Questões técnico-jurídicas que inviabilizam a prisão do desertor no interior de domicílio, sem a devida ordem judicial

07/02/2017 às 16:22

Resumo:


  • O crime de deserção pode ser considerado um crime permanente ou um crime instantâneo de efeitos permanentes, havendo divergências na jurisprudência e entre os doutrinadores.

  • O Supremo Tribunal Federal entende que a deserção é um crime permanente, enquanto o Superior Tribunal Militar considera a deserção de mera conduta, de consumação instantânea e de efeitos permanentes.

  • De acordo com a análise apresentada, a deserção se enquadra melhor na definição de crime instantâneo, com argumentos que a diferenciam de um crime permanente ou de efeitos permanentes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O ingresso em domicílio só é caracterizado nas hipóteses elencadas na CF. Há, contudo, entendimento de que no crime de deserção a polícia judiciária militar estaria autorizada a ingressar em residência para prender o desertor. o artigo discute a questão.

1 – Considerações iniciais.

2 – Crime de deserção: crime permanente ou crime instantâneo de efeitos permanentes?

3 – Conclusão.

1 – Considerações iniciais.

Preliminarmente, é relevante estabelecer as diferenças existentes entre os diversos títulos ou instrumentos jurídicos que legitimam uma prisão provisória.

Na pretendida linha de análise, merecem destaques a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão do insubmisso e a prisão do desertor.

Assim, o instrumento legal que justifica a prisão de um cidadão que esteja cometendo um delito, acaba de cometê-lo, ou seja, encontra-se em uma das condições de flagrância elencadas no art. 244 do Código de Processo Penal Militar, é o auto de prisão em flagrante. De outro modo, a prisão preventiva, desde que preenchidos os requisitos legais, só é legitimada mediante ordem judicial.

Nesse sentido, é correto afirmar que a pessoa, no primeiro caso, está presa a título de flagrante delito, materializado pelo auto de prisão em flagrante; e, na segunda hipótese, o encarceramento decorre da presença dos requisitos para prisão preventiva (arts. 254 e 255 do Código de Processo Penal Militar), sendo seu título legitimador o mandado judicial expedido por autoridade judiciária competente.

Faz-se necessário, então, perquirir quais são os instrumentos legais que autorizam a prisão do desertor e do insubmisso.

Inegavelmente, em ambos os casos supracitados, os instrumentos jurídicos que autorizam a prisão do desertor e a prisão do insubmisso são, respectivamente, o Termo de Deserção e o Termo de Insubmissão.

Art. 452. O termo de deserção tem o caráter de instrução provisória e destina-se a fornecer os elementos necessários à propositura da ação penal, sujeitando, desde logo, o desertor à prisão. (grifei)
Art. 463. Consumado o crime de insubmissão, o comandante, ou autoridade correspondente, da unidade para que fora designado o insubmisso, fará lavrar o termo de insubmissão, circunstanciadamente, com indicação, de nome, filiação, naturalidade e classe a que pertencer o insubmisso e a data em que este deveria apresentar-se, sendo o termo assinado pelo referido comandante, ou autoridade correspondente, e por duas testemunhas idôneas, podendo ser impresso ou datilografado.
§ 1º O termo, juntamente com os demais documentos relativos à insubmissão, tem o caráter de instrução provisória, destina-se a fornecer os elementos necessários à propositura da ação penal e é o instrumento legal autorizador da captura do insubmisso, para efeito da incorporação. (grifei)

Tratam-se, portanto, de prisões provisórias, ex vi legis (por força de lei). Essas modalidades de prisão, diga-se de passagem, encontram respaldo constitucional, conforme se verifica pelo art. 5.º, LXI, in verbis: “LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

Sucede que a própria Constituição Federal restringe o ingresso em domicílio às hipóteses elencadas no art. 5.º, XI, a saber: “XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.(grifei)

Dentre as mencionadas normas constitucionais, constata-se que o ingresso em domicílio para efeitos de prisão de um cidadão só pode ocorrer diante de um flagrante delito ou por ordem judicial, durante o dia. Não há, destarte, autorização constitucional para prisão no interior de domicílio com base no Termo de Deserção e no Termo de Insubmissão.

