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Os herdeiros do holocausto, onde estão?

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15/08/2004 às 00:00
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III. ASPECTOS TÉCNICOS PRELIMINARES

É possível determinar quem são os sucessores das vítimas do Holocausto, como visto no capítulo anterior. Assim, resta ser analisado os detalhes técnicos do Direito Internacional e da própria Responsabilidade Internacional do Estado, que guardam relação direta com a questão do Holocausto nazista. Iniciaremos essa análise por questões preliminares para então chegarmos à questão maior, que são os aspectos do direito das sucessões dentro do Direito Internacional.

Em verdade, a grande barreira ou mesmo, o grande pretexto quando se trata de Responsabilidade Internacional face ao Nazismo é a tão temida Indústria do Holocausto.

Há sempre um longo e árduo caminho a ser palmilhado por aqueles que impetram ações dessa natureza, em decorrência da alegação de que a farsa movida por inescrupulosos exploradores impede que se a justiça caminhe a passos largos, pelo risco de se estar "jogando as pérolas aos porcos".

As demais questões que tratarei neste breve capítulo, não são suscitadas dentro da comunidade internacional; pelo menos até onde pude avançar em minha pesquisa não verifiquei que os Estados se valham de assuntos não pacificados pela jurisprudência internacional para se esquivarem da Responsabilidade Internacional perante as vítimas do Holocausto nazista e seus herdeiros.

Porém, como retratei na introdução deste ensaio monográfico, alguns aspectos técnicos causam-me indagações pessoais. Vejo que até mesmo alguns assuntos não ligados diretamente ao instituto da responsabilidade internacional, mas que guardam sensível liame com ele, devem ser estudados mais atentamente para que não haja sobejos de dúvidas quanto ao dever de reparação ou indenização por parte dos Estados ao povo judeu.

Adianto-me em buscar explicações para aspectos técnicos da responsabilidade internacional que possivelmente podem gerar algum entrave, quando o assunto referir-se ao Holocausto.

Para a solução desses pequenos entraves passo a apresentar breves considerações que julgo serem capazes de conduzir o assunto a uma razoável ponderação.

1. A nacionalidade do herdeiro

A primeira questão que a mim parece ser capaz de produzir entrave técnico ao instituto da responsabilidade internacional é a que diz respeito a nacionalidade.

Embora não seja o objetivo deste tópico apresentar a discussão doutrinária sobre o tema nacionalidade, traçaremos alguns breves apontamentos sobre o assunto antes de adentrarmos ao aspecto que interessa ao presente trabalho.

Nacionalidade no sentido sociológico vem a ser a comunhão lingüística, racial e religiosa de um grupo de indivíduos e o desejo destes de viverem em comum.

No sentido jurídico, o aspecto que predomina não é a nação, mas sim o Estado. Como salientado por ALBUQUERQUE MELLO (2001, p. 930) "é o vínculo jurídico político que une o indivíduo ao Estado (6)".

A nacionalidade é regulada pelo Estado através de suas próprias leis internas. O ordenamento jurídico internacional apenas intervém quando surge algum litígio internacional, como por exemplo, quando há suspeitas de que a outorga de uma nacionalidade a um indivíduo não foi feita de acordo com os princípios e normas internacionais

A nacionalidade é que determina a qual Estado cabe a proteção diplomática do indivíduo.

Neste ponto começa meu questionamento. Os herdeiros judeus possuem determinada nacionalidade, ao passo que as reais vítimas possuíram outra. Assim, poder-se-ia imaginar que o Estado demandante não é parte legítima para representar os herdeiros judeus.

Não há dentro do conceito da responsabilidade internacional do Estado, referência a algum princípio de que o Estado representante deve ser sempre aquele no qual a vítima primeira tenha repousado sua nacionalidade. O Projeto da CDI não contém nenhum dispositivo que trate desse assunto.

Mais uma vez coloco-me na defesa do povo judeu. Mesmo sem o respaldo de normas ou mesmo jurisprudências internacionais pacíficas, ouso dizer que a representação de uma vítima ou seu herdeiro frente à jurisdição internacional compete tanto ao Estado nacional da vítima quanto ao Estado nacional do herdeiro.

Fundamento meu singelo parecer no princípio da proteção da pessoa humana, que no dizer de ALBUQUERQUE MELLO (2001, p. 885) demonstra exatamente a subjetividade internacional do indivíduo, ou seja, este tem deveres e ao mesmo tempo, direitos perante a comunidade internacional.

Sou levado mais uma vez a defender ardorosamente, a importância de se reconhecer a personalidade jurídica internacional da pessoa humana, com a conseqüente capacitação para se auto-representar perante a Corte Internacional de Justiça.

