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Omissões e incoerências na regulamentação da usucapião extrajudicial

22/02/2017 às 15:15
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Analisa o instituto da usucapião extrajudicial, as missões e incoerências na regulamentação e a proposta de minuta de provimento do CNJ.

A usucapião é uma forma de aquisição de propriedade pelo decurso do tempo, obtida mediante a posse mansa, pacífica e com animus domini, sendo que em alguns casos também será necessário justo título. Em nosso ordenamento jurídico temos as seguintes espécies:

a) na Constituição Federal de 1988: 1) usucapião constitucional habitacional pro morare ou pro misero (art. 183, da CF/88 e art. 1240, do Código Civil); 2) usucapião constitucional pro labore (art. 191, da CF/88 e art. 1239, do Código Civil);

b) no Código Civil: 1) usucapião ordinário (art. 1242); 2) usucapião ordinário habitacional (art. 1242, parágrafo único); 3) usucapião ordinário pro labore (art. 1242, parágrafo único); 4) usucapião extraordinário (art. 1260); 5) usucapião extraordinário habitacional (art. 1238, parágrafo único); 6) usucapião extraordinário pro labore (art. 1238, parágrafo único);

c) Estatuto do Índio (Lei no. 6.001/1973): usucapião indígena;

d) Lei nº 6.969/1981: usucapião por interesse social;

e) Estatuto da Cidade (Lei no. 10.257/2001).

A usucapião extrajudicial foi prevista inicialmente na Lei no. 11.977/2009, com as modificações da Lei no. 12.424/2011, sendo uma via facultativa. O atual Código de Processo Civil inseriu o art. 216-A na Lei de Registros Públicos, Lei no. 6.015/73, e introduziu a participação do Tabelião de Notas da comarca do imóvel usucapiendo, que fará a lavratura de ata notarial. Para a confeccção desse instrumento, o Tabelião irá colher as declarações do usucapiente quanto a forma de aquisição do imóvel e o tempo de sua posse, ouvirá testemunhas que possam certificar a posse mansa e pacífica, bem como transcreverá o conteúdo de documentos que lhe forem apresentados e que comprovem o vínculo. A documentação será apresentada ao cartório de Registro de Imóveis, não havendo participação do Poder Judiciário no reconhecimento da propriedade.

Vejamos o texto da lei:

Art. 216-A.  Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:

I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;

II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;

III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;

IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.

§ 1o O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido.

§ 2o Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância.

§ 3o O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido.

§ 4o O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias.

§ 5o Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis.

§ 6o  Transcorrido o prazo de que trata o § 4o deste art., sem pendência de diligências na forma do § 5o deste art. e achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o caso.

§ 7o Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei.

§ 8o Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido.

§ 9o A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião.

§ 10.  Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. (grifei)

A lei estabelece como documento obrigatório que a planta e o memorial descritivo estejam assinados pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes.

Na hipótese de não constar todas as assinaturas, o registrador deve notificá-los para manifestar seu consentimento expresso, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, e se não houver manifestação em 15 dias, o silêncio será interpretado como discordância.

Verifica-se então que é requisito para a usucapião extrajudicial a concordância expressa dos confinantes e até do antigo proprietário. E que o silêncio não significa anuência.

É louvável a intenção do legislador, que quis resguardar os interesses de eventuais proprietários e confinantes, mas terminou por criar obstáculo que inviabiliza, na maioria dos casos, a usucapião extrajudicial, inclusive em situações em que não há conflito de interesses entre as partes.

A necessidade de concordância dos titulares de direito real sobre o imóvel é incompatível com o próprio instituto da usucapião, que tem por pressuposto a aquisição da propriedade pelo possuidor ante a inércia do proprietário. Ora, se o titular do direito ficou inerte durante todo o vasto lapso temporal necessário para perder a propriedade, é incongruente exigir que, para o reconhecimento formal do direito, haja sua concordância expressa, interpretando-se seu silêncio como discordância.

