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Os herdeiros do holocausto, onde estão?

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15/08/2004 às 00:00
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CONCLUSÃO

Segue-se um frio e doloroso silêncio. Abraão, após lutar contra as lágrimas que teimam em brotar de seus olhos, volta-se para seu filho e lhe dirige a célebre frase: "Deus proverá, meu filho, o cordeiro para o holocausto".

O advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos marcou uma nova etapa para o Direito Internacional.

A partir dos novos conceitos de Direitos Humanos, a responsabilidade internacional do Estado passou também a ser vista sob novos prismas, como sendo algo de fundamental importância para a segurança jurídica na órbita internacional.

A antiga discussão sobre a personalidade jurídica internacional da pessoa humana ganhou novos contornos, trazendo à luz a necessidade de se reconhecer a capacidade postulatória do indivíduo também perante as cortes internacionais de justiça.

Nesse cenário de transformações, porém, ainda há muito por se fazer. O projeto da Comissão de Direito Internacional para codificação da responsabilidade internacional arrasta-se por longos anos sem a devida finalização, impedindo, assim, que o assunto seja tratado com respaldo legal. O que se vê, no julgamento das ações de responsabilidade internacional são aplicações de leis esparsas que por vezes não são consolidadas pela jurisprudência internacional.

Mister se faz que um assunto de tamanha importância seja tratado de forma unânime em toda a comunidade internacional.

Se o assunto da responsabilidade internacional é controverso e, por vezes, de difícil entendimento, fica mais complexo ainda quando está relacionado com a questão nazista.

Na presente monografia trouxemos à discussão alguns aspectos que se relacionam com o assunto.

O primeiro deles é com relação à segurança em saber-se quem de fato poderá figurar no pólo ativo das ações de responsabilidade internacional face às vítimas do Holocausto, uma vez que não são poucos aqueles que se aproveitam da situação para granjear lucros, sem que possuam legitimidade para ingressar perante as Cortes Internacionais de Justiça.

Salientamos que não se deve justificar um erro, ou melhor, uma omissão, com fundamento em outro erro. Se de fato existem aqueles que se filiaram à Indústria do Holocausto, no imoral intento de lucrarem, explorando o sofrimento dos judeus, por outro lado há pessoas inocentes que clamam por justiça, ou têm esse direito e que não podem ser colocadas à margem da justiça internacional por serem suspeitas de agirem de má-fé.

Há que se encontrar um meio para identificação dos verdadeiros sucessores das vítimas do Holocausto, para que a justiça possa raiar para os tais.

Com a alta tecnologia dos dias atuais, há possibilidades mil para a identificação dos herdeiros deste triste capítulo da história, que é o Holocausto nazista. Não é possível que cruzemos os braços para aqueles que de fato podem ter seu sofrimento minorado com a devolução de bens confiscados por Hitler e seus seguidores e ao mesmo tempo deixarmos que inescrupulosos exploradores ajam de forma imoral em benefício próprio.

Faz-se mister que a comunidade internacional, que grande interesse deve possuir na tutela da vida, traga à responsabilidade aqueles que de forma direta ou indireta tenham colaborado com o morticínio em massa do povo judeu. Se por questões legais alguns responsáveis não puderem hoje, consertar o erro do passado, no sentido material, deve-se, então ser buscado alternativas para uma outra espécie de responsabilização, tal como a que se afigura para a grandiosa e respeitável empresa de computadores IBM. Esta possui meios tecnológicos para rastrear os descendentes de todos aqueles que tiveram suas vidas ceifadas nos campos de concentração, durante a ditadura hitleriana. Parece-nos que aí se afigura uma excelente alternativa de responsabilização que com certeza trará grandes benefícios ao sofrido povo judeu na sua luta por justiça.

Se assim não o fizermos, estaremos fadando ao desprezo, os indispensáveis Direitos Humanos, dentre os quais a vida do indivíduo é o maior deles.

Claro é que uma simples indenização não irá cicatrizar as feridas causadas pela dor da perda de entes queridos. Mas por outro lado, uma certeira reparação, no sentido de ser devolvido os bens apropriados indevida e violentamente aos seus legítimos herdeiros, é uma forma bastante correta de se mostrar coerente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que possui como norma também, a proteção à propriedade material.

Há que se dizer mais uma vez, embora não tenha sido o tema deste trabalho monográfico, que soa desagradável o uso do termo "confisco" para aquilo que se constituiu, ao meu ver, uma verdadeira aberração estatal.

Confisco, como referido na introdução, é um instituto assentado na legalidade e moralidade, fato que não poderia ser diferente.

Entretanto, o que a Humanidade assistiu na era nazista foi uma indiscriminada e violenta retirada dos bens materiais das famílias judias, por razões arbitrárias e espúrias.

Como se não bastasse o ataque maciço ao bem maior, que é a vida, o povo judeu também for vitimado em sua honra, em sua moral. E para completar aquilo que chamamos de aberração, fora também atacado em sua propriedade material.