Há também um questionamento por parte de alguns Estados, no momento de representarem seus nacionais, e mesmo pelos Estados demandados e os órgãos jurisdicionantes, referente a aplicação da regra a claim must be national in origin, ou seja, a reclamação deve ser nacional desde a sua origem.

Com relação a esta regra, a jurisprudência internacional não é uniforme. Para muitos internacionalistas, o indivíduo precisa ter a nacionalidade do Estado que o protege no momento em que ocorreu o ilícito. Outros consideram que não há necessidade de o indivíduo possuir a nacionalidade no momento do ilícito, mas apenas quando foi constituído a Corte Internacional de Justiça. Uma terceira corrente pondera que o indivíduo deve possuir a nacionalidade apenas no momento em que impetrar a demanda.

Mais uma vez partindo do princípio da dignidade humana, sou levado a filiar-me à terceira corrente de pensamento. Quem pode impetrar ações de Responsabilidade Internacional são na maior parte dos casos, os herdeiros dos mortos no genocídio nazista. Muitos não eram nascidos à época e não sofreram nenhuma espécie de dano direto. Portanto não há que se falar na nacionalidade do momento em que se consumou o crime internacional.

Se abraçarmos a teoria de que a nacionalidade deve ser aquela do momento da prática do ilícito, fadaremos muitos herdeiros a não poderem comparecer perante a Corte para reivindicarem seus direitos.

O mesmo ocorrerá se for colocada em prática a segunda teoria, segundo a qual a nacionalidade do reclamante deve ser aquela do momento em que fora criado o órgão da justiça internacional competente para o julgamento da ação.

Preocupa-me observar que, mesmo se tais entendimentos não forem pacificados dentro da doutrina e jurisprudência internacionais, o sofrido povo judeu, poderá viver em uma "gangorra", de tal forma que para onde quer que corram em busca de representação, não encontrem guarida.

Se os Estados não trouxerem pra si a responsabilidade em representar os herdeiros do Holocausto, devem propiciar a estes a oportunidade de se representarem diretamente perante os órgãos de proteção internacional. O que não pode ser permitido é que estes herdeiros sejam privados em todos os aspectos jurídicos de fazerem valer seus direitos a uma indenização pelas vidas perdidas de seus entes queridos ou uma reparação pelos bens que foram deles retirados por meios violentos e fraudulentos.

2. Vítima ou sucessor?

Afirmamos ainda no primeiro capítulo que todo aquele que possuir direitos na esfera internacional, conseqüentemente possui capacidade processual para gozar desses direitos, inclusive na condição de herdeiro.

Voltamos agora a tratar mais detalhadamente desse assunto, uma vez que o mesmo também não é pacífico dentro o Direito Internacional e principalmente no tocante ao Holocausto pode suscitar entendimentos que geram dificuldades para se efetivar a Responsabilidade Internacional do Estado.

O Direito Internacional, como sabemos, é composto de regras esparsas, não havendo uma codificação única. Assim, ao se invocar respaldo jurídico para análise de um caso em particular, é mister que seja buscado dentro de todo o universo internacional, uma norma que possa ser aplicada a outras questões de caráter semelhante.

O conceito de vítima, por exemplo, analisaremos à luz do artigo 25, da Convenção Européia de Direitos Humanos. Preceitua o referido artigo:

A Comissão pode receber petições dirigidas ao Secretário Geral do Conselho da Europa, de qualquer pessoa, organização não-governamental ou grupo de pessoas que aleguem ser vítimas de violação, por parte de algum dos Estados signatários, de direitos enunciados nesta convenção, desde que o Estado signatário contra o qual a petição é aforada tenha declarado que reconhece a competência da Comissão para receber tais petições. Aqueles Estados que tenham feito tal declaração se obrigam a não obstruir, de qualquer forma, o efetivo exercício desse direito.

Quando um indivíduo leva uma reclamação ao conhecimento do Sistema Europeu de Implementação dos Direitos Humanos, regulado pela Convenção supracitada, primeiramente procura-se saber se e vítima foi a pessoa que traz a informação ou se foi outra. Essa indagação da dimensão subjetiva diz respeito a saber se foi a vítima a própria autora da queixa, ou alguém que tenha algum vínculo ou interesse no caso a ser analisado.

Faz-se necessário, então, que o indivíduo demonstre interesse legítimo para agir, seja na condição de vítima direta ou vítima indireta.

A palavra vítima pressupõe a presença de algum nexo entre a violação alegada e o reclamante. Isto quer dizer que perante o Sistema Europeu de Implementação dos Direitos Humanos o peticionário não terá sua queixa provida se ela se referir a algum ilícito em face do qual ele é estranho.