Assim, na usucapião extrajudicial, o silêncio é uma consequência natural do comportamento omisso do titular do direito, que, por sua inércia, acarretou a perda da propriedade em favor do possuidor. Exigir a concordância expressa é ignorar a inércia anterior e o fato de que já houve a aquisição do direito pelo possuidor.

Note-se ainda que a interpretação do silêncio como discordância não se coaduna com a sistema adotado pela legislação civil. O art.111 do Código Civil determina que o silêncio deve ser interpretado como concordância, desde que as circunstâncias e os usos autorizem e não seja necessária declaração expressa. Nesse sentido, o art. 213 parágrafo 4º da Lei de Registros Públicos estabelece que, no processo de retificação de área de imóvel, o silêncio dos confrontantes é presunção de anuência. É fato que aceitar a alteração dos limites de um imóvel é um minus em relação a concordar com a alteração da propriedade do bem, entretanto, o pressuposto da usucapião é o lapso temporal relevante transcorrido, razão pela qual em muitos casos será difícil localizar titulares de direitos reais.

É evidente que, na hipótese de morte do titular do direito real, caberá aos herdeiros dar a anuência. Mas o fato é que, em muitos casos, simplesmente pode-se não saber quem são os titulares ou os sucessores. E, ante essa impossibilidade, eventual publicação de edital não resolverá a situação, posto que não há qualquer escusa na lei, sendo simplesmente exigida a anuência expressa.

A minuta de provimento elaborada pelo CNJ procura facilitar o cumprimento dessa exigência, ao estabelecer:

Art. 2º. II - planta e memorial descritivo assinados por profissional legalmente habilitado, com prova de Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) ou Registro de Responsabilidade Técnica (RRT) no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, desde que haja relevância no procedimento de reconhecimento da usucapião; (grifei)

A redação do CNJ cria uma brecha para que o registrador avalie, no caso concreto, se é necessária a assinatura do titular do direito.

A minuta também prevê as seguintes facilidades quanto à anuência:

Art. 5º. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 2º deste provimento (ou resolução) não contiver a assinatura de qualquer titular de direitos ali referidos, este será notificado pelo oficial de registro de imóveis pessoalmente, pelo correio com aviso de recebimento ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, para manifestar seu consentimento no prazo de 15 (quinze) dias, considerando-se sua inércia como discordância.

§ 1º. Na hipótese de notificação de titular de direito real na forma do caput deste art., será considerada a concordância quando o notificado manifestar, no ato da notificação, de modo inequívoco, que não apresenta qualquer óbice ao requerimento, desde que a circunstância conste do documento que comprova a notificação.

§ 2º. Em caso de falecimento daquele que deveria manifestar consentimento, estará legitimado a fazê-lo o inventariante ou, inexistindo inventário, a manifestação caberá aos herdeiros, com autorização dos respectivos cônjuges ou companheiros.

§ 3º. Para fins de notificação de confrontante será observado, no que couber, o disposto no § 2º do art. 213 e seguintes da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.

§ 4º. A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impede o reconhecimento extrajudicial de usucapião, hipótese em que o título de propriedade será registrado respeitando-se aqueles direitos, ressalvado o cancelamento mediante anuência expressa do respectivo titular de tais direitos.

§ 5º. O consentimento expresso pode ser manifestado pelos confrontantes e titulares de direitos reais a qualquer momento, em documento particular com firma reconhecida ou por instrumento público. (grifei)

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É fato que, ao regulamentar o instituto, a minuta acaba mitigando uma exigência que a lei traz aparentemente como absoluta. Mas não há como se duvidar de que é mais adequada à realidade brasileira e razoável do que o texto legal.

Outro ponto omisso na Lei no. 6.015/73 é a hipótese do usucapiente possuir justo título que comprove a aquisição do imóvel do proprietário. Ora, um título de transferência do imóvel assinado pelo titular do direito real evidentemente é prova cabal da concordância do proprietário e deveria suprir a necessidade de anuência expressa posterior.

