Ocupações em escolas públicas e o Estatuto da Criança e do Adolescente

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11/02/2017 às 12:27
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A HOSPEDAGEM DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DESACOMPANHADOS DOS PAIS

A sociedade precisa se debruçar mais sobre a legalidade da estadia de crianças e adolescentes em prédios diversos de sua residência desacompanhados dos pais.

A regra, a lógica e o bom senso ensinam de modo claro que o filho deve estar onde estiverem seus pais, ou estes devem assegurar que os filhos estejam protegidos em sua integridade física, moral e psicológica onde quer que se encontrem.

Ainda que esta norma seja óbvia e natural, o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe dispositivo expresso sobre a questão:

Art. 82. É proibida a hospedagem de criança ou adolescente em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado pelos pais ou responsável.

Não se trata apenas de um local, mas sim de uma atividade – hospedar, dar abrigo. E a atividade deve assim ser considerada não apenas pelo aspecto formal, mas principalmente pelo aspecto fático.

Este artigo da lei tem como objeto de tutela a plena integridade de crianças e adolescentes. Todos os aspectos, bem como todos os direitos de crianças e adolescentes ficam em iminente risco quando se encontram fora da proteção dos pais, que são os principais e primeiros responsáveis por garantir segurança dos filhos.

Um edifício destinado a atividades de estudo pode não ser adequado para receber pessoas em pernoite, ainda mais em se tratando de pessoas menores de 18 anos. Existe sim a liberdade das pessoas dormirem em qualquer lugar ou ficarem acordadas, ignorando saúde, segurança, conforto, alimentação etc, porém, nem todas as pessoas podem dispor de seus direitos. Afinal, se os direitos da personalidade são irrenunciáveis pelas pessoas maiores e capazes, quanto mais o são por parte de crianças e adolescentes.

A vulnerabilidade de crianças e adolescentes é inerente à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 6º, ECA). Sua incapacidade para o exercício pessoal dos atos da vida civil está expressamente prevista no Código Civil (arts. 3º e 4º). Tudo isso, aliado ao art. 82 do ECA, deixa claro que um adolescente não pode escolher por si a exposição ao risco, ele deve ser representado ou assistido pelos pais.

Um local de hospedagem tenta remontar as condições de habitabilidade do lar, oferecendo utilidades para a higiene, alimentação, descanso e proteção das pessoas enquanto estiverem fora de sua residência. Os pais são obrigados por lei a garantir que seus filhos estejam em local que ofereça tais condições.

O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe expressamente a hospedagem de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou não autorizados por estes, com o fim precípuo de protege-los integralmente: sua vida, integridade física, psicológica, moral, alimentação, higiene, segurança e sua dignidade.

Os riscos a que estão submetidas crianças e adolescentes distantes ou fora do alcance dos pais são imensuráveis.

O art. 82 do Estatuto da Criança e do Adolescente possui, no mínimo, uma dúplice direção de comando:

  1. Os pais não podem deixar seus filhos sozinhos. Os pais têm a obrigação legal de manter seus filhos junto de si, ou sendo necessário o distanciamento, os pais têm o dever legal de colocar os filhos aos cuidados de um indivíduo maior, capaz e idôneo. Dessa forma, os pais ou o responsável protegem diretamente a integridade dos filhos ou confiam tal tarefa expressamente a alguém da sua confiança. Os pais respondem, inclusive, se a escolha do cuidador for mal feita ou se este cuidador for negligente;
  2. Os responsáveis por hotel, motel, pensão, estabelecimento congênere ou qualquer outro local onde estiverem pernoitando crianças ou adolescentes, devem exigir a presença dos pais ou de alguém expressamente autorizado por eles. Desobedecer a esta regra é colocar em risco crianças e adolescentes.

Isso significa que os pais deveriam estar junto de seus filhos durante as ocupações nas escolas.

Aliás, se os filhos não estão estudando ou realizando atividades provenientes do calendário escolar ou previstas nos planos pedagógicos das instituições de ensino, sua permanência nos edifícios desacompanhados dos pais ou desacompanhados de adulto autorizado pelos pais, deve ser questionada em qualquer horário do dia ou da noite.

Os responsáveis pelos prédios públicos devem cumprir o previsto no art. 82 do ECA para não colocar em risco a vida, a saúde, a alimentação, a segurança, a integridade física, psicológica e moral de crianças e adolescentes. Não se pode cair na ilusão de achar que a regra é somente para gerente de hotel. Ninguém pode hospedar menores desacompanhados ou não autorizados pelos pais.

O que se percebe nas ocupações de escolas públicas são adolescentes por conta uns dos outros.

É preciso cuidado por parte dos pais e dos responsáveis por estas escolas para que não lhes seja imputado qualquer mal que venha a acontecer com seus filhos ou alunos que estejam ocupando escolas.

O Código Penal prevê:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

A legislação brasileira imputa o crime a quem lhe deu causa e a quem contribuiu para a ocorrência do resultado criminoso. Assim, toda e qualquer contribuição para a ocorrência do resultado é considerada sua causa.

O Código Penal segue prevendo no mesmo art. 13:

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Este Parágrafo 2º do art. 13 do Código Penal trata de uma omissão criminosa. O delito não teria ocorrido caso a pessoa responsável agisse como dela se espera.

Deixar de alimentar o filho ou esquecer o medicamento em determinado horário são condutas que, apesar de reprováveis, podem não configurar algum crime, ou na pior das hipóteses, implicariam no cometimento de um crime muito específico relacionado à saúde. No entanto, se a omissão com a alimentação ou com o medicamento, causarem diretamente ou contribuírem para a morte do filho, os genitores poderão responder pelo crime de homicídio. Afinal, sua omissão contribuiu para o resultado.