Por outro lado, a Comissão admitiu a possibilidade de petições impetradas por vítimas indiretas, no caso Koolen versus Bélgica. Neste caso, a Comissão consolidou o entendimento de que o artigo 25 se refere também às pessoas que venham a sofrer danos indiretos como resultado da violação do direito de outrem, ou seja, a vítima será qualquer pessoa ou grupo de pessoas que sofra direta ou indiretamente violação de direito reconhecido na Convenção.

Alguns internacionalistas apontam para um futuro em que a interpretação do artigo 25 será menos restritiva, admitindo-se petições se o reclamante demonstrar envolvimento de alguma forma com a violação que denuncia.

Não poderá ser diferente, haja vista que, adotando as cortes internacionais uma interpretação muito restritiva, provocará dificuldades no recebimento das reclamações e conseqüentemente a proteção dos direitos humanos será denegada.

Essa situação ficará bastante patente com relação aos herdeiros do Holocausto. Voltemo-nos agora a analisar este caso: o genocídio nazista.

Os sucessores das vítimas do Holocausto possuem interesse legítimo para agir, uma vez que tiveram seus entes queridos sacrificados. Por outro lado, a apropriação indevida e violenta dos bens de famílias judias mantém nexo com os sucessores, uma vez que estes possuem direitos sucessórios. Não se pode alegar que um herdeiro é estranho ao seu ancestral.

Será bastante visível a denegação dos direitos humanos ao povo judeu se for considerado como vítima apenas aquele que sofra um dano de forma direta.

Como fazer justiça àqueles que já faleceram? Isto só é possível através de seus sucessores. Se para os judeus mortos pelo regime nazista, a concretização da justiça se dará apenas por intermédio de seus sucessores, o conceito de vítima dentro do Direito Internacional precisa ser então, interpretado de forma mais abrangente, para que possa emergir a razão maior da responsabilidade internacional do Estado, que é a tão necessária proteção dos direitos humanos.

Essa expressão da razão maior da responsabilidade internacional se concretizará através da concessão aos herdeiros das vítimas do Holocausto, da possibilidade de ingressarem perante as cortes internacionais, na condição de vítimas indiretas, ou seja, na condição de pessoas que, embora não tenham sofrido diretamente os horrores nazistas, possuem interesse legítimo para agir, não sendo estranhas ao crime internacional do genocídio, uma vez que foram seus entes queridos quem perderam o maior de todos os bens jurídicos: a vida.

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Se foram seus entes queridos as reais vítimas, a condição de herdeiros ou sucessores é o nexo entre o ilícito internacional e os reclamantes, que os legitima a agirem.


IV. SUCESSÃO NO DIREITO INTERNACIONAL

Reservamos esta última parte para o estudo do ponto de maior interesse: a questão sucessória no Direito Internacional com relação a responsabilidade internacional do Estado frente às vítimas do Holocausto.

Em verdade, quaisquer que sejam as normas de Direito Internacional Privado que possam reger a sucessão internacional, não terão conseqüências prejudiciais aos herdeiros do Holocausto, mas há interesse para os tais que esse assunto seja pacificado, uma vez que diz respeito diretamente a eles no momento da devolução de bens apropriados indevida e violentamente pelo regime nazista.

Antes de adentrarmos a esse assunto, faremos algumas considerações sobre os modernos entendimentos sobre sucessão no campo do Direito Internacional Privado, passando ligeiramente pelo conceito de sucessão.

1. Conceito

Juridicamente o termo sucessão, no entendimento de PEREIRA (1976, v. 6, p. 7), indica o fato de uma pessoa inserir-se na titularidade de uma relação jurídica que lhe advém de uma outra pessoa

Em sentido amplo, sucessão é todo o modo derivado da aquisição de domínio, indicado assim o ato pelo qual alguém sucede a outrem, investindo-se no todo ou em parte, nos direitos que lhe pertenciam. É a sucessão inter vivos, na qual o comprador sucede ao vendedor, o donatário ao doador, um tomando o lugar do outro em relação ao bem vendido ou doado.

O direito sucessório assenta na idéia de harmonia entre o interesse individual e o interesse coletivo (cf. RADHRUCH, l961, p. 74).

O interesse pessoal visa o progresso, pelo fato de o indivíduo buscar a aquisição de bens para seu progresso individual, o que leva indiretamente ao progresso coletivo, pois aumenta o patrimônio da sociedade.

