Europa mais que a maquinaria usada no setor automobilístico e em outros ramos de produção de bens de consumo (televisão, máquinas de lavar, geladeiras, dentre outros). Exportou, sobretudo, seu modelo fordista, caracterizado pela produção em massa e voltado para o consumo em larga escala. Visto que a Europa pós-guerra encontrava-se destruída, sua reconstrução significou a redução do desemprego, chegando ao incrível índice de 1% na década de 60, representando a redução nas taxas de desigualdade.

Aos poucos o salário também foi aumentando, principalmente pelo fato de se produzir em massa apontando para um mercado em crescimento. Muita migração passou a ocorrer dentro dos países, tal como a situação mostrada pelo filme da busca por melhores empregos em diversas fábricas italianas, com pessoas saindo dos lugares de origem e direcionando-se para as cidades industriais, deixando para trás famílias e sentimentos.

O sonho americano era expresso no cinema e constatado em visitas de industriais europeus ao solo americano, de modo a levar seus métodos detalhados de produção fordista para suas fábricas na Europa. A ideia era produzir massivamente, barateando os preços e permitindo que todo operário pudesse ter casa, carro e os mais diversos eletrodomésticos. Junto, as percepções de que a máquina reduziria o esforço humano, aumentaria a produtividade e deixaria ao trabalhador o tempo pretendido para o lazer – que, na verdade, representava a possibilidade do consumismo indispensável para a reprodução do sistema. Desenvolveu-se a moda dos supermercados, capazes de concentrar tudo que o indivíduo precisava num único local, significando a otimização de algo extremamente necessário para o capitalismo: o tempo. Os supermercados foram mais um modelo de vida exportado do novo ao velho continente.

Por trás de todo o desenvolvimento europeu das décadas de 50 e 60, em que levantaram-se apartamentos, hospitais, escolas, praças públicas, esteve o Estado, que devia ser responsável por tamanha rede de crescimento, garantindo o bem estar da população, levanto a cabo o projeto do Welfare State. Nos anos 60, as nações afetadas pela guerra gozavam de quase emprego total, e os bens de consumo faziam agora parte do quotidiano. Foi certamente uma das épocas de maior prosperidade e desenvolvimento do século XX.

O modelo capitalista chegava ao seu auge, inclusive na leitura positiva que o mundo ocidental faria do seu sistema, o qual, segundo David Harvey (1992), é orientado para o crescimento. Uma taxa equilibrada de crescimento é essencial para a saúde do modelo econômico capitalista, visto que só através dele os lucros podem ser garantidos e a acumulação do capital sustentada. Na medida em que a virtude vem do crescimento, como aparece fortemente no filme, um dos pilares básicos do capitalismo é que o crescimento e o progresso são tanto inevitáveis como bom. Além disso, o capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico. Daí o longa atentar para o destaque da organização do mundo da fábrica como pilar para a estruturação produtiva.

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Como salienta Harvey, Marx previu as contradições e inconsistências do capitalismo, o que faz com que o sistema seja necessariamente propenso a crises. Desse modo, o final do filme mostra como a crise do petróleo de 1973 – quando os países árabes decidiram triplicar o preço do barril - pôs fim à era de prosperidade que marcava a Europa ocidental pós-guerra e também estava presente nos Estados Unidos, levando às políticas de orientação neoliberal.

Bibliografia:

“O SÉCULO DO POVO”, Ep. 5 - A Era da Prosperidade (Documentário). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rpj1puOB_Rs>. Acesso em: 25 jan. 2017.

HARVEY, DAVID. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

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Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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