Resumo: o presente estudo é uma análise da conduta de divulgar conteúdo íntimo de uma relação, sem expressa autorização da parte exposta, com fito de enquadra-la criminalmente. Consiste em um levantamento sobre a definição de Revenge Porn para conformá-la dentro das figuras típicas já previstas pelo direito pátrio. A discussão se estende aos Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional sobre a matéria, com análise minuciosa do texto aprovado pela Câmara dos Deputados em 21 de fevereiro de 2017.
Palavras-chave: Pornografia não consensual; Revenge Porn, Delitos Informáticos.
1. INTRODUÇÃO
A divulgação de conteúdo pornográfico está para a internet do mesmo modo que a internet está para o computador. Os dados carecem de precisão, mas diferentes fontes de pesquisa estimam um percentil entre doze e trinta por cento da internet relacionado à pornografia. A mais citada é a publicada em 2010 pela empresa britânica Optenet com uma amostra representativa de quatro milhões de URL’s em seu banco de dados. Segundo a pesquisa, a conclusão é que cerce de 37% da internet é composta por conteúdo pornográfico. Em setembro de 2016, o Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE)1 publicou uma pesquisa sobre o comportamento do internauta brasileiro relativamente ao entretenimento erótico na internet e conclui que 65% dos internautas brasileiros acessam conteúdo adulto enquanto navegam. Outra fonte também bastante citada é a revista americana The Week2 que, além de indicar 12% da internet relacionado à material erótico, ainda estima um faturamento anual do setor em torno de US$ 97 bilhões. Há quem conteste essas informações, como Mark Ward da BBC Brasil3, e aponta distorções no método de pesquisa adotado capazes de dirimir esses números. Mas é inegável que independente da porcentagem tomada como referência o acesso a conteúdo erótico é fácil e amplamente disseminado. Isso engloba tanto conteúdo com finalidade comercial – produzido e orientado para venda – como conteúdo dissociado de viés comercial – produzido por razões particular.
A facilidade de produção e divulgação de mídias através de dispositivos eletrônicos como smartphones e tablets amplia o potencial de perpetração da pornô, sobretudo o não comercial. O anglicismo sexting surge nesse contexto definindo a divulgação de conteúdo erótico através de dispositivos eletrônicos. Nude Selfies – selfies de nudez – são utilizados para flertar ou seduzir outrem através da internet, ou apenas retribuir um favor de uma mídia anteriormente recebida. A prática se tornou comum e frequentemente é utilizada por casais para seduzir a outra parte da relação, realizar fantasias, ou apenas sair da rotina.
Não há óbice ou restrição à liberdade sexual do casal. No entanto, o conteúdo erótico produzido não se extingue com o término da relação e sua publicidade pode causar prejuízos imensuráveis. São inúmeros os exemplos que podem ser citados de vazamento de conteúdo íntimo após o término da relação para ridicularizar e envergonhar a pessoa frente à sociedade, por inconformismo de uma das partes da relação ou como forma de revanche por alguma situação desagradável. A exposição da intimidade através de mídias enviadas pelas redes sociais após o término do relacionamento viola direitos fundamentais não podendo o Estado coadunar com essa conduta ao arrepio da lei.
Sob esse aspecto o presente artigo é um estudo sobre a divulgação de imagens e vídeos eróticos de forma não consensual, em especial das mídias produzidas e adquiridas por meio de relações afetivas. O objetivo principal é definir uma tipificação penal coesa e coerente com a grave exposição da intimidade e capaz de reparar ao menos parte do dano sofrido.
Para tanto a discussão se dá sobre o conceito de Revenge Porn – Pornografia de Vingança – e suas consequências, discutindo em quais tipos penais já descritos pelo ordenamento pátrio a conduta encontra conformação. Após, passamos para uma análise crítica dos Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional direcionados à criminalização da exposição da intimidade no meio virtual; nesse ponto a análise mais profunda será dada acerca do texto aprovado na Câmara dos Deputados em 21 de fevereiro de 2017 do Projeto de Lei n° 5.555/2013 de João Arruda (PMDB/PR).
