Eletividade municipal e voto de cabresto no federalismo brasileiro

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O federalismo brasileiro possui peculiaridades muito marcantes, diferindo-se da maioria dos modelos adotados pelo mundo. Neste sentido, a participação do Município como ente federativo autônomo resulta em um arranjo que merece ser abordado.

De início, cabe informar que o coronelismo, em uma explicação abstrata, seria o fruto e consequência de uma incompatibilidade entre a forma federativa adotada na normatividade e a estrutura social real, no que tange às relações intermunicipais, que são a esfera política, de fato, mais próxima do dia a dia do cidadão. Os municípios, em questões tanto legais quanto estruturais, são negligenciados, por falta (esta conveniente, como há de se apresentar) de normas programáticas que efetivamente atinjam a população de forma harmônica, portanto cabia ao coronel ordenar a vida ali e prover àqueles mais pobres que si que estejam entre as suas graças, levando este povo que dele depende às eleições.

            Em troca, o governante por ele apoiado mantém este poder de ordenação do coronel, na medida em que este consiga os votos e resultados que o político, para manter seu cargo, necessita. Delegar tamanha influência, e de certa forma abandonar uma noção objetiva de administração municipal é condição para que o governo estadual obtenha votos, e neste sentido, os próprios cofres públicos notoriamente contribuem para financiar campanhas e apoiam os projetos que tem o apadrinhamento do coronel, que por meio deste escambo, se for bem sucedido, leva ao desenvolvimento (ou se falhar, ao subdesenvolvimento) municipal.

            Surgem como consequência desta ascensão forçosa do coronal o mandonismo, filhotismo, falseamento de voto, e desorganização dos serviços públicos locais, que existem devido à uma ausência de autonomia legal do município, e uma autonomia extralegal que surge deste jogo de influencias, ligada à pessoa do ruralista. O coronel é rico em comparação, como diz o autor, “passa bem de boca”, quando colocado frente ao pequeno produtor paupérrimo, que trabalha na terra de outrem, ou em uma propriedade familiar, geralmente, de pequena produtividade e que é aproveitada das grandes terras que se desfaleceram no processo de transformação do Brasil Colônia ao Brasil atual.

            Portanto, ele era a figura de admiração e de esteio do trabalhador, relativamente mais rico e instruído que a massa. Assim sendo, parte de seu poderio tem um caráter como o de “Rei Salomão”, também lhe caindo às mãos o poder de mediador de contendas, conselheiro, e não obstante, de julgador e carrasco, poder punitivo este geralmente efetivado via empregados, agregados ou capangas. Ademais, ainda que a figura do coronel esteja ligada ao atraso, e à recusa em se realizar obras nos municípios, tal infraestrutura está diretamente ligada ao êxito do líder local em fazer os seus protegidos elegerem o governo vigente: o candidato, então eleito vincula seu nome, poderio e verba á região que lhe foi leal e leal à governança. Hoje em dia estas vinculações persistem, mais fortes do que nunca, pode-se dizer, entre prefeitos, vereadores para com governadores, e entre estes e os presidentes da República.

            Porém, ainda na época do Brasil Colônia, de certa forma, por ser a figura simbólica e caricata do “coronel”, o experiente, bem alimentado, envelhecido, abastado e mandatório patriarca produtor de riquezas, a primeira que vêm à mente, e a primeira a que se recorre em uma crise - seja por parte de um governante buscando apoio eleitoral, seja por parte de um trabalhador necessitando de um empréstimo ou de um favor ou benfeitoria -  um prefeito então se torna superfulo neste universo sob as asas do líder rural, e portanto, de inicio, na política nacional, são as eleições para as câmaras municipais  que adquirem maior importância.

            Tanto é que apenas sob o regime de 1891, que aos Estados foram discriminadas as funções executivas, que incumbiam, em uns poucos, ao próprio presidente da câmara. Na grande maioria das unidades federadas, havia um órgão executivo especial, cuja denominação variava: prefeito, intendente, superintendente, agente executivo. A matéria era deixada ao critério das Constituições estaduais, porque a federal era omissa. E apenas as Constituições federais posteriores se referem expressamente ao prefeito.

