Já em vigor desde o mês de março de 2016, o Novo Código de Processo Civil brasileiro encampou em larga medida, notadamente no que tange à “divisão do trabalho” entre os sujeitos processuais, paradigma teórico que tem sido designado por expressões como visão cooperativa do processo[i], modelo comparticipativo de processo[ii] ou processo cooperativo[iii].
Segundo Fredie Didier Jr., “Os princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório, juntos, servem de base para o surgimento de outro princípio do processo: o princípio da cooperação. O princípio da cooperação define o modo como o processo civil deve estruturar-se no direito brasileiro. Esse modelo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo das partes. O contraditório volta a ser valorizado como instrumento indispensável ao aprimoramento da decisão judicial, e não apenas como uma regra formal que deveria ser observada para que a decisão fosse válida”.[iv]
Em suma, afirma-se na doutrina, há uma revalorização do papel das partes frente ao órgão judicial, impondo-se a todos os sujeitos processuais, uns em relação aos outros, e especialmente ao último em relação às primeiras, a observância de condutas eticamente pautadas, traduzidas em deveres tendentes à obtenção de um processo leal e cooperativo.
Tal modelo de processo cooperativo tem sido saudado com entusiasmo por muitos estudiosos, que o reputam como o mais adequado ao contexto do Estado Democrático de Direito[v], e visto com desconfiança por outros, os quais temem que a interpretação do dispositivo que estatui o “dever de cooperação” (art. 6º do NCPC) possa dar margem ao autoritarismo judicial.[vi]
Passando a anos-luz de distância da pretensão de abordar de modo exauriente, em um singelo e curto texto, tão palpitante tema, que já rendeu e certamente ainda renderá portentosos estudos acadêmicos, vimos apenas registrar nossa percepção de que o aventado processo cooperativo incorporado pelo Novo CPC não traz (ou ao menos não deveria trazer) acachapantes novidades ao Direito Processual Civil brasileiro, seja porque não modifica a correta compreensão que se deve ter do sentido e da função do processo jurisdicional nos marcos do Estado Democrático de Direito, seja porque apenas explicita conteúdos que há um bom tempo já se entendem albergados pelas garantias constitucionais do processo.
O processo jurisdicional foi, desde sua incorporação pelas sociedades políticas inicialmente mais organizadas, é, na atualidade, e, provavelmente, ainda será durante longo tempo um método heterocompositivo de resolução de controvérsias.[vii] Heterocompositivo justamente porque a solução para o conflito é ditada por um terceiro, estranho às partes em disputa. Portanto, afigura-se ínsita à natureza mesma dele, sob o viés da jurisdição pública, a ideia de imposição de uma decisão, como um ato de positivação de poder[viii]. Essa imposição pressupõe uma relação necessariamente assimétrica entre aquele que impõe a decisão e aqueles sobre os quais ela é imposta. O primeiro há que se encontrar em um patamar de superioridade relativamente aos últimos, ou seja, supra e inter partes. Do contrário, a decisão não terá como ser realmente imposta, passando a depender em cada caso da aquiescência dos destinatários.
É certo que essa assimetria apresentou um movimento pendular no curso histórico do processo jurisdicional, ora para mais, aumentando-se os poderes conferidos ao juiz, ora para menos, enaltecendo-se as posições das partes e a disponibilidade de seus interesses, porém nunca deixou de existir. Tal variação tem refletido essencialmente os momentos políticos atravessados pelas sociedades humanas e os contextos de maior valorização do público (nas épocas de concentração do poder) ou do privado (nas épocas de fragmentação ou limitação do poder). Exemplos de momentos de maior valorização do privado e de redução da assimetria, com o lançamento do magistrado a um papel de espectador passivo do duelo judiciário travado pelos litigantes, são o chamado processo isonômico do Ordo Judiciarius da Era Medieval[ix] e o processo dos Estados Liberais do início do século XIX[x]. No primeiro caso subjazia a fragmentação do poder político típica da estrutura feudal, ao passo que, no segundo, tinha-se o predomínio da ideologia liberal e individualista, a ditar severas restrições à intervenção estatal em qualquer aspecto da vida social.