2. REVENGE PORN
A ameaça de se divulgar conteúdo íntimo para obtenção de alguma vantagem não é uma conduta delituosa muito recente. Mas o que outrora fora utilizado de modo anômalo como instrumento para prática de extorsão, tem hoje ampliados a forma e o contexto de atuação. Isso se deve a fácil e rotineira produção de conteúdo virtual e a célere disseminação destas informações pela internet por meio de, principalmente, redes sociais.
Nesse cenário uma nova perspectiva tem sido oferecida à divulgação de conteúdo íntimo. Frente à agilidade de envio e recebimento de dados, transitando rapidamente pela internet, o ataque à imagem com intento de imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação (Difamação) e/ou lhe ofender a intimidade ou decoro (Injúria) por meio da propalação de mídias produzidas no seio da intimidade tem sido cada vez mais recorrente na atualidade. Casos como o de Francyelle dos Santos e Carolina Portaluppi são noticiados quase que diariamente, e causam danos incalculáveis para as vítimas.
O conceito de Revenge Porn surge nesse contexto. O termo estrangeiro – traduzido como Pornô de Vingança – é utilizado no Brasil para se referir as imagens e filmes de conteúdos pornográficos adquiridos de maneira consensual, porém distribuídos sem o consentimento da vítima. Acerca dessa definição cabe ressaltar a ressalva feita pela professora Mary Anne Franks4. Sob o seu prisma de análise esse conceito é exíguo por não abranger a distribuição de conteúdo íntimo adquirido sem o consentimento da vítima, pois, não raro, o acesso a essas informações se dá sem a anuência do proprietário. Basta evocar o caso Carolina Dieckmann no qual informações de cunho pessoal da atriz foram obtidas sem seu assenso por hackers que as utilizaram ulteriormente para extorqui-la. Portanto, Franks (2013) sugere que “um termo mais preciso é pornografia não consensual, definida como a distribuição de imagens sexuais de indivíduos sem seu consentimento” (tradução do autor).
Pertine-nos, nesse ponto, valer-nos de certo preciosismo para definição categórica da conduta em comento. Isso porque a pornografia não consensual criou dimensões tão sobressalentes que se tornou um gênero e suas formas de se apresentar passaram tornaram-se espécies desse gênero. Rogério Sanches Cunha (2017)5, promotor de justiça do estado de São Paulo e professor de Direito Penal, em uma recente publicação no seu canal do YouTube, aborda uma vertente da pornografia não consensual e as figuras típicas em que se enquadram. Ele analisa a nova conduta denominada pela doutrina de Sextorsão. Ela se configura na ameaça de divulgação de conteúdo íntimo, adquirido por meios lícitos ou não, com o fito de (a) obtenção de vantagem econômica, (b) satisfação da lascívia com conjunção carnal não consentida ou prática de ato libidinoso e (c) obrigar a fazer algo não permitido ou não ordenado por lei. Rogério Sanches explica que na hipótese “a” a exigência de vantagem econômica encontra enquadramento na Extorsão, descrita pelo art. 158 do Código Penal. Na hipótese “b” a exigência de conjunção carnal ou prática de ato libidinoso encontra enquadramento no Estupro, descrito no art. 213 do Código Penal. E, de forma residual, ausente elementos que atentem contra o patrimônio ou a dignidade sexual, o que implica a hipótese “c”, a conduta encontra enquadramento no Constrangimento Ilegal, descrito no art. 146 do Código Penal. Ou seja, é uma ação que, de acordo com o caso concreto, encontra conformação com vários tipos de delitos.
O revenge porn, não encontra enquadramento em nenhuma dessas situações. Pois, para sua caracterização, não há a ameaça ou exigência de alguma vantagem, seja patrimonial ou sexual. O agente ativo simplesmente dá publicidade ao conteúdo íntimo para vingar-se, de algo que lhe causou inconformismo, atacando, portanto, a honra, a dignidade e o decoro da vítima. A agressão visa lesar bem jurídico distinto daqueles possíveis de serem maculados com a sextorsão.