            O sufrágio, como é de se esperar neste ambiente, não é universal, e as Ordenações Filipinas - promulgadas em 1603 por Filipe I, rei de Portugal, e em vigência até 1830 – ordenavam da investidura eletiva de dois juízes ordinários, três vereadores, um procurador e um tesoureiro onde houvesse, e escrivão, sendo outros funcionários eleitos pela Câmara. As eleições eram indiretas e participavam apenas os “homens bons e povo”, expressão genérica utilizada em várias codificações com significado diferente. No caso, os homens bons se constituíam praticamente daqueles que já haviam ocupado cargos ou que “costumavam andar na governança da terra”. A partir disto, cada eleitor de primeiro grau indicava mais seis de segundo grau.

            Haviam então, as eleições de pelouro, de barrete e a nomeação por parte do rei – com o objetivo de aplacar eventuais petulâncias por parte dos colonos – era a nomeação de juízes de fora, quais sejam, delegados da Coroa, cuja presença forçava a supressão de dois eleitos, que eram os juízes ordinários, e de toda forma, o regime absolutista da época dava ao monarca total liberdade de intervenção na vida municipal, ou de autorizar os seus prepostos a fazê-lo.

            Na Constituição do Império é que se inicia a inovação das regras, para a criação de uma realidade brasileira. As câmaras, compostas de sete vereadores e nas vilas e nove nas cidades, são meras corporações administrativas advindas dos votos dos que obtivessem mais de cem mil reis em patrimônio, entre outros requisitos, conforme os arts. 91 e 92, da Constituição Imperial de 1824, vide:

CAPITULO VI.

Das Eleições.

        Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa Geral, e dos Membros dos Conselhos Geraes das Provincias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Provincia.

        Art. 91. Têm voto nestas Eleições primarias

        I. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos politicos.

        II. Os Estrangeiros naturalisados.

        Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes.

        I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.

        II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.

        III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas.

        IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral.

        V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.

            Interessante notar é que no seio da Constituição de 1924, e das leis que dela irradiaram, surgiram normas muito particulares quanto à eleição de vereadores: a Constituição de Goiás por exemplo, permitia ao eleitorado cassar o mandato de qualquer vereador que já não lhe merecesse confiança. Hoje, ironicamente, a eleição para vereadores é uma imposição, visto que com raras exceções o eleitor conhece a pessoa e as propostas pelas quais vota, e as câmaras de todo o estado – esta sendo uma realidade não só de Goiás -  se vê refém das interferências do governo estadual.

            Cumpre informar que ademais, a capital Goiânia, por exemplo, conta com 35 vereadores, que advém de diversos, e muitas vezes irrelevantes históricos políticos, e que são virtualmente desconhecidos por parte da população. E de 1891, até a data de hoje, com todas as mudanças, evoluções e também retrocessos políticos e de participatividade ocorridos, os prefeitos ganharam as suas devidas funções e definições pela Constituinte Originária e pelas Constituições Estaduais, há muito tempo não havendo a confusão de funções característica da Colônia, sendo estes os líderes do executivo na esfera mais delicada da governança, por ser, como já dito, a esfera mais próxima da vida quotidiana.

            Porém a realidade atual não é de cooperação entre prefeituras e câmaras, mas sim, pode-se dizer, de conspiração entre as mesmas em prol de benefícios particulares, de forma que a função teórica dos vereadores de fiscalização dos atos do líder do executivo cai por terra: atualmente os órgãos das chamadas “Funções Essenciais à Justiça” – CF/88, Capítulo IV – órgãos estes que tutelam as necessidades públicas e o bem andar da administração, e que são fruto de um processo de democratização das Constituições para com os compromissos de um Estado Democrático de Direito, se encontram abarrotados de processos que visam sanar erros aberrantes na administração pública dos Municípios.