Pontue-se que, mesmo no caso de prisão por ordem judicial, há correntes doutrinárias que restringem o ingresso em domicílio somente em hipótese de mandado de busca e apreensão em domicílio expedido por juiz criminal competente. Com efeito, pensar de modo diverso é conferir ao mandado de prisão carta branca para a polícia ingressar em qualquer domicílio para efetuar prisão. Assim, a ordem judicial referida na Constituição Federal demanda autorização específica para ingressar em domicílio determinado.

Vale observar que o legislador, no art. 178 do Código de Processo Penal Militar, ao disciplinar o conteúdo do mandado de busca e apreensão, registrou em seu parágrafo único que, se houver ordem de prisão, constará no próprio texto do mandado.

Certamente algumas vozes da doutrina argumentarão que o delito de deserção é um crime permanente e, assim sendo, haverá uma situação de flagrante delito. Será?

2 – Crime de deserção: crime permanente ou crime instantâneo de efeitos permanentes?

Adite-se, em primeiro lugar, que não existe consenso na jurisprudência e entre os operadores de direito a respeito da real classificação jurídica do crime de deserção. Para uns, o crime em tela é permanente. Outros, contudo, sustentam ser um crime instantâneo de efeito permanente.

O Supremo Tribunal Federal vem reiterando entendimento de que a deserção é um crime permanente (HC 113891 RJ).

Já o Superior Tribunal Militar registra ser a deserção de mera conduta, de consumação instantânea e de efeitos permanentes (apelação 00001123120147110211).

No campo doutrinário, Assis e Coimbra classificam a deserção como crime permanente.

Em outra linha de interpretação, Adriano Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas posicionam-se no sentido de que a deserção é um crime instantâneo de efeitos permanentes.

Acreditamos, contudo, que a deserção melhor se adéqua à definição de crime instantâneo. Sob nossa ótica, a deserção não se coaduna com as características relativas ao crime permanente e nem tão pouco com a de um crime instantâneo de efeitos permanentes. Senão vejamos:

a) a prescrição da deserção tem tratamento diverso da prescrição para o crime permanente. O art. 125, §2º, do CPM descreve que o termo inicial da prescrição da ação penal começa a correr do dia em que cessar a permanência, nos crimes permanentes. Diferentemente, o art. 132 normatiza que a extinção da punibilidade pela prescrição ocorre quando o desertor atinge a idade de 45 anos (praça) e 60 anos (oficial);
b) no crime permanente, a ação e a consumação ocorrem simultaneamente. No sequestro, por exemplo, quando o agente arrebata a vítima e a coloca em cativeiro, a ação e a consumação ocorrem simultaneamente e ambas, vale dizer, ação e consumação, protraem-se no tempo. Tal situação é comum entre os demais crimes permanentes, v.g., o porte e guarda de drogas, a ocultação de cadáver e a ocultação no crime de receptação. De outra maneira, a conduta no crime de deserção tem início no momento em que se dá a ausência desautorizada do militar de sua OM. Por sua vez, a consumação só se perfaz após o oitavo dia de ausência. Não acontecem, portanto, simultaneamente, ação e consumação do crime;

c) a exclusão do desertor, sem estabilidade, impede que a consumação do delito se protraia no tempo. Como dito alhures, para que um crime seja considerado permanente, é necessário que a ação delituosa, bem como a consumação do delito se perdurem no tempo.