Não obstante essa observação, destaque especial deve ser conferido à disseminação nas redes sociais, por uma das partes de uma relação encerrada, de conteúdo adquirido ou produzido no convívio íntimo por inconformismo com o término do relacionamento, ou outro motivo qualquer, e valendo-se, à época, da confiança que lhe fora atribuída. Sob essa égide, o revenge porn é uma espécie do gênero pornografia não consensual – que traz consigo vários outros delitos distintos – utilizado com o único objetivo de se vingar, finda a relação, através da exposição da outra parte. É possível, com essa reflexão, descrever três elementos essenciais para a configuração do revenge porn, a saber: a) o delito deve ser praticado sem a exigência de qualquer vantagem, pois, nesse caso, deveria ser analisado sob o crivo da sextorsão; b) é necessário que o agente ativo tenha relações íntimas, ou as tenha tido, com a vítima – namorado, cônjuge, companheiro, etc; c) a posse do conteúdo deve ter ocorrido no âmbito dessa relação. Presentes esses três elementos, é descaracterizada qualquer outra forma de pornografia não consensual restando apenas o enquadramento no revenge porn.
As consequências dessa forma de agredir são drásticas e perenes, pois a revelação da intimidade da vítima no ambiente virtual dificilmente será revertida e reconduzida à normalidade, dado o alcance e magnitude da internet. Esse quadro é atenuado por não existir ainda no ordenamento jurídico pátrio tipificação dessa conduta, levando o judiciário a analisar os casos concretos sob o crivo de outros tipos penais com cominações de penas muitas vezes aquém dos danos causados. Isso contribui para a majoração da sensação de impunidade e de baixo teor delitivo desses atos, o que fomenta e encoraja atitudes dessa natureza.
Um estudo realizado pela ONG Cyber Civil Rights Initiative[6] (CCRI) em 2013 indica que cerca de 90% das vítimas de pornografia não consensual são mulheres. E encontramos certa lógica para esses números se examinarmos o tabu ainda reverberante na sociedade sobre a sexualidade feminina. Coexistem no âmago social, de modo até hipócrita, uma rasa antipatia à pornografia não consensual e um profundo juízo acerca da conduta da mulher que se deixou filmar ou fotografar. Conscientemente a coletividade deixa recair o entejo sobre a figura feminina e ameniza o tamanho da ofensa causada pela divulgação de seu conteúdo íntimo por outrem. A liberdade sexual feminina é mitigada recaindo sobre seus ombros o dever de se “valorizar” perante a sociedade, e passa despercebida a conduta delituosa cometida por terceiro que se valeu de relativa confiança e cumplicidade para adquirir o conteúdo e posteriormente o propalar em meios virtuais.
O debate sobre a inércia falocrática da sociedade e moral contemporânea em detrimento das liberdades femininas nos foge ao tema, mas não podemos denegar o percentil de 90% das vítimas de pornografia não consensual ser do sexo feminino e, portanto, necessitar de medidas protetivas específicas quanto essas práticas. Nesse sentido, duas peculiaridades carecem ser destacadas e discutidas antes de se propor ao debate mais profícuo: compreender melhor as infrações cometidas em meio virtual e as consequências do revenge porn.
3. OS DELITOS INFORMÁTICOS
A popularização da internet e a facilidade de acesso à informática trazem consigo, inevitavelmente, uma nova seara para o cometimento de abusos e excessos. Tais condutas podem se caracterizar por ataques a bens jurídicos das mais diversas naturezas como honra, patrimônio, inviolabilidade de segredos, propriedade imaterial, entre outros.
O surgimento da internet trouxe em seu bojo um quê de “realidade paralela” onde regras e normas positivadas pelo direito vigente são rechaçadas e não há limitação ou imputação das ações cometidas nesse cenário, principalmente no que se refere aos tipos penais, pois o princípio constitucional da legalidade exige de forma clara a tipificação da conduta para considera-la crime. Essa consciência pueril e equivocada – ou falta dela – logo encontrou cerceamento para os excessos cometidos no ambiente virtual.