Suceder é substituir, tomando o lugar de outra pessoa no campo jurídico, ou seja, detendo a posse de direitos e obrigações. Tem sua etimologia no latim sub cedere, que significa exatamente tomar o lugar de outrem.

2. Questões sucessórias no Direito Internacional

A questão sucessória no Direito Internacional é bastante complexa. São variadas as situações que se afiguram.

Para maior clareza, citarei alguns exemplos:

  • a) um indivíduo de nacionalidade alemã, possui bens na Alemanha. Alguns de seus filhos são de nacionalidade alemã e outros, de nacionalidade brasileira. Na partilha de bens, deverá ser aplicado o direito alemão ou o direito brasileiro? Pode ocorrer que a lei brasileira seja mais benéfica aos herdeiros brasileiros, em detrimento dos herdeiros alemães, ou vice-versa.
  • b) um indivíduo de nacionalidade espanhola possui bens no Brasil e na Espanha, bem como herdeiros de nacionalidade brasileira e nacionalidade espanhola. Vindo a falecer, encontrava-se residindo na Argentina. A lei de qual Estado terá prevalência na questão sucessória?

Questões dessa natureza se afiguram claramente com relação aos sucessores das vítimas do Nazismo.

O Nazismo, originário da Alemanha, esparramou-se por todo o mundo. Em decorrência desse fato, vários judeus de nacionalidade alemã que fugiram para outros Estados e foram mortos, possuem hoje herdeiros de outras nacionalidades. Muitos judeus também possuíram bens em mais de um Estado.

Quando a responsabilidade internacional é pertinente à indenização, não há nenhum grande problema. Para indenizar, basta que a corte internacional que julga a demanda, dê provimento à reclamação e fixe o quantum indenizatório, repartindo em partes iguais aos sucessores que ingressaram legitimamente na esfera internacional.

O grande problema afigura-se quando a responsabilidade internacional recai em reparação, ou seja, em devolução dos bens apropriados indevida e violentamente na época do regime nazista, pois aí estará envolvida matéria de caráter sucessório.

Para tratarmos dessa matéria, preliminarmente temos que perfilar sobre a velha discussão do conflito entre o Direito Interno e o Direito Internacional.

A seguir passarei a discorrer brevemente sobre este assunto.

3. Conflito entre o Direito Interno e o Direito Internacional

Este é um tema amplamente debatido por praticamente todos os estudiosos do direito internacional.

Além do choque entre uma norma de direito interno de um Estado e uma norma de Direito Internacional, pode existir também choque de duas normas de direito interno, de dois Estados, que é resolvido pela aplicação das normas do Direito Internacional Privado.

Nesse contexto, são bastante conhecidas três teorias a respeito da relação entre direito internacional e direito interno: a teoria dualista e duas teorias monistas.

Pela teoria dualista, o direito internacional e o direito interno são ordenamentos jurídicos distintos, com fontes distintas e com destinatários também distintos. Não há, portanto, qualquer possibilidade de conflito entre eles.

Para muitos autores adeptos dessa teoria a validade de uma norma interna não está, necessariamente, sintonizada com a ordem internacional.

Outros autores mencionam que a tese dualista proclama a necessidade de "transformação" do direito internacional em direito interno. Para a tese dualista, a diversidade absoluta quanto às fontes, entre direito internacional e direito interno, impedia que a norma internacional vigorasse na ordem interna, antes de ser transformada em lei interna, ou seja, deve o direito internacional ser "recepcionado" como direito interno, por meio de sua "transformação".

Para alguns autores, como, Triepel, não há que se falar em "recepção" ou uma "transformação" de direito internacional em direito interno, o conteúdo das normas de direito internacional e de direito interno são distintos, inclusive em razão de terem destinatários distintos. Portanto, seria impossível uma recepção, incorporação, transformação etc do direito internacional em direito interno. O que poderá ocorrer é a criação de uma norma interna em obediência a uma obrigação contraída pelo Estado no âmbito internacional, pois um tratado de direito internacional não é um meio de criação do direito interno, mas pode consistir em uma solicitação para se criar esse direito.

Deve-se entender que transformação da norma internacional em norma interna tem como significado tão-somente a criação de uma norma interna, dirigida às pessoas sujeitas ao poder estatal, estabelecendo regras que no tratado internacional foram acordadas entre os Estados contratantes.

Comungo com esse pensamento de que é mais adequado falar em criação de norma interna, pois transformação poderia dar a entender que há alteração da substância da norma internacional, que deixaria de ser internacional e passaria a ser interna. Como isso não ocorre, mas sim criação de uma outra norma, o correto é dizer que a norma internacional gerou uma obrigação, perante o direito internacional, de o Estado criar uma norma interna.