É claro que, em sua evolução histórica, e de modo a ganhar legitimidade, diminuir o arbítrio do julgador e privilegiar as posições das partes, o processo jurisdicional e a consequente imposição da decisão nele proferida se viram cada vez mais regulamentados e cerceados, tanto na forma quanto no conteúdo, até que atingisse o que, no presente momento e no contexto do Estado Democrático de Direito, parece ser um ponto ótimo de equilíbrio entre o poder e o respeito à liberdade e aos direitos individuais, entre as atuações do órgão judicial e das partes. Com efeito, nos países democráticos em geral, o processo jurisdicional assume feição dialógica e se abre para a celebração contraditória e a oportunidade de ampla participação dos sujeitos interessados, aos quais se permite o exercício dos poderes e faculdades e a desincumbência dos ônus inerentes aos direitos de ação e de defesa, argumentando, provando e influindo das maneiras lícitas cabíveis sobre o convencimento do juiz. Por outro lado, dentre outras limitações à potestade que desempenha, cobra-se do julgador o dever de fundamentar seu pronunciamento, impreterivelmente sopesando as contribuições das partes, dever esse correlato aos próprios direitos de ação e de defesa e à garantia do contraditório, caracterizando um meio de torná-los eficazes. Ao fim e ao cabo, contudo, sobrevém uma decisão que se impõe inevitavelmente às partes, legitimada na hipótese pelo iter precedente e pelas possibilidades por elas desfrutadas de defesa de seus interesses e da tentativa de fazer prevalecer seus pontos de vista. Mas não deixa de ser um ato de positivação do poder que revela a inafastável assimetria entre o Estado-juiz e os contraditores, hoje juridicamente regulada e limitada ao grau necessário para o bom êxito das tarefas a cargo do primeiro, isto é, mantendo-se a sua autoridade, todavia freando eventual autoritarismo.[xi]
Logo, e aqui é propício esclarecer, as expressões visão cooperativa do processo, modelo comparticipativo de processo e processo cooperativo não devem ser tomadas em acepção que conduza a crer que o processo jurisdicional se tornará um verdadeiro e próprio locus deliberativo, no qual se procura a grande custo a convergência de opiniões, tal como nos processos deliberativos de formação da vontade pública, mas apenas no sentido de que, a par das garantias de efetiva e isonômica participação dos sujeitos interessados, em colaboração (ou, melhor dizendo, divisão de trabalho) com o magistrado, põe-se a este o indeclinável dever de considerar todas as contribuições argumentativas e probatórias por eles trazidas. A tais aspectos se resume a democracia processual, que não demove o juiz de sua clássica posição supra e inter partes, como decorrência da milenar natureza e da realidade do processo jurisdicional como método heterocompositivo de resolução de controvérsias, bem como da atual visão publicista dele.[xii]
Afirmar que o julgador há que construir seu decisum mediante critérios intersubjetivamente produzidos e controláveis não significa dizer que está irremediavelmente vinculado às teses e alegações propostas pelos litigantes na exclusiva (e não raras vezes egoísta) tutela de seus interesses, salvo no que concerne às matérias vedadas ao conhecimento oficioso, e nem que, como fruto da cooperação deles, qualquer solução pode ser pronunciada pelo magistrado. Seu compromisso, antes de tudo, é com a integridade do ordenamento jurídico e com o recorte do mundo empírico relevante para o julgamento da demanda, a partir dos quais extrairá, nessa atividade intersubjetiva, a norma jurídica (regra ou princípio) de regência. Por isso, no processo jurisdicional democrático, o procedimento não é por si só constitutivo de qualquer conteúdo do provimento. Este sempre haverá que refletir e estar de acordo com os preceitos materiais do sistema jurídico.[xiii]
Afirmar que o Direito representa o critério da decisão, ou seja, da resolução do conflito, equivale a dizer que a hipótese de solução vem escolhida como “válida” ou “justa” porque assim configurada com base em uma norma. O “sim” a uma hipótese de solução significa que esta é juridicamente fundada, ao passo que o “não” significa um juízo de falta de fundamento jurídico. Dessa forma, o âmbito da decisão resulta delineado em função do Direito aplicável e as possíveis hipóteses de solução do conflito são todas e somente aquelas configuráveis com base em normas jurídicas. Qualquer outra hipótese de solução é excluída da gama de hipóteses que podem ser levadas em consideração no processo.[xiv]
Resta nítido que o processo jurisdicional guarda inconciliáveis diferenças com os processos deliberativos de formação da vontade pública, a impedir que recebam idêntico tratamento.
Enquanto o primeiro ordinariamente se destina à prolação de decisão, baseada em critérios jurídicos preestabelecidos (fornecidos pela Constituição, pelos textos normativos infraconstitucionais e pelos precedentes com DNA constitucional, como costuma asseverar Lenio Streck), que reconheça razão a um dos contraditores, os últimos se vocacionam à formação do consenso possível, normalmente pelo critério majoritário, acerca de determinado assunto.