Nesse sentido destaco a exposição de Allan E. V. Ferreira7 (2010, p. 16), Juiz Federal Substituto da 13ª Vara Federal de Pernambuco. Em suas palavras a necessidade de tipificação anterior “não quer dizer que a atual legislação penal não permita a cominação de pena a esses delinquentes, uma vez que dentro dos contornos constitucionais e legais, cabe ao interprete buscar a leitura da norma conformada com a nova realidade social”. Sendo assim, a utilização de um novo modus operandi para a prática de conduta delituosa já descrita como crime prescinde da redefinição da figura típica. Logo, injuriar alguém no meio virtual é tanta injúria quanto fazê-la no meio concreto e se sujeita, de igual modo, às mesmas sanções legais. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendimento nesse sentido e já se manifestou a respeito. No julgamento de uma publicação de cena de sexo infanto-juvenil (E.C.A., art. 241), mediante inserção em rede BBS/Internet de computadores a decisão do excelso tribunal é que “não se trata no caso, pois, de colmatar lacuna da lei incriminadora por analogia: uma vez que se compreenda na decisão típica da conduta criminada, o meio técnico empregado para realizá-la pode até ser de invenção posterior à edição da lei penal: a invenção da pólvora não reclamou redefinição do homicídio para tornar explícito que nela se compreendia a morte dada a outrem mediante arma de fogo” (STF – HC 76689/PB – Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE – DJ 06-11-1998 PP-00003 EMENT VOL-01930-01 PP-00070).
Entretanto, peculiaridades penais e processuais carecem de esclarecimento dados a inexistência de limitação fronteiriça e o amplo alcance dos delitos informáticos. Nessa direção surgiu em 2001 na Hungria a Convenção de Budapeste, celebrada pela comunidade europeia, que tipifica os principais crimes cometidos pela internet. Nas palavras do preâmbulo trata-se de “uma política criminal comum, com o objetivo de proteger a sociedade contra a criminalidade no ciberespaço (...) reconhecendo a necessidade de uma cooperação entre os Estados e a indústria privada no combate à cibercriminalidade, bem como a necessidade de proteger os interesses legítimos ligados ao uso e desenvolvimento das tecnologias da informação”8.
Augusto Rossini, apud Allan E. V. Ferreira (2010)9, “registra que a maioria das sugestões de direito material existentes na Convenção de Budapeste já está tipificada no Brasil, restando poucas adaptações para que se possa aderir a ela (2004, p. 248)”. Portanto, no Brasil algumas legislações também surgiram nessa direção. Dois clássicos exemplos podem ser elucidados: a Lei n° 12.737 de 30 de Novembro de 2012 que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, altera o Código Penal e dá outras providências; e a Lei n° 12.965 de 23 de Abril de 2014 que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil – Marco Civil da Internet. Existem outras normas mais específicas que também regulam a utilização da internet como, por exemplo, o art. 241-A da Lei n°8.069 de 13 de Julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, entre vários outros.
O supracitado artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial, merece destaque no estudo em tela por relativa similaridade com a temática aqui abordada. Frente à necessidade específica de proteção integral à criança e adolescente contra abusos pornográficos em meio virtual o legislador ordinário tipificou de forma específica o delito de – genericamente – produzir e/ou distribuir conteúdo com cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente. Tal medida visa desencorajar a prática de criação e difusão da pornografia infantil diante da indispensável atenção especial que a menoridade demanda no que se refere a abusos sexuais e acesso a esse tipo de conteúdo na rede.
Em situação párea se encontra a mulher relativamente à pornografia não consensual e em especial à prática de revenge porn. Faz-se necessária, nessa atmosfera, a criação de medidas capazes de proteger e desestimular essas condutas e, sui generis, a dilapidação da moral feminina e subjugação de sua condição frente à sociedade que ainda tem latentes ressonâncias machistas. A situação especial das mulheres já foi reconhecida pelo direito pátrio ao ser editada a Lei n° 11.340 de 07 de Agosto de 2006 que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conhecida como Lei Maria da Penha. Contudo, os abusos cometidos no ambiente virtual com objetivo de dirimir e ridicularizar a figura feminina pela exposição da sua imagem reclamam medidas de proteção da sua individualidade e intimidade mais efetivas, principalmente quando realizadas em situações capazes de caracterizar a violência doméstica.