            Estas situações aberrantes são justamente, frutos do sistema coronelista na medida que este, ao decair e perder parte de sua força - isto é, levando em consideração aquele primeiro modelo de coronel tradicional, o mero ruralista autoritário per si – deixou os municípios em estado de atraso, o que por sua vez, e a isto se soma a pobreza da massa trabalhadora rural, levou à um assustador êxodo para as cidades; e em consequência os municípios são deixados despopulados, atrasados e remotos, quando se pensa na perspectiva alienada que o governo federal e centralizador tem das suas cidades e vilas, e dos programas de governo reservados para elas.

            Por estas razões, são os municípios ambientes propícios para a eleição de candidatos que utilizam para a própria ascensão, com as devidas adaptações do tempo, de praticamente os mesmos antigos meios obscuros que os coronéis utilizavam para eleger seus governantes aliados, vide o “voto de cabresto” transformado nos seus irmãos mais jovens, “a compra de votos” e a demagogia. E cabe aos órgãos democráticos, pois, abalroar o Judiciário de processos em medidas de urgência, quando os atos abusivos e injustificados destes governantes inaptos saem de todo o controle, processos estes que seriam desnecessários caso houvesse uma administração racional de toda nossa federação, valorizando desde a grande e poderosa União até os Municípios hipossuficientes do interior do país.

            Exemplo da situação atual é o sítio do Ministério Público de Goiás <http://www.mpgo.mp.br/portal/principal> – à data de 19 de fevereiro de 2016 – manchetes de notícias: “Prefeita de Cidade Ocidental é representada por propaganda eleitoral antecipada – atual prefeita e possível candidata à reeleição tem inserido o número de seu partido associado a seu nome no material institucional de seu município”; “Promotor recomenda ao Município de Itumbiara invalidar habilitação de empresa de engenharia”; “mandado de segurança contra prefeito de Orizona requer início de aulas e do transporte escolar – estudantes da rede municipal de ensino estão fora das salas de aula por falta de transporte escolar e prefeitura não informa data para solução do problema, o que tem gerado revolta na população”; “bloqueados os bens de ex-prefeitas de São Domingos em razão de contratações irregulares – decisão determinou o bloqueio de R$100 mil de Ételia Vanja e Jovita Ribeiro”.

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No que tange a legislação eleitoral brasileira, bem como sua influência no estudo do coronelismo, cabe destacar que o ranço perpassa as formas de governo empregadas no território brasileiro – no período de reinado, império e república. A obra de Victor Nunes Leal, faz um recorte temporal do período em que imperava o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves ao Período Republicano, lapso que estende da década de 20, do século XIX a década de 50, do século XX. 

A priori, cabe destacar que o primeiro decreto eleitoral publicado em terras brasileiras data de 7 de março de 1821, de D. João VI, que mandou regular a eleição dos deputados às Cortes portuguesas pelas normas aplicáveis da Constituição espanhola. Devido à complexidade do modelo espanhol, logo foi permitido a realização de modificações discricionárias, convenientes aos capitães-gerais e governadores das capitanias.

Pois bem, desde então, fica nítido no decorrer da história da legislação eleitoral brasileira, as constantes tentativas de modificação e adaptação no decorrer dos regimes, não bastando, inúmeros dispositivos outra ora vigentes e falhos, foram reimplantados em épocas posteriores.

Destarte, é imperioso vislumbrar a confusão entre o poder legislativo e executivo, influência religiosa e atuação proativa de autoridades policiais no processo eleitoral, desde a qualificação dos votantes e determinação do prazo para recebimento das cédulas até a apuração dos votos e fixação do número de eleitores da paróquia.

O notório embaraço de diversos agentes de poder na esfera eleitoral, dava espaço aos agentes do poder central, para fazer uso indiscriminado da violência, com intuito de direcionar completamente o resultado dos pleitos.

Com intuito de mitigar as mazelas eleitorais presentes no Período Imperial, fora discutida uma reforma, na qual era vista como solução para os problemas enfrentados. A chamada Lei dos Círculos, Lei nº 842, de 19 de setembro de 1855, dividiu as províncias em distritos de um só deputado e mandou eleger os suplentes de deputados na mesma ocasião que estes, em ato sucessivo. Contudo, não influiu nos resultados esperados, resultando em uma nova reforma.