Já as teorias monistas aceitam o entendimento de que o direito internacional é apenas a versão do direito interno que o Estado aplica em âmbito internacional ou vice-versa. Assim, as normas de Direito Internacional repercutem no Direito Interno a título de vigência plena e não a título de transformação material em direito interno.

Para as teorias monistas, o conflito entre normas de direito internacional e de direito interno não quebra o sistema jurídico, que estabelece prevalência de uma ou de outra. Há, dentro das teorias monistas, os que consideram devem as normas de direito internacional prevalecer em face das normas de direito interno; outros, contudo, sustentam o contrário.

Assim, existem duas teorias monistas ou duas correntes dentro da teoria monista: uma, chamada de monismo nacionalista, sustenta o primado do Direito nacional de cada Estado soberano em face do Direito Internacional, dando ênfase à soberania de cada Estado e à descentralização da sociedade internacional; outra, chamada de monismo internacionalista, defende o primado da ordem internacional, sob a qual todas as ordens internas estariam ajustadas.

A principal diferença entre a teoria monista e a teoria dualista reside na necessidade ou não de transformação da norma internacional por meio de um ato interno ou de criação de norma interna, na pureza da tese dualista, para que a norma internacional passe a ter validade no âmbito interno de cada Estado.

De acordo com a teoria monista, a norma internacional vale por si mesma no ordenamento jurídico interno, ocorrendo uma recepção automática. O que pode ocorrer é um choque entre as normas internacionais e as normas internas, hipótese em que será dada prevalência a uma ou outra. De acordo com os adeptos da teoria monista nacionalista, há prevalência da norma interna; já os adeptos da teoria monista internacionalista sustentam que a prevalência é da norma internacional.

Ao contrário, a teoria dualista, apregoa que existe a necessidade de incorporação da norma internacional em direito interno. A recepção da norma internacional em direito interno não é automática, é preciso que exista um ato de incorporação. A norma internacional deve ser transformada em direito interno, pois o que vale no direito interno é o ato interno e não o tratado internacional. Dessa forma pode-se dizer que não há conflito entre lei e tratado; o que existe é conflito entre a lei interna e a norma interna que incorporou no Direito interno o tratado internacional. A Constituição do país deverá dizer se a norma internacional, que foi incorporada ao direito interno, tem hierarquia maior, menor ou idêntica à leis internas.

Ambas teorias monistas e teoria dualista têm pontos fracos.

A teoria monista com primado do direito internacional é atacável quando se tem em mente a existência de soberania por parte dos Estados, de modo que existirá primazia da norma internacional apenas se o ordenamento jurídico interno do Estado assim o consentir. Desse modo, não se pode dizer que o direito internacional é hierarquicamente superior ao direito interno, mas sim que o direito interno pode estabelecer, dentro de seu exclusivo critério, a prevalência da norma internacional sobre a norma interna. Portanto, preponderante é o direito interno, ao menos no atual momento histórico.

Por outro lado, a adoção da teoria monista com primado do direito interno pode levar, à negação da força jurídica do direito internacional. Com efeito, o Estado que viola o direito internacional por meio de um ato interno comete um ilícito internacional, podendo sofrer as conseqüências jurídicas (sanção) decorrentes da prática desse ato ilícito.

Já a teoria dualista tem como ponto fraco a sustentação da independência das ordens jurídicas interna e internacional. Se o direito internacional apenas vale como parte integrante de uma ordem jurídica estatal, ele não pode ser uma ordem jurídica distinta e independente dela, sendo que ambas se apóiam sobre a mesma vontade do Estado. Desse modo, o direito internacional nada mais é do que um meio de realização, na esfera internacional, de objetivos e princípios da política do Estado, estabelecido no direito interno.

Em relação ao Brasil, alguns estudiosos afirmam que a Constituição Federal consagrou o sistema monista com cláusula geral de recepção plena (art. 5º, § 2º), o que significa dizer que o tratado internacional não precisa ser incorporado no direito interno, mas vale internamente por si só.

Essa afirmação não tem sustentação, uma vez que não basta a simples ratificação do tratado para que ele seja válido como direito interno no Brasil. É preciso um ato formal do Presidente da República para que o tratado internacional possa ser aplicado no Brasil. Além disso, a norma só adquire validade com a publicação no Diário Oficial.

O correto é dizer que existem tratados internacionais que precisam ser incorporados no direito interno brasileiro e tratados que não precisam, em razão do seu objeto. Os tratados-leis deverão ser convertidos em direito interno brasileiro para que possam aqui surtir efeito, regulando abstratamente negócios jurídicos; já os tratados-contratos criam por si só obrigações concretas para as partes contratantes, não havendo de se falar em incorporação no direito interno, posto que seus destinatários são as partes contratantes (ou seja, o próprio Estado) e não as pessoas sujeitas ao poder de império do Estado contratante.