Assim, de acordo com o que dispõe o art. 13, §2º, do Código Penal, se alguém (os pais ou o responsável por uma escola) devia ou podia agir para evitar o resultado e não o fez, deverá responder pelo crime. O dispositivo legal é muito claro ao determinar que tem o dever legal de agir quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.

Quem fizer mal a uma criança ou adolescente dentro ou fora de uma escola por meio de agressão física, agressão verbal, entrega de drogas ilícitas, corrupção de menores, deverá responder pelo crime. Não há dúvida. Porém, será que o fato de deixar uma criança ou adolescente desacompanhado em um prédio com pessoas desconhecidas não pode favorecer a ocorrência de um mal, uma lesão, uma violação?

Assim, se a omissão dos pais contribuir para que o filho sofra alguma lesão à direito, deverão estes pais ser responsabilizados[7].

A Autoridade Policial, o Ministério Público, o Conselheiro Tutelar, o Juiz da Infância e Juventude, ao tomarem conhecimento de alguma violação contra criança ou adolescente dentro dessas escolas ocupadas, deverão verificar se a conduta dos pais poderia ter evitado a lesão à direito do filho.

Ainda que não seja um hotel, um motel ou uma pensão, a escola não pode hospedar ou permitir que se hospedem crianças e adolescentes desacompanhados dos pais. Aliás, nem acompanhados, visto que esta não é a finalidade do imóvel, salvo em casos de necessidade como a calamidade pública (terremoto, enchente).

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Tudo o que se disse a respeito dos genitores, deverá ser questionado em relação à conduta do responsável pelo prédio onde funciona a escola ocupada, seja o Diretor, seja o Secretário de Educação, seja o Prefeito, seja o Governador.

Sabendo da presença de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais, o agente público poderá ser responsabilizado caso sua omissão contribua, favoreça ou simplesmente permita que sejam violados direitos de pessoas menores. Defender-se afirmando respeitar a liberdade de expressão de crianças e adolescentes não retira o dever de agir previsto em lei.

Todos os atos do agente público, ações ou omissões, nesta condição, são imputados ao Poder Público, segundo o que dispõe o art. 37, §6º, da Constituição Federal, e deverá ser levado à sério pela sociedade e pelas autoridades. O responsável pelo prédio público deve zelar pela realização dos fins da entidade que preside, dirige ou gerencia, utilizando os instrumentos que a lei ou a estrutura do Estado lhe conferem.[8]


CONCLUSÃO

Os assuntos utilizados para motivar uma ocupação de escola pública geralmente são do interesse público e precisam ser debatidos. Não se pode, em momento algum, afirmar que os alunos e simpatizantes que ocupam escolas públicas são desprovidos de razões. O que se tem visto é que a pauta de reivindicação dos ocupantes de escolas públicas tem sido a mesma de outros manifestantes fora das escolas. Não há a menor dúvida sobre a coerência em relação às razões do inconformismo.

Porém, não se pode olhar só para um aspecto da situação.

As ocupações de escolas públicas precisam ser analisadas sob múltiplos olhares. Dois pontos de vista são essenciais: o Direito de Propriedade e o Direito Administrativo. Isso porque em regra não se pode invadir ou ocupar imóvel alheio. E outra regra é o princípio da continuidade do serviço público.

No entanto, o debate que aqui é trazido se mostra tanto ou mais urgente do que os exemplos acima, afinal, a proteção integral da Criança e do Adolescente deve ser resguardada com absoluta prioridade pela família, pela sociedade e pelo Estado, conforme determina o art. 227 da Constituição Federal de 1988. Esse foco não pode ser perdido, seja em casa, seja na rua, seja nas ações dos governantes, seja nas decisões judiciais, seja na escola.

O Brasil luta desde o descobrimento para proteger a integridade de crianças e adolescentes. No passado, filhos de escravos tinham status de coisa, de objeto, e por isso sofriam todo tipo de violação que se pode imaginar. Tais violações não feriam a lei. Mesmo sem a escravidão, crianças e adolescentes permaneceram vitimadas pela pobreza, pela falta de estrutura familiar e pelo descaso do Estado. Ao longo dos anos, estas situações colocaram crianças em situações de violência sexual e física, outras vezes as empurraram para o trabalho infantil, sem qualquer dignidade e expostas a abusos de toda sorte, outras vezes deixaram que elas crescessem desprovidas de qualquer proteção, sem estudo e por consequência, sem perspectiva.

Por isso, a sociedade precisa ter o cuidado de não sacrificar direitos e garantias de crianças e adolescentes sob o pretexto de estar exercendo o direito de protesto. Não se brinca e não se negocia com direito de crianças e adolescentes, principalmente carentes, que são os que mais gozam dos benefícios da escola pública.

O Brasil está distante do ideal, mas não se pode negar a existência de uma rede de proteção aos menores que tem a escola como importante instrumento, seja ministrando conteúdos pedagógicos, seja preparando para os desafios da vida profissional, seja garantindo parte da alimentação diária, seja garantindo a frequência necessária ao recebimento do auxílio financeiro advindo do Governo Federal, seja simplesmente permitindo que o aluno esteja protegido dos riscos da ociosidade existente fora de seus portões.

Uma forma de protesto, qualquer que seja, não deveria tirar isso de crianças e adolescentes. Não se mostra razoável sacrificar a integridade de pessoas menores para protestar. Os pais e as autoridades envolvidas na questão não podem se omitir.

O protesto não pode ser um fim em si mesmo.

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Sobre o autor
André Luís da Silva Gomes

Advogado. Membro da Comissão em Defesa dos Direitos da Criança, do Adolescente, do Idoso e da Pessoa com Deficiência da 30ª Subseção da OABMG. Ex-Conselheiro Tutelar por dois mandatos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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