Também nesse caso a minuta de provimento elaborada pelo CNJ admite outras formas de consentimento:

Art. 6º. Considera-se outorgado o consentimento, dispensando a notificação prevista no caput do art. 5º deste provimento (ou resolução), quando for apresentado pelo requerente, título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica entre o titular registral e o usucapiente, acompanhada de prova de quitação das obrigações e certidão do distribuidor cível demonstrando a inexistência de ação judicial contra o usucapiente ou seus cessionários.

§ 1º. São exemplos de títulos ou instrumentos a que se refere o caput: a) Compromisso de compra e venda, b) Cessão de direitos e promessa de cessão; c) Pré-contrato; d) Proposta de compra; e) Reserva de lote ou outro instrumento no qual conste a manifestação de vontade das partes, contendo a indicação da fração ideal, do lote ou unidade, o preço, o modo de pagamento e a promessa de contratar; f) Procuração pública com poderes de alienação para si ou para outrem, especificando o imóvel; g) Escritura de cessão de direitos hereditários especificando o imóvel; h) Documentos judiciais de partilha, arrematação ou adjudicação. (grifei)

Uma omissão relevante é a falta de menção à possibilidade de se efetivar a usucapião extrajudicial para imóveis sem matrícula. Considerando que o sistema de matrículas foi introduzido com a entrada em vigor da atual Lei dos Registros Públicos, e que, no sistema antigo de registro, regido pelo Decreto n° 4.857/39, as transmissões e aquisições eram transcritas (registradas) no Livro de “Transcrição das transmissões”, com poucas informações sobre o proprietário e confinantes, verifica-se que tal lapso é extremamente relevante. Primeiro, porque um imóvel que esteja no livro das transcrições pode não conter todas as informações acerca do proprietário e confinantes. Segundo, porque muitos imóveis não têm matrícula nem registro no cartório de imóveis.

Assim, não está claro na lei se o procedimento da usucapião extrajudicial pode ser aplicado para imóveis não matriculados ou sem registros no cartório. Acredita-se que a intenção do legislador era positiva, considerando que no interior dos estados muitos imóveis não estão regularizados e são justamente esses que mais mobilizam o Poder Judiciário. Entretanto, a falta de menção ou detalhamento em relação a essa situação específíca abre margem a questionamentos quanto a sua aplicação.

Na minuta de provimento elaborado pelo CNJ, há clara permissão nesse sentido: art. 2º.§ 6º. Admite-se o reconhecimento extrajudicial de usucapião de imóvel não matriculado, devendo, o oficial de registro de imóveis, adotar todas as cautelas necessárias para certificar-se de que não se trata de imóvel público.

Assim, sendo permitido a usucapião extrajudicial para imóveis sem matrícula, a exigência de assinatura da planta e memorial descritivo pelos confinantes seria feita pelos atuais ocupantes, que seriam devidamente identificados na ata notarial, quando o tabelião efetuasse a diligência no imóvel.

Em relação à assinatura do titular do direito real sobre o imóvel, entendemos que seria dispensada, posto que provavelmente não haveria como identificá-lo com precisão.

Enfim, muitos questionamentos devem ser sanados, na falta de uma definição legal, preferencialmente pelo CNJ, para que haja uma uniformidade em todo território nacional e que as soluções apresentadas em um futuro provimento favoreçam a desjudicialização e maior efetividade do instituto da usucapião extrajudicial.

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Sobre a autora
Fernanda Maria Alves Gomes

Mestre em Direito Pela UFPe. Pós graduada em Direito Tributário e Língua Portuguesa. Tabeliã e Registradora Civil em Fortaleza-CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Fernanda Maria Alves. Omissões e incoerências na regulamentação da usucapião extrajudicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4984, 22 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55637. Acesso em: 22 dez. 2024.

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