Há algumas perguntas que insistem em pairar: estaria o estado autorizado a praticar atos dessa natureza? Para essa pergunta, a resposta parece-me bem singela. A resposta é "não". O estado não pode arbitrária e espuriamente e sem que haja relevante motivo social, tomar para si, bens particulares.

Inquietam-me também outras questões: qual a definição jurídica desse delito? Se tal ilícito é praticado por pessoa física ou jurídica, denomina-se roubo e para o ente estatal, qual o nome do ilícito? O Estado pode praticar furto ou roubo?

São questões que não me detive a analisar no presente trabalho, mesmo porque tornar-se-iam assuntos próprios para uma completa pesquisa monográfica.

Porém, as trago a uma breve reflexão apenas a título ilustrativo e para concluir que embora não tenhamos discutido esse aspecto, podemos afirmar que crimes bárbaros contra a vida, a moral e a propriedade material foram praticados em nome de razões desprovidas de valor e em nome da ganância, e por tal razão afigura-se clara como cristal a necessidade de uma reparação, amparado no relevante instituto da responsabilidade internacional do Estado.

Se a dificuldade em identificar os sucessores das vítimas é visível, por outro lado uma outra discussão se afigura proeminente no meio internacional. Diz respeito a saber se a pessoa pode se aventurar na esfera internacional na condição de herdeiro.

Os pontos de vista a esse respeito são vastos, que levam a discussões acaloradas dentro do meio acadêmico internacional.

Não apresentaremos aqui mais uma vez, esses pontos doutrinários divergentes; salientamos apenas que, se essa questão for colocada frente à responsabilidade internacional pelo genocídio nazista, há de se chegar a uma única e suficiente resposta. Para que reverbere a cristalina justiça, indispensável é que os herdeiros possam agir perante as cortes internacionais, pois seus ancestrais foram mortos na época do regime nazista e não poderão voltar para clamarem por justiça. Se tirarmos dos herdeiros judeus a condição de agirem perante a jurisdição internacional, estaremos mais uma vez fadando os Direitos Humanos ao flagrante descaso.

O certo é que esses herdeiros deveriam ser representados por seus Estados nacionais, embora não seja de tão grande importância essa representação, uma vez que o indivíduo é sujeito de Direito Internacional e, por conseqüência, pode socorrer-se, por si só, para tutela de seus direitos. Porém, seria interessante que o Estado se colocasse ao lado de seu nacional, fazendo com que houvesse maior celeridade na instrução processual e na final solução.

Porém, há que se levantar uma questão quanto à nacionalidade: se o herdeiro possuir nacionalidade diversa da nacionalidade da vítima real, pode o Estado nacional do herdeiro, representá-lo? Respondemos a essa indagação com uma outra? Há dentro das normas de Direito Internacional algum dispositivo com a proibição de que o herdeiro seja representando por um Estado que não aquele do qual a vítima tenha sido nacional?

Se não há esse dispositivo legal a proibir tal situação, creio não haver razão para um possível questionamento a esse respeito.

Por outro lado, se a questão da nacionalidade criar um entrave para as ações de responsabilidade internacional do povo judeu, há que se buscar com urgência uma ponderada solução, pois é sabido que as vítimas do nazismo possuem atualmente herdeiros que não detêm a mesma nacionalidade.

A mais ponderada solução para tal caso, vislumbra-se mais uma vez no direito de o indivíduo comparecer pessoalmente aos tribunais internacionais, exercendo assim sua condição nata de sujeito de Direito Internacional e não objeto.

Depreende-se aí, mais uma vez, a importância de ser reconhecida a personalidade jurídica internacional da pessoa humana.

De todas as questões que se relacionam com a responsabilidade internacional frente às vítima do holocausto, a que mais se projeta é a questão da sucessão internacional. Qual Direito aplicar quando uma questão sucessória envolve dois Estados que possuem distintas normas jurídicas de natureza sucessória?

Salientamos durante este trabalho monográfico que para os herdeiros do Holocausto há que se falar em duas espécies de responsabilidade internacional: indenização e reparação.

Quando se trata de reparar as mazelas nazistas devolvendo os bens apropriados indevida e violentamente estamos adentrado ao terreno do direito das sucessões, haja vista que tais bens só serão devolvidos aos herdeiros das vítimas.

Assim, a sucessão internacional, que ao nosso ver deve ser regida por um só Direito, evitando conflitos de normas, é de interesse também dos herdeiros do Holocausto.

Há uma sensível predominância na comunidade internacional de uma corrente de pensamento, segundo a qual o Direito do último domicílio do falecido deve reger a maior parte das questões sucessórias, enquanto o domicílio do herdeiro é quem deve determinar se este tem qualidade de sucessor ou não. Bem acertado este pensamento, pois o Direito do local de domicílio do indivíduo deve, em tese, ser a demonstração de sua vontade.

É pacífico também o pensamento de que a sucessão deve ser regida por um só Direito. Assim sendo, há que se dar guarida à teoria dualista, ou seja, os Estados devem "adaptar" suas normas de Direito Interno, recepcionando assim, a norma do Direito Internacional.