Surge a Lei nº 1082, de 18 de agosto de 1860, também chamada Segunda Lei dos Círculos. A nova lei introduziu pequenas alterações, incapazes de mostrar melhoria na manifestação das urnas. Suprimiu os suplentes, mandando realizar nova eleição em caso de vaga, e alargou os distritos eleitorais de modo a dar a cada um, três deputados eleitos por maioria relativa.

Em 20 de outubro de 1875, nova reforma foi realizada mediante a Lei nº 2.675, adotando o voto limitado, ou lista incompleta, tanto nas eleições de segundo como nas de primeiro grau. O objetivo era garantir a representação das minorias porém, a prática do rodízio dos nomes dos candidatos nas cédulas burlou a intenção da referida Lei.

Segundo Victor Nunes Leal, a eleição mais honesta do Império, ocorreu na vigência da Lei nº 3029, de 9 de janeiro de 1881, baseada em projeto de Rui Barbosa, exigiu renda anual mínima como requisito para inclusão do alistamento, sendo denominada Lei do Censo, bem como Lei Saraiva.  É importante salientar que apesar das sucessivas reformas, as eleições no Império não conseguiram desenvolver mecanismos capazes de mitigar fraudes, tampouco repetir nos resultados os anseios e votos do eleitorado.

Com o advento da República, o panorama eleitoral passou por inúmeras alterações. Passou a instituir o voto direto, suprimiu o censo alto da Lei Saraiva, em tudo o mais, regressou ao laboratório dos alquimistas da antiguidade, ou seja, inúmeras experiências legislativas foram aplicadas e suprimidas com intuito de descobrir a fórmula exata, sem maculas, capaz de vestir todas nuances e particularidades de cada parte do território nacional. O resultado, pois bem, não foi diferente dos alcançados no período Imperial.

Segundo Victor Nunes Leal, a constituição de 1891 manteve o sufrágio amplo: eram eleitores, em princípio, todos os cidadãos maiores de vinte e um anos, que se alistassem na forma da lei. Contudo, nota-se a gênese do processo eleitoral, durante o Governo Provisório do marechal Deodoro da Fonseca, onde era possível interpor recurso para o juiz de direito da comarca reavaliar as exclusões das qualificações de candidatos. Em 23 de junho de 1890, o decreto nº 511 instituiu o processo eleitoral, sendo nominado Regulamento Alvim.

Porém, conforme aduzido anteriormente, mesmo a normatização de um processo eleitoral, não conseguiu pôr termo às inveteradas fraudes eleitorais. Das eleições da Primeira República, duas falsificações imperavam: o bico de pena e a degola ou a depuração. Ainda, segundo o autor, a primeira era praticada pelas mesas eleitorais, com funções de junta apuradora: inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos e os ausentes compareciam. A segunda, era obra das câmaras legislativas no reconhecimento de poderes: os que conseguiam superar as ordálias preliminares tinham seus diplomas cassados na provação final.

Assim Brasil exprimiu na segunda Constituinte o seguinte: "No regime que botamos abaixo com a Revolução, ninguém tinha a certeza de se fazer qualificar, como a de votar…Votando, ninguém tinha a certeza de que lhe fosse contado o voto.... Uma vez contado o voto, ninguém tinha a segurança de que seu eleito havia de ser reconhecido através de uma apuração feita dentro desta Casa e por ordem, muitas vezes, superior".

Percebe-se, portanto, que a corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e enraizados flagelos da história brasileira, presente no regime colonial, imperial e republicano. Após todas as tentativas fracassadas, corroboradas por uma cadeia de fraudes e violências, o panorama eleitoral no Brasil atual é intimamente igual ao sistema representativo que os estadistas, legisladores e escritores políticos do Império e República descreveram a sua época.

