Ocupações em escolas públicas e o Estatuto da Criança e do Adolescente

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11/02/2017 às 12:27
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O pleno exercício do direito à educação dos demais alunos e a proibição da hospedagem de menores desacompanhados dos pais são aspectos que não podem ser desprezados nas ocupações de escolas públicas.

RESUMO: O artigo faz um breve estudo sobre o fenômeno da ocupação de escolas públicas, sobretudo em escolas estaduais e municipais, que por lei se dedicam ao ensino fundamental e médio e, em sua esmagadora maioria, são frequentadas por crianças e adolescentes carentes. Trata-se pesquisa bibliográfica, de cunho exploratório, com o fim de conhecer mais o tema.

As ocupações têm sido justificadas como sendo manifestação do exercício da cidadania e da liberdade de protesto dos alunos. No entanto, o artigo alerta sobre o risco de lesão a normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. A primeira é a que garante o pleno Direito à Educação. Não se pode esquecer que no Brasil muitas crianças fazem importantes refeições do seu dia na escola; que a escola representa alternativa para que adolescentes não estejam expostos ao uso ou tráfico de drogas; que escola é um local apropriado e idôneo para guardar as crianças enquanto os pais trabalham; que a frequência na escola é requisito para o recebimento de benefícios sociais; que o Brasil gasta fortunas para facilitar o acesso e a permanência de alunos na escola.

Portanto, paralisar uma escola significar impor um sacrifício a quem mais necessita dela – alunos pobres. A segunda norma do Estatuto da Criança e do Adolescente que pode ter sido gravemente descumprida é que proíbe que menores de idade sejam hospedados desacompanhadas dos pais. O risco de lesão, violência, abuso e exposição à toda sorte de males, aumenta exponencialmente para crianças e adolescentes desacompanhados dos seus responsáveis. O direito ao protesto não pode atingir ou ferir prerrogativas de crianças e adolescentes, os quais receberam da Constituição Federal a prioridade absoluta para receber assistência e proteção.

PALAVRAS-CHAVE: Ocupações de Escolas. Direito de Protesto. Direito à Educação. Hospedagem de Crianças e Adolescentes.


INTRODUÇÃO

O Brasil instaurado pela Constituição Federal de 1988 prima pela participação popular nas decisões políticas. As pessoas não podem mais ser impedidas de criticar, sugerir, reclamar, pedir e revoltar-se contra o que não consideram correto na sociedade e no Estado. Por isso foram garantidos os direitos de petição, direito de associação, direito de reunião, direito à informação, plebiscito, referendo, iniciativa popular, o direito de greve entre outros.

Esses direitos de participação se estendem, na forma da lei, às pessoas menores de dezoito anos. É o que deixa claro o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, ao conferir aos mesmos os direitos de opinião, expressão, participação na vida familiar e comunitária e participação na vida política na forma da lei (art. 16), além da preservação de sua autonomia, valores, ideias e crenças (art. 17). Assim, a militância social e o protagonismo juvenil devem ser sempre incentivados.

As ocupações de escolas públicas têm sido justificadas no direito de cidadania e participação social dos jovens, e causaram relativo alvoroço em 2016, por isso é provável que tal modalidade de protesto seja utilizada novamente. Diante disso, é necessário que a sociedade procure entender melhor o movimento, coloque sobre a mesa as bases legais que de alguma forma possam influenciar em sua realização e, por fim, tente comparar ganhos e sacrifícios advindos do movimento.

Este trabalho discute dois aspectos das ocupações enfocando:

  • Riscos ao Direito à Educação. “Educação” no Brasil é conceito abrangente, inclui uma série de outros benefícios que são concretizados através da presença do aluno na escola, fato que é impedido quando esta se encontra ocupada e sem aulas;
  • Riscos à integridade física e moral da criança e do adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a hospedagem de pessoas menores de 18 anos desacompanhadas dos pais.

Este trabalho não julga o mérito das ocupações, mas enfrenta dois problemas advindos de seu exercício, que atingem diretamente alunos ocupantes e não ocupantes.

Direito de criança e do adolescente configura um valor resguardado pela Constituição Federal e por várias leis. Sua flexibilização somente deveria ser admitida por razões poderosas. O normal é o contrário: sacrificar outros interesses para proteger a criança e o adolescente. Esta certeza jurídica e social é que justifica o presente debate.


O DIREITO À EDUCAÇÃO EM RISCO

O direito à educação é um direito social e integra a categoria dos direitos humanos. Pertence à segunda geração dos direitos fundamentais, configurando uma prestação a ser fornecida pelo Estado aos cidadãos com o intuito de lhes propiciar uma vida com mais qualidade.

O Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966, incorporado à ordem jurídica brasileira através do Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, determina em seu Artigo 13 que os Estados Partes do Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Esta deverá ser obrigatória e acessível, além de gratuita.