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Cremos não ser necessário perdurar o rançoso conflito entre o Direito Interno e o Direito Internacional. O Estado deve, então, criar normas que "facilitem" a aplicação da norma internacional. O mesmo há que se dizer a respeito das normas de Direito Internacional privado pertinentes a sucessão.

Dessa forma não haverá entraves para que os herdeiros do Holocausto pleiteiem a devolução dos bens de seus ancestrais, como forma de reparação.

Mesmo depois de tanto tempo transcorrido do término do Holocausto, e após algumas gerações, há que se dar respaldo legal aos herdeiros da atual geração, para lutarem por seus direitos sucessórios.

Que se pronunciem os estudiosos a esse respeito. Enquanto há silêncio sobre o assunto, julgo ser o melhor entendimento, aquele que, respaldado pelo senso de justiça internacional, dá à atual geração, as condições para reaverem os bens de seus ancestrais, na qualidade de sucessores.

Um dos pioneiros na defesa da concepção do direito como produto social foi o jurista Rudolf Von Ihering. Comungo com sua idéia! Sim, o direito deve caminhar de acordo com o estágio em que se encontre a sociedade, o mesmo podendo se dizer da sociedade internacional.

Vemos que o contexto histórico do Holocausto na atualidade requer um posicionamento de forma a não violar um direito de milhares de seres humanos. Cumpre ao Direito Internacional a tarefa de se posicionar de acordo com esse contexto histórico-social de forma a impedir a violação do direito subjetivo da pessoa humana, uma vez que não mais resta dúvidas que ela é sujeito do direito internacional.

Já dizia IHERING (2002, p. 35):

... o interesse de um na defesa do direito sempre se contrapõe ao interesse de outrem no seu desrespeito. Dessa maneira, resulta que a luta se repete em todas as áreas do direito, tanto nas planícies do direito privado como nas alturas do direito público e do direito internacional.

Essa luta há de ser árdua para o povo judeu, mas há que se lutar. Por ser o direito um produto do meio social, só é conseguido com a luta desse meio social na busca incessante de maiores e melhores mecanismos para a defesa do direito dos povos.

Como salientamos na introdução deste trabalho, o presente não teria por finalidade buscar o estudo dos problemas inerentes à responsabilidade internacional, mas sim, o estudo de questões que direta ou indiretamente possuem pertinência ao instituto.

Cremos que tais questionamentos aqui levantados podem não figurar em todas as ações dessa natureza, mas quando a responsabilidade internacional do Estado diz respeito às mazelas nazistas, tais questionamentos ficam patentes.

Colocando os Direitos Humanos como pano de fundo de nossa pesquisa, verificamos que muito há que se pensar sobre a tão discutida responsabilidade internacional. Se quisermos que a irresponsabilidade estatal que permeou até meados da Idade Média seja banida, muito há que se fazer concretamente, em especial, no tocante a ser dado definitivamente ao Homem a qualidade de sujeito de Direito Internacional.

Não podemos admitir que em pleno transcorrer do século XXI ainda não haja um total respeito aos Direitos Humanos desde a sua concepção mais singela.

Voltando mais uma vez a atenção aos herdeiros do Holocausto digo que a questão se afigura um pouco mais complexa, até mesmo pela natureza histórica do acontecimento. Porém, não posso admitir que seres humanos deixem de ser contemplados pela justiça, por não haver um posicionamento legal que os atinja. Ou, o que é pior, por haver entendimentos que ferem frontalmente a dignidade do ser humano. Há que se buscar um posicionamento pacífico para essas questões aqui levantadas que, embora não sejam da natureza íntima da responsabilidade internacional, nela influenciam, quando o assunto é o Holocausto.

O Direito é para todos. Assim também o é o Direito Internacional. Urge então que se pense mais firmemente nas questões relacionadas com o instituto da responsabilidade internacional, para que os seres humanos, enquanto seres dotados de dignidade ínsita, não sejam feridos em seus mais importantes direitos, tais como a vida e o direito à propriedade.

Urge que a responsabilidade internacional do Estado possa abarcar o povo judeu, vítima dos horrores nazistas, para que eternamente não seja vitimado também na memória do seu passado.Urge que saibamos quem são os herdeiros das vítimas e onde estão eles.

Não podemos eternamente nos perguntar onde estão os herdeiros do Holocausto. À pergunta semelhante a do jovem Isaac também não pode ser dada uma resposta inusitada, como "Deus proverá".

O Direito é quem deve prover ao Homem a justiça, ideal maior dos povos. O Direito é quem deve dar ao Homem a condição de sujeito e não mero objeto. O Direito é quem deve dar ao Homem as condições para que ele faça valer seus direitos mais singulares.

Procuremos dar aos judeus, que também fazem parte da grande massa humana, esse mesmo direito e essa mesma condição, sem se importar se apresentam-se na posição de vitima reais ou não. Só assim estaremos adentrando a um caminho que nos guiará à resposta da pergunta "os herdeiros do Holocausto, onde estão?" O bom Direito é quem proverá a resposta!

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Sobre o autor
Jairo Francisco do Carmo

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Jairo Francisco. Os herdeiros do holocausto, onde estão?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 410, 15 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5566. Acesso em: 26 abr. 2024.

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