Há, contudo, em relação ao crime de deserção, norma impeditiva para a ocorrência de tal fato. Trata-se do art. 456, § 4º, do CPPM, in verbis:

Art. 456 (...)
Exclusão do serviço ativo, agregação e remessa à Auditoria
§ 4º Consumada a deserção de praça especial ou praça sem estabilidade, será ela imediatamente excluída do serviço ativo. Se praça estável, será agregada, fazendo-se, em ambos os casos, publicação, em boletim ou documento equivalente, do termo de deserção e remetendo-se, em seguida, os autos à auditoria competente. (grifei)
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Constata-se, dessa forma, pelo teor do referido artigo, que o militar, sem estabilidade, é excluído do serviço ativo, após a consumação da deserção. Destarte, passa à condição de civil.

Assim sendo, não havendo possibilidade jurídica de o civil responder pelo crime de deserção, verifica-se que, no momento da exclusão do militar, opera-se uma ruptura na consumação delituosa, a qual deixa de se prolongar no tempo e, por conseguinte afasta a permanência do delito.

Agregue-se, por outra vereda, somente para fins de argumentação, que a prevalecer a tese de que a deserção se constitui num crime permanente e, portanto, o sujeito ativo estaria sempre em flagrante delito, o correto então seria, em nosso modesto pensar, lavrar-se um APF, logo após a captura de um desertor, no interior de um domicílio. Frise-se, nessa toada, que o Termo de deserção, é, normalmente, lavrado bem antes da captura do desertor e, por si só, não autoriza o ingresso em qualquer domicílio para prender o infrator.

Não se pode olvidar que nos crimes classificados como permanentes, dentre os quais se destacam o sequestro, a ocultação no crime de receptação, o porte ou a guarda de drogas, exige-se a lavratura do auto de prisão em flagrante para que a prisão e o possível encarceramento do agente infrator sejam legitimados.

Em relação ao crime instantâneo de efeitos permanentes, vale lembrar que a doutrina aponta, como caraterística do aludido crime, o fato de o efeito do crime (resultado) permanecer, independentemente da vontade do autor. À guisa de exemplificação trazemos à colação o crime de homicídio no qual o efeito morte da vítima é permanente e não depende da vontade do sujeito ativo do crime. Tal hipótese não sucede, entretanto, com o crime de deserção, notadamente em virtude de a ausência (efeito) cessar com a captura ou apresentação voluntária do desertor.

Dessa forma, entendemos que o crime de deserção é apenas um crime instantâneo e, se nos fosse permitido doutrinar, ousaríamos em classificá-lo como crime instantâneo de efeito temporário, uma vez que com a captura ou apresentação voluntária do desertor o efeito “ausência” é imediatamente interrompido. Assim, o tempo de ausência do afastamento do agente do crime de deserção não é permanente, mas sim condicionado ao momento da captura ou apresentação voluntária do desertor, vale dizer, é temporário.

3 – Conclusão.

Em razão do exposto, não se contesta a legalidade da prisão do desertor ou a captura do insubmisso com base no Termo de Deserção e no Termo de Insubmissão, respectivamente, em locais públicos. O que se pretende trazer para reflexão é que a prisão do desertor, no interior de um domicílio, só poderá ocorrer com o consentimento do morador ou, durante o dia, por mandado de busca e apreensão domiciliar fundamentado com todos os requisitos legais, uma vez que os referidos termos não autorizam o ingresso em locais onde haja privacidade.

Referências:

ASSIS, Jorge César. Comentários ao Código Penal Militar: comentários, doutrina, jurisprudência dos Tribunais Militares e Tribunais Superiores. Curitiba: Juruá, 2014

MIGUEL, Claudio Amin; COLDIBELLI, Nelson. Elementos de direito processual penal militar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

FREITAS, Ricardo; ROCHA, Guilherme; MARREIROS, Adriano Alves. Direito Penal Militar: teoria, crítica e prática. São Paulo: Método, 2015.

NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. São Paulo: Saraiva, 2014. 

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Sobre o autor
Luciano Gorrilhas

Subprocurador-geral de Justiça Militar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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