A Constituição Federal de 1988 determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (art. 205). Mais à frente, a Constituição determina que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à educação, ao lado de outros direitos essenciais como a vida, a saúde, a alimentação entre outros (art. 227).

A Lei nº 8.069/90 (ECA) determina que a criança e o adolescente têm direito à educação visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando a eles igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 53). O Estatuto aduz que é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente o ensino fundamental, obrigatório e gratuito (art. 54).

Importantes comandos expressos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente estão no §3º do art. 54, ao dizer que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, e no §4º do mesmo artigo, ao dizer que o não oferecimento do ensino público obrigatório pelo poder público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente.

Durante a Sessão 70ª de sua Assembleia Geral, as Nações Unidas traçaram novas metas a fim de criar um futuro sustentável para todos, colocando a educação como o instrumento principal desse processo. É o que se observa nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)[2]. Os objetivos nada mais são do que conclusões a respeito da importância da educação para o indivíduo e para a sociedade, como por exemplo:

  • A educação é crucial para tirar pessoas da pobreza;
  • A educação tem o papel fundamental de ajudar as pessoas a adotar métodos de cultivo mais sustentáveis e a entender mais sobre nutrição;
  • A educação pode fazer diferença fundamental em uma série de questões relativas à saúde, incluindo mortalidade precoce, saúde reprodutiva, propagação de doenças, estilos de vida saudáveis e bem-estar;
  • A educação de mulheres e meninas é particularmente importante para alcançar a alfabetização básica, melhorar habilidades e competências participativas e melhorar as oportunidades de vida;
  • A educação e a formação aumentam as habilidades e a capacidade de usar recursos naturais de forma mais sustentável e podem promover a higiene;
  • Programas educacionais, principalmente não formais e informais, podem promover melhor conservação de energia e a adoção de fontes de energia renovável;
  • Existe uma relação direta entre áreas como vitalidade econômica, empreendedorismo, habilidades para o mercado de trabalho e nível educacional;
  • A educação é imprescindível para desenvolver as habilidades necessárias para construir uma infraestrutura mais resiliente e uma industrialização mais sustentável;
  • Quando acessível de forma igualitária, a educação promove comprovada diferença nas desigualdades sociais e econômicas;
  • A educação pode oferecer às pessoas habilidades para participar da criação e da manutenção de cidades mais sustentáveis, assim como para ter resiliência em situações de desastres;
  • A educação pode fazer diferença fundamental nos padrões de produção (por exemplo, em relação à economia circular) e no entendimento do consumidor sobre bens produzidos de forma mais sustentável, assim como sobre a prevenção do desperdício;
  • A educação é essencial para a compreensão massiva dos impactos das mudanças climáticas e para a adaptação e a mitigação, principalmente em âmbito local;
  • A educação é importante para desenvolver a conscientização sobre o ambiente marinho e construir um consenso proativo em relação a seu uso sustentável e com sabedoria;
  • A educação e a formação aumentam as habilidades e a capacidade de apoiar meios de subsistência saudáveis e de conservar os recursos naturais e a biodiversidade, principalmente em ambientes ameaçados;
  • O aprendizado social é essencial para facilitar e garantir sociedades participativas, inclusivas e justas, bem como a coerência social;
  • O aprendizado ao longo da vida constrói capacidades para entender e promover políticas e práticas para o desenvolvimento sustentável.

Isso mostra a importância da educação na vida das pessoas e na construção de uma sociedade melhor.

Toda essa construção demonstra a necessidade de se questionar a viabilidade social de impedir o acesso à escola. É preciso colocar na balança o Direito de Protestar e o Direito de Estudar.

O acesso à escola pública foi uma grande conquista da democracia brasileira. O conhecimento é um bem inestimável, essencial e estratégico para a vida de cada pessoa. O conhecimento prepara o indivíduo para assumir suas responsabilidades familiares, para assumir funções no mercado de trabalho, para assumir funções na política, para promover o bom funcionamento do serviço público, enfim, o conhecimento é um instrumento de transformação individual e coletiva.

Muitos esforços são empreendidos para garantir o acesso e a permanência dos alunos na escola. Ainda que o Brasil esteja longe do ideal, os índices de analfabetismo e evasão tiveram significativa melhora graças a um conjunto de esforços dos governos federal, estaduais e municipais, no sentido de facilitar o acesso dos alunos e sua permanência na escola. Uma série de políticas públicas realizadas ao longo dos anos contribui nesse sentido, algumas merecendo ser destacadas como programas de transporte e alimentação escolar.

Para que as pessoas, sobretudo crianças e adolescentes, possam se locomover até à escola a fim de usufruírem do direito à educação, o Estado empreende grande esforço, empenhando volume considerável de recursos em todo o País, seja adquirindo veículos, seja celebrando contratos com empresas privadas para o transporte dos alunos, seja subsidiando passagens no transporte público coletivo a fim de garantir a gratuidade para estudantes, seja conferindo auxílio financeiro diretamente aos alunos como acontece em muitas instituições federais e em programas como o PRONATEC.