4. AS CONSEQUÊNCIAS DA PORNOGRAFIA NÃO CONSENSUAL
O estudo realizado em 2013 pela CCRI10 indica que 93% das vítimas afirmaram já ter sofrido problemas emocionais em decorrência do publicização de sua vida íntima. Não raro, o processo de ridicularização da pessoa é agravado com a divulgação conjunta do conteúdo íntimo a informações que permitam localizar a vítima. Dados como nome completo, endereço, telefone, e-mail e até número do seguro social são divulgados no afã de maximizar a exposição da pessoa e perpetrar o a degradação social até os mais próximos ambientes de convívio da vítima.
O alcance e poder devastador desse delito são incalculáveis. O Marco Civil da Internet no Brasil prevê a possibilidade de o conteúdo publicado ser retirado do ar pelas empresas de forma imediata assim que solicitado pela vítima. Ainda obriga o armazenamento dos registros de conexão do usuário. Contudo, essas medidas não são suficientes para garantir a completa erradicação do conteúdo exibido na internet, pois a retirada do ar não implica a exclusão cabal das mídias armazenadas em todos os dispositivos, podendo mais ou menos hora voltar à tona em qualquer parte do mundo.
As sequelas emocionais, a restrição da liberdade, a exposição íntima, entre tantos outros impactos imateriais, acarretam para as vítimas uma depreciação profunda e duradoura. Casos de suicídio – como o da jovem de 17 anos Júlia Rebeca dos Santos, na cidade de Parnaíba – oferecem uma visão real da dimensão e do nível de agressividade envolvido nessa forma de delito. A CCRI11 identificou que 3% das vítimas de pornografia não consensual chegam ao extremo de tirar a própria vida.
Além de consequências imateriais há também sequelas materiais. Na mesma pesquisa a CCRI informa que 8% dos participantes deixaram o emprego – ou a vida escolar – e 6% foram desligados das empresas em que trabalhavam. Ainda, 13% das vítimas afirmaram dificuldades para conseguir emprego após a divulgação de seu conteúdo íntimo nas redes sociais. Rose Leonel12, vítima de revenge porn e fundadora da ONG Marias da Internet, em entrevista à jornalista Gabriela Varela da revista Época, afirma ter perdido o vínculo empregatício após a exposição da sua intimidade, tamanha a força do ostracismo sofrido por ela.
Não há uma forma objetiva e clara de se mensurar o tamanho dos danos que podem advir com a pornografia não consensual, sejam emocionais, econômicos, ou de qualquer outra natureza. Deve se destacar ainda que a exposição não é peremptória, pois se protrai no tempo, bastando, para isso, existir um único dispositivo eletrônico no qual o conteúdo armazenado não tenha sido excluído para haver chances reais de ressurgimento da ridicularização. É praticamente impossível garantir a cessação dos efeitos decorrentes com essa prática.
É significativo também dar destaque a figura da ação de terceiros que repassam mídias de pornografia não consensual. A prática delitiva não é exaurida quando da publicização do conteúdo, mas é reexecutada a cada novo compartilhamento; isso corrobora para prolongar o sofrimento e a condição vexatória da vítima. Fato análogo pode ser observado na propagação do crime de Difamação (art. 139 do Código Penal). Nesse sentido Fernando Capez (2010, p. 300)13 explica que “a doutrina firmou entendimento no sentido de que o propalador, na realidade, comete nova difamação”.
O direito brasileiro tem entendido a prática de revenge porn como ofensa à honra, tipificando a conduta como difamação e injúria, salvo se houver enquadramento no crime de extorsão, estupro ou constrangimento ilegal14. A jurisprudência mais citada que converge nessa direção é a prolatada pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná. In verbis. “3. Comete os crimes de difamação e de injúria qualificadas pelo emprego de meio que facilita a sua propagação – arts. 139 e 140, c.c. 141, II do CP – o agente que posta na Internet imagens eróticas e não autorizadas de ex-namorada. (Apelação Criminal Nº 756.367-3, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Paraná, Relator: Lilian Romero, Julgado em 07/07/2011)”. O precedente trazido por essa decisão é imperioso, pois indica, de uma vez por todas, a conduta de publicização de imagens e/ou vídeos eróticos como delito punível pelo direito pátrio.