Com efeitos, de todas eleições havidas até hoje, cumpre observar o altíssimo grau de manipulação do contingente eleitoral mais desprovido economicamente. O resultado final deste contexto, é a manipulação do voto pelos chefes locais, tendo em contrapartida, a satisfação dos interesses pessoais ou o bem da localidade eleitoral. A isto se tem chamado de política dos coronéis. Como magistralmente evidenciado por Victor Nunes Leal, "esse quadro nos revela que o "coronelismo" tem sido, no Brasil, inseparável do regime em base ampla. Sua influência não deixava de se refletir nos próprios defeitos da legislação eleitoral, ...".

Nesse contexto, convém mencionar as palavras do deputado Domingos Velasco que, em 1934, ao propor a eleição indireta, limitada a direta ao âmbito municipal ressaltou: "é a única solução honesta para a democracia liberal no Brasil, porque legaliza a instituição de fato que é o caciquismo. Se isso repugna aos Srs. Constituintes, teremos então de enveredar pelo caminho da libertação das massas rurais, garantindo-lhes o direito de subsistência, o direito ao trabalho e o direito à assistência, para que elas possam, na realidade, ser livres politicamente".

No período do Brasil colonial demarcava-se imperfeitamente as atribuições dos diversos funcionários sem a menor preocupação de separar as funções de acordo com sua natureza. A acumulação de poder generalizada em diversos âmbitos da administração pública mostrou-se um dos principais motivos para a confusão entre funções judiciária e policiais que permaneceu por muito tempo.

Interessante por demais era a organização policial e judiciária à época engendrada pela administração da Coroa. Haviam os juízes ordinário e os juízes de fora (portugueses evidentemente), cujas funções eram tanto policiais e administrativas quanto jurisdicionais. Em algumas outras Capitania, possível era encontrar juízes especializados de órfãos e do crime.  As câmaras, no entanto, possuía certas atribuições judiciárias embora muito reduzidas pela Ordenações Filipinas.

Abaixo dos juízes supracitados haviam os almotacés e os juízes de vintena. Os almotacés, da mesma sorte, exerciam duplamente as funções administrativas e judiciárias, aos quais eram incumbidos de julgar as infrações de posturas do conselho, causas relacionadas ao direito real acerca das obras ou construções em que impunham penas, com possível recurso aos juízes. Já aos juízes de vintena ou pedânes, cabiam-lhes o exercício nas aldeias, distante das vilas ou cidades, porém não tinham jurisdição no crime, mas podiam realizar prisões em flagrante, ou mediante mandado ou querela. Haviam, outrossim, os alcaides pequenos e os quadrilheiros, funcionários policiais propriamente como hoje entendemos.

Acima, portanto, das autoridades supramencionadas estavam os ouvidores de comarca e acima desses os ouvidores gerais, todos nomeados pela Corte Real. Funcionavam como juízes de recurso e corregedores do território da jurisdição. Em categoria superior, por conseguinte, estavam os donatários com ampla jurisdição tanto na área cível quanto na criminal. Tais funções eram desempenhadas juntamente com os ouvidores, mais tarde com os capitães-mores ou governadores das capitanias subalternas, os capitães-generais ou governadores das capitanias principais e o governador-geral também conhecido como vice-rei. Havia ainda as Relações, a mais alta instância judiciária da Colônia, e também acumulava atribuições que hoje conhecemos como judiciárias e administrativas.

Conquanto o governador fosse o supremo representante do rei, muita coisa escapava à sua jurisdição. Impende salientar que o governador não estava hierarquicamente acima da Relação, pois que em verdade era um de seus membros com a função de presidente natural.

Os assuntos relacionados à Colônia em Portugal eram submetidos ao Conselho Ultramarino, à Mesa da Consciência e Ordens, ao Desembargo do Paço e à Casa de Suplicação. Esse último era responsável pelo julgamento os recursos referentes aos casos excedentes da justiça colonial.

Nos municípios ocorria a justiça eletiva, fator de importante dominação do senhorinato rural que valia-se de sua influência para eleger juízes, vereadores e subordinados das câmaras.