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O acesso à escola pública e gratuita deve sempre ser levado muito a sério. A maioria dos brasileiros e, certamente os ocupantes de escolas públicas, não fazem ideia do quanto é investido anualmente para garantir o acesso de alunos carentes à escola. Por meio do programa Caminho da Escola, o Ministério da Educação atua para disponibilizar linhas de crédito especial para que estados e municípios adquiram ônibus, miniônibus, micro-ônibus e embarcações novas, e por meio do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate) é oferecida assistência financeira em caráter suplementar aos estados, Distrito Federal e municípios, para garantir o acesso e permanência nos estabelecimentos escolares dos alunos do ensino fundamental público residentes em área rural que utilizem transporte escolar. O Quadro 1 apresenta informações do Portal do FNDE que mostram os recursos destinados a garantir o acesso à escola por meio desses dois programas[3]:

Ano

Previsão Orçamentária

Execução Financeira

Municípios

Alunos Beneficiados

2014

594.000.000,00

580.717.121,63

5.296

4.547.690

2013

582.000.000,00

581.399.889,47

5.198

4.420.264

2012

630.000.000,00

591.216.004,75

5.122

4.507.241

Quadro 1 – Dados Estatísticos

Fonte: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

Na prática, a conduta dos alunos, professores e simpatizantes que ocupam as instituições públicas de ensino, interrompe esse esforço para garantir o acesso à educação pública, prejudica a já dificultosa execução dos recursos públicos entre outros prejuízos. Aqui estão sendo mencionados apenas dois programas federais, porém, as ocupações prejudicam, também, os esforços dos estados e dos já sofridos municípios brasileiros.

Além do transporte, outras ações e esforços são empreendidos para permitir o acesso e favorecer a permanência de alunos na escola – como é o caso da alimentação. Esta é uma das principais ações. Pertinente mencionar a existência do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o qual atende alunos de toda a educação básica matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias (conveniadas com o poder público), por meio da transferência de recursos financeiros.[4]

Os repasses financeiros para o PNAE no período de 2013/2015 foram:

  • 2015 – R$ 3.759.789.067,20;
  • 2014 – R$ 3.693.569.094,96;
  • 2013 – R$ 3.539.020.589,40.

Esse fortalecimento da política de alimentação escolar tem exercido um papel importante na vida das pessoas mais carentes. Os programas de alimentação escolar, juntamente com outros programas nas áreas de saúde e assistência social, têm conseguido diminuir os índices de desnutrição entre as crianças brasileiras. Na publicação “Saúde Brasil 2009”[5], o Ministério da Saúde demonstrou que a desnutrição aguda de crianças menores de 5 anos de idade no período compreendido entre 1974 e 2006, recurou 90%, passando de 18,4% para 1,8%.

Impedir o acesso e a permanência de um aluno à escola pública, para muitos desses alunos significa privá-los da principal refeição do dia. Isso sem falar que muitos alunos fazem mais de uma refeição na escola. A escola se tornou sim uma aliada direta no combate à fome.

Quem milita na defesa da criança e do adolescente reconhece que a escola pertence à rede de proteção dos mesmos. Quando está na escola a criança deixa de estar submetida a uma série de riscos como a violência física, violência psicológica, uso de drogas, más companhias, trabalho infantil, abandono, entre outros riscos. Criança na escola significa que, pelo menos naquele período, ela terá alimentação, proteção, desenvolvimento moral e intelectual, convivência comunitária, respeito à sua dignidade e tantas outras prerrogativas. Esta é a realidade.

Impedir o acesso e a permanência de uma criança em sua escola é retorná-la à situação de risco social.

As escolas públicas são frequentadas, em sua esmagadora maioria, por alunos oriundos das classes economicamente menos favorecidas, afinal, as pessoas com um pouco mais de recursos financeiros matriculam seus filhos em escolas particulares por razões que vão desde os recursos pedagógicos até a segurança. Infelizmente, a realidade já escancarou que o aluno da rede privada tem maiores chances de ingressar nas melhores universidades tanto públicas quanto privadas. Isto não é uma crítica, é apenas um fato.[6]

Assim, impossível não considerar que ocupar uma escola pública estadual ou municipal, atinge mortalmente direito de pessoas carentes, pessoas que não dispõe de outros recursos de aprendizagem, senão aqueles disponibilizados pelas escolas ocupadas.

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Sobre o autor
André Luís da Silva Gomes

Advogado. Membro da Comissão em Defesa dos Direitos da Criança, do Adolescente, do Idoso e da Pessoa com Deficiência da 30ª Subseção da OABMG. Ex-Conselheiro Tutelar por dois mandatos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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