Pode-se dizer que o direito constitucional brasileiro adota a teoria dualista, no sentido de que não há recepção automática das normas de direito internacional, sendo necessária a criação de norma interna para dar eficácia ao tratado.

Contudo, caso se conclua que o tratado é válido no âmbito do direito interno do Brasil ainda que não tenha existido decreto do Presidente da República a incorporá-lo como norma interna, a conclusão deve ser no sentido de que o Brasil é monista em matéria de direito internacional.

4. A sucessão no Direito Internacional Privado

Determinar se a sucessão é matéria que deve ser regulada por um só direito, ou não, é uma das questões mais antigas do Direito Internacional.

A razão de todo questionamento reside na variedade de interesses em confronto. A legislação sucessória de um país está intimamente ligada ao temperamento do povo, às suas tradições e aos conceitos políticos, sociais, religiosos e morais. Politicamente reflete a preocupação econômica do Estado ao exercer o controle sobre a transmissão de bens particulares.

A questão gira em torno de se saber qual circunstância de conexão deve ser adotada em face de matéria sucessória na órbita internacional.

Alguns estudiosos afirmam ser a localização das coisas que acompanham o espólio, essa circunstância de conexão. Outros entendem ser a nacionalidade do de cujus. Outros estudiosos, por sua vez, apregoam ser o domicílio do de cujus que deve nortear a questão sucessória. E os entendimentos não param por aqui. Há muitos outros.

Se adotarmos a localização das coisas como circunstância de conexão, estaremos nos filiando à corrente da sucessão fracionária, ou seja, o direito a ser aplicado é aquele do local onde estão localizados os bens do espólio; assim, podem ser vários os direitos aplicados, haja vista que o de cujus pode ter bens em diversos Estados.

Por outro lado, se adotarmos a nacionalidade ou domicílio do falecido como regra, a sucessão será regida por um só direito.

Até o século XIX prevaleceu a idéia da localização das coisas, consagrada no princípio ius rei sitae, como a base para a matéria de sucessão causa mortis e como conseqüência, a diversidade de partilhas. Havia, porém uma dificuldade técnica no tocante aos bens móveis.

Na época do feudalismo os bens móveis eram vistos como coisas de menor importância e portanto não haveria vantagem em manter em relação a eles, o princípio ius rei sitae. Os juristas da época procuraram, então, solucionar o problema atribuindo aos móveis uma situação fictícia única, através da presunção de que todos se situavam no lugar do domicílio do de cujus, ou seja, onde a maior parte dos seus bens estavam.

A sucessão continuou a ser regida pelo princípio ius rei sitae, porém, enquanto os imóveis eram contemplados levando-se em conta a sua situação real, os móveis atendiam a uma situação presumida.

Dessa forma estava surgindo a teoria pela qual a sucessão deve ser regida pelo direito do último domicílio do de cujus.

Mais tarde alguns pensadores começaram a palmilhar pela trilha do entendimento de que na sucessão não se deve considerar a transmissão de um bem isolado, mas sim, o conjunto de bens composto de coisas corpóreas e incorpóreas. Assim, fora observado também que por força da universalidade dos bens deve corresponder a unidade do direito internacional privado, ou seja, a sucessão inteira deve ser regida por um só direito.

O fracionamento ou unidade da sucessão diz respeito à circunstância de conexão: a localização dos bens ou a nacionalidade e domicílio do de cujus.

Atualmente são quatro as doutrinas em Direito Internacional Privado que procuram explicar a sucessão no âmbito internacional:

  1. a estatutária, segundo a qual a sucessão de um bem imóvel deve se reger pelo ius rei sitae e a transmissão dos bens móveis ao ius domicilii;
  2. a do ius patriae, que visa apreciar toda a sucessão pelo direito nacional do de cujus;
  3. a do ius domicilii, que recomenda ser a sucessão regida pela lei do último domicílio do falecido;
  4. a que recomenda a lei do lugar do falecimento.

Das quatro teorias supracitadas, apenas a última julgo impraticável, uma vez que segundo a tal, basta a pessoa falecer em viagem de passeio, para que a partilha se faça sob a égide de uma legislação que determina condições diferentes daquelas que eram previstas pelo de cujus e pelos herdeiros.