Se algum juiz ou vereador fosse devassado, ou seja, cometesse delitos incerto ou faltas determinadas, os autos de devassa eram submetido aos ouvidores. Curioso observar que, segundo as Ordenações, o tormento era admitido como meio de prova, o que nos permite inferir que juízes e vereadores, em certos crimes, poderiam ser submetidos a tortura ou, como dizia-se outrora a “tratos de corpo”.

A fase do Império é marcada pela acumulação de atribuições judiciárias e policiais nas mão das mesmas autoridades.

A grande mudança digna de nota foi a declaração de que o Poder Judiciário era independente pela Constituição de 1824 e, por consequência, a declaração de que os juízes de direitos tornaram-se vitalícios, que perderia o cargo somente por sentença. Em contrapartida, admitiu a sua suspenção pelo imperador, bem como confiou ao legislador ordinário a função de regulamentação das remoções dos magistrados. A garantia da vitaliciedade, todavia, só era aplicável aos juízes de direito com exercício nas comarcas, não beneficiava, portanto, o juízes municipais que exerciam jurisdição nos termos e eram nomeados por quatro anos nem tampouco os juízes de paz de investidura eletiva e com jurisdição limitada aos distritos.

Outro fato marcante foi a reforma do Código de Processo Penal de 29 de novembro de 1832 responsável pela descentralização do sistema judiciário e policial. Por força dessa reforma, o juiz de paz recebeu extraordinário destaque, pois que investido de amplos poderes. Ocorre, contudo, que a referida reforma foi tida como ineficaz quanto à prevenção e quanto à repressão da criminalidade em uma conturbada conjuntura regencial.

Devido as grandes prerrogativas conferidas ao elemento local, iniciaram reações contrária ao código de 1932 concretizada por ação espontânea de algumas províncias seguidas por outras assembleias após a promulgação do Ato Adicional. Os prefeitos, originados dessa leis provinciais, eram nomeados livremente pelo presidentes de província e tinham exercício nos municípios e dentre suas funções se incluía a policial.

Consoante o código de 1932, cada comarca tinha um juiz de direito, e nas mais populosas podia haver até três, um deles seria o chefe de polícia; os juízes de direito, nomeados pelo imperador. Já nos termos, havia um conselho de jurados que funcionava em dois júris: de acusação e de julgamento; um juiz municipal e um promotor público, ambos nomeados pelo Governador Geral, na Corte, ou pelos presidentes, nas Províncias, dentre listas tríplices organizadas pelas câmaras municipais; um escrivão das execuções e oficiais de justiça. Em cada distrito, havia um juiz de paz eletivo; um escrivão e, para cada quarteirão, um inspetor, nomeado pela câmara, mediante proposta do juiz; e oficias de justiça, nomeados pelo juiz. AS funções policiais cabiam mormente aos juízes de paz e, cumulativamente, aos juízes municipais e ao juiz de direito que tivesse a investidura de chefe de polícia.

Em contraste ao essa lei descentralizadora, em 3 de dezembro de 1841 foi promulgada a Lei n°. 261 que institui o município da Corte e em cada província, um chefe de polícia, ao qual estavam subordinados os delegados e subdelegados, todos de livre nomeação do governo, na Corte, ou dos presidentes, nas Províncias, não sendo permitida a recusa do cargo. Inspetores de quarteirão, localizados na base da pirâmide, continuavam, mas agora nomeados pelos delegados. Foi dispensada a indicação tríplice das câmaras para a nomeação de juízes municipais e promotores, bem como ampliada a competência dos juízes de direito e limitadas as atribuições dos juízes de paz. Ademais disso, delegados e subdelegados foram incumbidos de exercerem, além da função policial, funções de natureza judiciária. Por fim, tal lei extingui as juntas de paz e o júri de acusação e deu outras providências que o regulamento desenvolveu.

Em meio aos debates parlamentares, ao deliberarem acerca da lei de 1871, novamente retornou a discussão por parte dos conservadores acerca dos conhecidos argumentos de que o código de 1832 estava lançando o país na anarquia; a lei de 3 de dezembro é que restabelecera a ordem, mantendo a autoridade do governo.  