Enquanto o resultado do primeiro, via de regra, tem caráter marcadamente retrospectivo, não inovando originariamente na ordem jurídica, os resultados dos últimos costumam ostentar caráter prospectivo, ofertando inovações, mesmo que complementares, nos quadros do ordenamento jurídico.
Finalmente, enquanto no primeiro predominam as ações instrumentais e estratégicas das partes, voltadas ao êxito, nos últimos a prevalência é (ou ao menos deve ser) da ação comunicativa, voltada ao entendimento.
Predomínio aquele, diga-se, que não exclui a possibilidade de soluções consensuais alvitradas pelos próprios contraditores, tais como o reconhecimento jurídico do pedido pelo réu, a transação entre as partes e a renúncia pelo autor ao direito em que se funda a pretensão.
Outrossim, as ações instrumentais e estratégicas não podem desbordar dos limites éticos impostos às condutas das partes, traduzidos, no Processo Civil, nos deveres de veracidade, honestidade, lealdade, probidade e boa-fé, sob pena de se configurar a litigância de má-fé, passível inclusive de sanção pecuniária e do reconhecimento da obrigação do culpado de indenizar a parte contrária pelos prejuízos sofridos e de lhe ressarcir todas as despesas efetuadas.
Assim, a similitude entre o processo jurisdicional e os processos deliberativos de formação da vontade pública somente se verifica em nível mais abstrato, por utilizarem a estrutura normativa processual, caracterizada pelo procedimento e pela realização em contraditório.[xv]
Em acréscimo, se por um lado é salutar a previsão legislativa da visão mais abrangente do contraditório, que deixa de considerá-lo nas limitadas expressões de ciência bilateral dos termos e atos do processo e possibilidade de contrariá-los, ou de informação necessária e reação possível, para contemplá-lo como garantia de participação em simétrica paridade no procedimento[xvi], por outro lado ela também pode ser interpretada como mais um preocupante sintoma da baixa constitucionalização que acomete as práticas jurídicas nacionais.
Com efeito, o Novo CPC nada mais faz, a esse respeito, do que explicitar conteúdos que, de acordo com a melhor doutrina, são corolários diretos da exegese democrática da garantia constitucional do contraditório.
Concluindo, temos a impressão de que as supostas mudanças trazidas pelo Novo CPC e seu enaltecido modelo de processo cooperativo, a bem da verdade, já estão incorporadas no estrato constitucional há mais de 28 anos. O que falta(va), desde então, é(era) enxergá-las e levá-las a sério.
Notas
i Cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro: http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/CAO_O_Formalismo-valorativo_no_confronto_com_o_Formalismo_excessivo_290808.htm.
ii Cf. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008, p. 215.
iii Cf. DIDIER JR., Fredie: http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/ativismo%20soltas%20fredie.pdf.
iv Idem, p. 211-212.
v Por todos, v. DONIZETTI, Elpídio: http://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/artigos/121940196/principio-da-cooperacao-ou-da-colaboracao-arts-5-e-10-do-projeto-do-novo-cpc.
vi Nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz et al.: http://www.conjur.com.br/2014-dez-23/cooperacao-processual-cpc-incompativel-constituicao.
vii V. http://www.jurisconsultos.org/2014-3-14-transformacoes.html.
viii BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1, p. 286.
ix MITIDIERO, Daniel. A lógica da prova no “ordo judiciarius” medieval e no “processus” assimétrico moderno: uma aproximação. Argumenta, Jacarezinho, v. 6, n. 6, 2006, p. 181-187.
x DAMASCENO, Kleber Ricardo. O novo contraditório e o processo dialógico: aspectos procedimentais do neoprocessualismo. 2010. 184 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho. Disponível em: <http://www.cj.uenp.edu.br/ccsa/mestrado/index.php?option=com_docman&Itemid=70&limitstart=20>. Acesso em: 17 jun. 2012. p. 62-63.
xi LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Tutela constitucional do acesso à justiça. Núria Fabris, 2013, p. 111-112.
xii Idem, p. 112.
xiii Idem, p. 113.
xiv COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezioni sul processo civile: il processo ordinario di cognizione. 5. ed. Bolonha: Il Mulino, 2011. v. 1, p. 26.
xv LIMA, op. cit., p. 113-114.
xvi V. a respeito: http://www.jurisconsultos.org/2014-8-1-transformaccedilotildees.html.