Pela lógica, deveria prevalecer a teoria do ius domicilii, ou seja, deveria ser observado o direito do meio social onde o indivíduo viveu, pois como afirmamos anteriormente, a legislação de um Estado vincula-se ao temperamento de seu povo. Assim, em tese, o direito do último domicílio do falecido é o que reflete o seu desejo com relação à transferência de seu espólio.

O Brasil já manteve ao longo de sua história, a adoção de mais de um sistema. A antiga Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 14, preceituava a nacionalidade do de cujus como circunstância de conexão e somente quando ele fosse casado com brasileira ou tivesse filhos brasileiros, é que a sucessão seria regida por nosso direito pátrio.

Nossas Constituições Federais de 1934 e 1937 apregoavam que os bens de estrangeiros que estivessem localizados no Brasil fossem regulados pelo direito brasileiro (ius domciilii), se a lei nacional do de cujus não fosse mais favorável..

No atual Direito Internacional Privado, o direito do último domicílio do de cujus é o que determina as pessoas suscetíveis a figurarem na ordem de vocação hereditária, a quota dos herdeiros necessários, as restrições e cláusula das legítimas, as causas de deserdação e as colações.

A Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 10, § 2º, preceitua: "A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder". Capacidade aqui deve ser entendida não com o sentido próprio, mas como a qualidade de herdeiro.

Julgo corretíssimo esse preceito da lei civil pátria, devendo ser aplicado por toda a comunidade internacional, pois favoreceria o povo judeu no tocante ao julgamento das ações de responsabilidade internacional face às vítimas do Holocausto. Hoje, depois de passado tantos anos do final do genocídio nazista, os descendentes das vítimas judias encontram-se espalhados pelo mundo todo e muitos não têm a mesma nacionalidade de seus ancestrais, cujos bens foram-lhes retirados de maneira ilegal..

O que fazer diante dessa situação? Como determinar se a pessoa tem a qualidade de herdeiro? O citado art. 10, § 2º, da LICC, nos dá a resposta: a lei do Estado em que este descendente estiver domiciliado é que deve determinar se ele é herdeiro ou se perdeu essa qualidade depois de sucessivas gerações. Não se deve interpretar o termo capacidade no sentido processual, ou seja, que o herdeiro tenha capacidade postulatória, pois essa capacidade é matéria regulada pelo Direito Internacional Público, mas sim, capacidade no sentido de qualidade, de condição de herdeiro.

No tocante à sucessão de estrangeiro que tenha deixado cônjuge ou filhos e bens no Brasil, o art. 14 da antiga LICC previa que nesse caso fosse obedecida a lei brasileira.

Esse dispositivo, porém, não é por si só, suficiente para solucionar uma outra questão: se o estrangeiro casado com brasileira, ou que tivesse filhos brasileiros, possuir filhos no país de origem, a aplicação do Direito brasileiro poderia pôr em prejuízo os herdeiros do outro Estado.

Por outro lado, os artigos 134, da CF de 1934 e o 152, da CF de 1937, preceituavam que a vocação para suceder em bens de estrangeiros existentes no Brasil será regulada pela lei nacional em benefício de cônjuge brasileiro e dos seus filhos, sempre que não lhes seja mais benéfico o estatuto do de cujus. Essa disposição era mais restrita pois só se referia à vocação hereditária, enquanto o art. 14, da LICC dizia respeito a todos os institutos sucessórios.

Algum tempo depois, o art. 10, § 1º, da LICC, confirmou essa interpretação afirmando que a vocação para suceder em bens de estrangeiros situados no Brasil será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge brasileiro e dos filhos do casal, sempre que não lhes seja mais favorável a lei do domicílio.

Deve-se salientar que o art. 14 da antiga LICC e os textos constitucionais de 1934 e 1937 visavam a sucessão aberta no Brasil, enquanto que o art. 10, § 1º, da atual LICC diz respeito a sucessão aberta no estrangeiro.

Finalmente, no ano de 1967, o art. 150, § 33, da CF, veio regular a sucessão de bens estrangeiros situados no Brasil, afirmando que este caso será regulado pela lei brasileira sempre que a lei nacional do de cujus não for mais benéfica aos filhos e ao cônjuge. Esse dispositivo abrange a hipótese de o inventário e a partilha serem realizados no estrangeiro, mesmo havendo bens situados no Brasil, beneficiando, assim, o cônjuge supérstite brasileiro e os filhos brasileiros do cônjuge estrangeiro falecido.

Quanto à sucessão testamentária, a melhor doutrina orienta que a capacidade para testar deve ser apreciada pelo direito do local de domicílio do testador. Se o testador possuía um domicílio na época que fez o testamento e outro na época do falecimento, o ato deve ser analisado pelo Direito da localidade de domicílio do testados na época de realizar o ato.