 A lei de 3 de dezembro não foi um simples código processual ou de organização judiciária e policial; foi, em verdade, um instrumento político e um poderoso aparelho de dominação, capaz, de dar ao governo vitórias eleitorais esmagadoras, estivesse no poder o partido conservador ou o liberal.

Desta forma, é notória a grandeza da análise de Leal sobre a estrutura política da época, a relação entre as instituições e os poderes da Nação.

  • Conclusão

A posição do município no federalismo brasileiro é alvo de estudos que remontam aos primórdios do Século XX, quando, resultante da Constituinte de 1891, instaurou-se significativas alterações políticas no cenário da época. Este fato não torna o tema esgotado e resolvido, pelo contrário, a discussão se renova na medida em que o Estado hodierno tem como escopo primordial a garantia das melhores condições de vida aos cidadãos, e esta busca passa, indubitavelmente, por municípios capazes de cumprir suas metas.

Com o viés de traçar uma análise eficaz do município, sua eletividade e arranjo político, é imperioso abordar o atual tratamento da matéria na atual Carta Magna, posto que o Texto de 1988 trouxe interessantes dispositivos no tocante ao tema ora explanado.  A principal alteração advinda da última constituinte diz respeito à inclusão do município no enlace federativo, diferindo, inclusive, do modelo americano. Este novo cenário é criticado por alguns autores, como exemplo, BULOS que explica que tal fato “alija o modelo lógico-jurídico da federação”.

O certo é que o município, no regime contemporâneo, ostenta a capacidade de auto-organização, que por meio de Lei Orgânica própria traduz-se na não ingerência dos Estados-membros em diversos assuntos locais. Aliás, o tema ora proposto, com foco na eletividade municipal, caminha em paralelo com a pesquisa histórica traçada por autores que discorreram sobre os arranjos políticos das comunidades.

Tomando como ponto de partida a antecipação dos fatos trazidos pela Literatura, (veja-se exemplos notórios, como o 1984 de George Orwell e a distopia alucinante em Laranja Mecânica, de Burgess) o presente trabalho trará à tona um importante livro brasileiro que traça, de maneira artística e pormenorizada, dos arranjos políticos dos primeiros tempos da República no Brasil.

Trata-se de São Bernardo, obra do alagoano Graciliano Ramos. Este grande livro, publicado em 1934, tem como principal personagem, o “coronel” Paulo Honório, proprietário de terras que construiu seu patrimônio e prestígio político sob a égide da malícia e da sagacidade. O livro traz trechos que retratam fielmente o cenário “coronelista” do período, exibindo a coação empregada pelos grandes senhores de terras, dominando “rebanhos” de roceiros, que sem a menor instrução e capacidade financeira, entregavam seus direitos políticos aos patrões. O romance expõe também as necessárias trocas de favores entre o poder privado local e o Governo Estadual, institucionalizado e burocrático, que, por fatores eleitorais, necessitava do apoio do afastado interior do Brasil.

Diante dos subsídios abordados nos primeiros parágrafos, almeja-se a partir deste momento, adentrar no aspecto histórico imprescindível ao entendimento do município no Federalismo do Brasil. O referencial teórico substancial é o clássico “Coronelismo, enxada e voto”, trabalho científico apresentado por Victor Nunes Leal na intenção de angariar uma vaga como docente de Ciência Política na Faculdade Nacional de Filosofia.

Neste magistral estudo, o autor conceitua o coronelismo como um complexo fenômeno da política local, que caracterizou e marcou, principalmente, o período brasileiro desde a criação da Guarda Nacional, em 1831, até metade do Século passado. Sistema resultante da gradual decadência do poder privado e (à época) o ascendente Poder Público. Nota-se que LEAL faz a análise desde o período do Império, quando o Imperador nomeava, livremente, os responsáveis pelo Chefe das Províncias. O presidente das Províncias, delegado pelo poder central, possuía como principal atribuição garantir a vitória dos candidatos apoiados pelo Governo, neste ínterim “a concessão de maior autonomia aos municípios não concorreria para este resultado, porque poderia pôr em risco a homogeneidade da situação dominante na província.