Cabe nesse ponto inserir novamente a discussão levantada por Rogério Sanches Cunha (2017)15. Em outra recente publicação no seu canal do YouTube, ele aborda o revenge porn e discute em quais fatos típicos a conduta encontra subsunção. Nesse vídeo, ele defende que, em se tratando de revenge porn, quando há, em decorrência da exposição social, o surgimento de quadro depressivo ou qualquer outra patologia psíquica o delito deve ser entendido como lesão corporal e não apenas como ofensa à honra – seja difamação ou injúria. Ele defende que o delito de lesão corporal, ao ser descrito como ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, abrange três dimensões da saúde: física, fisiológica e mental. Em seu livro Rogério Sanches (2009, p. 46-47)16 aprofunda o tema e define o objeto jurídico da norma repressora descrita no art. 129 de Código Penal – Lesão Corporal – como “a incolumidade pessoal do indivíduo, protegendo-o a saúde corporal, fisiológica e mental (atividade intelectiva, volitiva e sentimental)”. Sendo assim, qualquer conduta capaz de afetar alguma das três dimensões é passível de ser enquadrada como lesão corporal.
Nessa mesma linha de raciocínio há o posicionamento do professor Guilherme de Sousa Nucci (2010, p. 638)17. Ele afirma que em se tratando de lesão corporal “para a configuração do tipo é preciso que a vítima sofra algum dano ao seu corpo, alterando-se interna ou externamente, podendo, ainda, abranger qualquer modificação prejudicial a sua saúde, transfigurando-se qualquer função orgânica ou causando-lhe abalos psíquicos comprometedores”. Logo, causando avaria nas funções psíquicas em decorrência da pornografia não consensual, o delito em análise transcende a seara de ofensa à honra e alcança a incolumidade pessoal da vítima.
Independentemente da posição adotada pela justiça e apesar de já reconhecida a conduta criminosa do revenge porn o jus puniendi do Estado ainda não alcança os agressores da forma que deveria, pois o Código Penal reserva para os crimes contra a honra, em regra, ação privada (C.P. art. 100 c.c. art. 145) e comina penas relativamente brandas pelo baixo teor ofensivo dessas condutas, não entendendo como necessária, para esses agressores, a restrição de liberdade. Ainda deve ser destacado que as indenizações morais pela exposição da imagem são processadas e julgadas na esfera civil, em outro litígio. Essa quantidade de ações judiciais em esferas distintas torna morosa, exaustiva e demasiada onerosa a pretensão das vítimas de levar ao conhecimento da justiça a agressão sofrida. No entanto, merece ser destacado que, em se tratando de ações indenizatórias, o entendimento da justiça tem sido no sentido de considerar o revenge porn como “ato ilícito indenizável consistente na exposição sem autorização de foto íntima em rede social de grande porte, sendo impossível precisar o tamanho da exposição sofrida pela autora. Dispensada a comprovação efetiva do dano, sendo suficiente a comprovação do ato ilícito e nexo de causalidade”. PRELIMINAR AFASTADA. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70052257532, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 12/12/2012).
Merece ser ressaltado novamente nesse ponto da discussão os dados trazidos pela CCRI18 em 2013, apontando cerca de 90% das vítimas de pornografia não consensual sendo do sexo feminino. O art. 14 da lei 11.340 atribui aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher competência cível e criminal, julgando ambos os méritos em um mesmo processo. Também afasta a necessidade de representação da vítima para a propositura da ação penal pelo Ministério Público nos crimes de lesão corporal leve ou culposa. Sob essa ótica, e assumindo a necessidade de proteção das mulheres à essa nova modalidade delituosa, torna-se indubitável a imprescindibilidade de se tratar a matéria sob a luz da Lei n° 11.340 de 2006, pois desse modo as ações cíveis e penais se processariam concomitantemente no mesmo trâmite e as sequelas psicológicas oriundas da exposição dispensariam oferecimento de representação como requisito de procedimentalidade do Ministério Público – tomando como parâmetro as considerações do professor Rogério Sanches19. Inegavelmente, sob o crivo dessas consequências, a prática do revenge porn tenderia a ser desestimulada.
No entanto, para a criminalização da conduta, é necessário fazer considerações no afã de esclarecer as dicotomias sobre qual tipo penal o revenge porn encontra melhor enquadramento: difamação, injúria ou lesão corporal.