Não há que se falar em observação de dois direitos, pois assim seria destruída a regra máxima do Direito Internacional privado: se fosse necessário observar ao mesmo tempo os direitos de diversas jurisdições, não haveria razão para existir regras de Direito Internacional Privado (cf. CASTRO, 1968, p. 153).

No que se refere ao local de abertura da sucessão, entendo que deve ocorrer no último domicílio do autor da herança. Era este o entendimento do art. 37, da LICC, no Projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua e assim sempre prevaleceu.

Há que se dizer que a homologação no Brasil, de sentença estrangeira de partilha de bens, fica sujeita à avaliação da coisa aqui situada e ao pagamento dos impostos devido ao Fisco brasileiro.

É interessante notar que a questão da sucessão internacional diz respeito não apenas aos herdeiros do Holocausto nazista, mas é matéria de interesse de todos aqueles que tenham a qualidade de herdeiro na órbita internacional.

Assim, é importante, diga-se mais uma vez, que esse assunto seja pacificado doutrinária e jurisprudencialmente.

Somos partidários do entendimento de que a sucessão internacional deva ser regida por um só Direito.

Vamos mais além opinando que o Direito regente de toda a matéria sucessória deve ser aquele do último domicílio do de cujus, haja vista que, em tese, seria esse o Direito que corresponde à sua vontade no tocante a sucessão de seu espólio.

No que diz respeito a determinar quem possui a qualidade de herdeiro, entendemos que tal assunto deve ser regido pelo Direito do domicílio do suposto herdeiro. Já a capacidade para herdar, ou a capacidade processual não diz respeito ao Direito Internacional privado, e sim, ao Direito Internacional Público; não é matéria específica de direito das sucessões.

Nos filiamos ao pensamento dualista, no sentido de que cada Estado recepcione a norma de Direito Internacional Privado, adaptando-a ao seu ordenamento jurídico interno, de tal forma a não gerar conflitos de normas, pondo em risco a segurança jurídica dos indivíduos e dos Estados.

No tocante à questão sucessória, o mesmo deve ocorrer. Cada Estado deve recepcionar a norma internacional de direito sucessório, criando norma interna que vise a aplicação pacífica daquela.

Acreditamos que dessa forma a justiça nascerá para todos, inclusive aos herdeiros do Holocausto.

Um grande questionamento que pode ser trazido à luz no tocante ao direito das sucessões é o que diz respeito ao término da vocação hereditária.

Muito tempo já se passou depois do fim da fatídica era nazista. Algumas gerações já se passaram e resta saber se os herdeiros judeus vivos na atual geração podem ser abrangidos pela vocação hereditária.

A doutrina e jurisprudência internacionais mantêm-se silentes a esse respeito. Ouso, porém, dar um passo nesse sentido, afirmando que em qualquer época os herdeiros do Holocausto poderão reaver os bens que lhes pertencem, observadas as disposições de natureza sucessória contidas no Direito Internacional Privado, que foram analisadas acima.

Não se pode negar esse direito à atual geração, apenas pelo fato de que seus ancestrais imediatos não tomaram posse dos bens confiscados e assim, não puderam transmitir a herança. Comungar desse pensamento é dar um passo em direção ao fim da justiça e ao arquivamento eterno dos sagrados direitos humanos.

Não se pode admitir que os bens despojados das famílias judias venham a pertencer definitivamente aos Estados da comunidade internacional, sendo que há nesses mesmos Estados, descendentes das tais famílias.

Não há nenhum entrave de natureza legal ou técnica que possa tirar o respaldo de um herdeiro, seja qual for a sua geração, para ingressar em juízo com ações de natureza sucessória.

Com base em tudo que foi explanado, entendemos que, a legislação brasileira, bem como o entendimento de nossos doutrinadores, vem ao encontro da realidade no tocante à questão sucessória que envolva bens das vítimas do Holocausto.

O Direito Internacional Privado deveria pacificar o entendimento de que, em questões sucessórias, o Direito a prevalecer seja aquele do último domicílio do falecido, tendo em vista que a localidade contém as normas que demonstram a vontade de quem ali esteja domiciliado.

Finalizando a discussão deste assunto acrescentamos que, embora a sucessão pertinente aos bens imóveis não tenha sido objeto do nosso estudo, podemos dizer que para os tais justa é a aplicação da mesma regra, ou seja, o domicílio do de cujus.

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Sobre o autor
Jairo Francisco do Carmo

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Jairo Francisco. Os herdeiros do holocausto, onde estão?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 410, 15 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5566. Acesso em: 25 abr. 2024.

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