Relacionando sua pesquisa com o conceito de “política dos governadores”, de Campos Sales, o autor de “Coronelismo” sustenta que a ampliação do sufrágio não conseguiu suprimir a situação política das trocas de favores entre o governo municipal e o Estadual, característica marcante da precariedade do interior do país e sua humilde população. A corrupção eleitoral configurava-se como notório flagelo do regime representativo, a abolição da escravidão, a seu turno, liberou um grande número de pessoas da situação precária em que viviam, no entanto, tais pessoas passaram a servir como instrumento do poder dominante.      

O Estado de Goiás pode ser trazido como notório exemplo da tramoia coronelista, visto que este Estado sempre se caracterizou por sua grande extensão, impondo aos Governadores Estaduais contatos fundamentais com os coronéis do interior, no intento de garantir a situação do Governo Central. Apesar disso, CAMPOS, importante estudioso do coronelismo em Goiás, afirma que este Estado-membro se caracteriza por sua distância dos grandes centros, tornando-se periférico, o que contribui ainda mais para a força do senhor de terras, que manejam seus eleitores, e buscam subsídios no Governo Estadual. PEREIRA, por sua vez, entende que os arranjos políticos do coronelismo se estendem dos grandes fazendeiros aos agronegocistas, influenciando as principais decisões políticas (inclusive na mudança da capital do Estado pra Goiânia) e dominando as principais cadeiras municipais, até a atualidade.

Um dos grandes problemas, resultado do compromisso coronelista, está na submissão da população à figura do coronel, único responsável por trazer condições melhores na vida interiorana. O sufrágio amplo, porém dependente deste arranjo, impossibilitava a rebelião de qualquer cidadão, já que a única possibilidade era votar no coronel, compromissado com o Governo Estadual. Toda forma de revolta e tentativa de mudança deste paradigma era brutalmente silenciado, visto que, conforme salienta LEAL, a polícia sempre fora uma importante arma na manutenção dos ideais políticos dominantes. O coronel acumulava o que Pierre Bourdieu denominou “capital político”, tirando da enxada do roceiro, o voto da aliança estadual.

Percebe-se assim, que melhorias na estrutura do município no Brasil, no tocante à uma série de fatores político/jurídicos (tributação, competência, eletividade etc) é condição necessária ao regime democrático que o cenário do Constitucionalismo Contemporâneo contempla. O federalismo brasileiro, com suas peculiaridades, inclusive a de elencar o município ao nível de ente, e também na presença da coalização política, exige estudos aprofundados sobre o tema, que não se esgotam facilmente. 

E esta grande “troca de economia simbólica” permanece arraigada no âmago da cultura de terrae brasilis, é visto e notório a todos a contemporaneidade do coronelismo, posto que grande parcela da população ainda permanece apartada do perfil político que o cidadão do Estado Democrático de Direito exige. O problema, como bem salienta Leal, é de emancipação política, os “donos do poder” permanecem até o momento juntando rebanhos de eleitores, que votam em determinado candidato em troca de pequenos favores. Troca-se a capa, mas não se troca o conteúdo do livro. Trocam a legislação e os representantes do povo, porém não mexe-se na “microfísica do poder”, no cerne dos problemas que ainda afetam a sociedade brasileira.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil – 7ª Edição – São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

RAMOS, Graciliano. São Bernardes – 96ª Edição – Rio de Janeiro: Editora Record, 2014.

CAMPOS, Francisco Itami. Coronelismo em Goiás. Goiânia, Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1983.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9ª Edição – São Paulo. Saraiva, 2015.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Vinícius Pomar Schmidt

Advogado e professor.

Lucas Vieira Rodrigues

Advogado, pós-graduando em Direito Constitucional.

Marília de Paula Barros Botelho

Pós-graduanda em Direito Constitucional.

Massiminiano Fernandes Biliu

Advogado, pós-graduando em Direito Constitucional.

Vilmar Procópio de Souza Junior

Advogado, pós-graduando em Direito Constitucional.

Informações sobre o texto

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