A inconstitucionalidade da pertinência temática para os legitimados especiais do controle abstrato de normas

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23/03/2017 às 11:03
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O artigo visa o aprofundamento do estudo sobre a pertinência temática para alguns legitimados para o controle abstrato de normas. O questionamento principal é saber sobre a possibilidade jurídica da previsão, por meio exclusivo da jurisprudência do STF.

1 - INTRODUÇÃO

O tema da pertinência temática para os legitimados pelo art. 103, da Constituição Federal, para o controle abstrato de normas, trata-se de um tema que não tem suscitado algumas reflexões no seio da doutrina constitucionalista.

O presente artigo visa buscar elementos que possam embasar a tese de inconstitucionalidade da construção jurisprudencial da pertinência temática do rol taxativo e contido no art. 103, da CF.


2 – A PERTINÊNCIA TEMÁTICA COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE

Segundo o art. 103 da Constituição Federal, com redação dada pela EC nº 45/2004, podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (I) o Presidente da República; (II) a Mesa do Senado Federal; (III) a Mesa da Câmara dos Deputados; (IV) a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (V) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (VI) o Procurador-Geral da República; (VII) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (VIII) partido político com representação no Congresso Nacional; (IX) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

A Lei n. 9868/99, por meio de seu art. 2º, reproduz a relação de legitimados ativos para o controle abstrato, conforme o teor do art. 103 da CF. Por seu turno, a Lei n. 9.8882/99, que trata da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, em seu art. 2º, inc. I, dispõe que podem propor arguição de descumprimento de preceito fundamental os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade.

Para alguns desses legitimados para o controle concentrado de normas, o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua jurisprudência, construiu o que ele próprio chamou de pertinência temática, sendo isto, nas palavras da lavra do Min. CELSO DE MELLO:

O requisito da pertinência temática – que se traduz na relação de congruência que necessariamente deve existir entre os objetivos estatutários ou as finalidades institucionais da entidade autora e o conteúdo material da norma questionada em sede de controle abstrato – foi erigido à condição de pressuposto qualificador da própria legitimidade ativa ad causam para efeito de instauração do processo objetivo de fiscalização concentrada de constitucionalidade. (ADI 1157-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-12-94, Plenário, DJ de 17-11-06) (g.n)

Diante disso, estão previstas duas “classes” de legitimados, a dos legitimados universais e a dos legitimados especiais.

Assim, os legitimados especiais são os que necessitam demonstrar a pertinência temática, ou seja, a relação de “adequação entre o interesse específico para cuja tutela foram constituídos e o conteúdo da norma jurídica argüida como inconstitucional”, estando estes descritos nos incs. IV, V e IX, do art. 103, ou seja, as Mesas das Assembleias Legislativas e Câmara Legislativa (ADI 1307, Rel. Min. FRANCISCO RESEK) e Governadores de Estado e Distrito Federal (ADI 902, Rel. Min. MARCO AURÉLIO) – com a necessidade de que a ação direta de inconstitucionalidade seja admissível desde que a lei ou ato impugnado diga respeito à entidade federativa respectiva (ADI 733, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE) – , bem como as confederações sindicais (ADI 1151, Rel. Min. MARCO AURÉLIO) e entidades de classe de âmbito federal (ADI 305, Rel. Min. PAULO BROSSARD) – sendo que a ação direta de inconstitucionalidade é admissível desde que a lei ou ato normativo impugnado diga respeito aos filiados ou associados respectivos (ADI 1464, Rel. Min. MOREIRA ALVES) -, com fulcro nos incs. IV, V e IX, do art. 103 da CRFB e no art. 2º da Lei nº 9.868/99. Assim, para a jurisprudência do STF, “a legitimidade ativa destes, para a ação direta de inconstitucionalidade, vincula-se ao objeto da ação, pelo que deve haver pertinência da norma impugnada com os objetivos do autor da ação” (ADI 1507, Rel. Min. CARLOS VELLOSO).[1]

Em outra esteira, para os legitimados ditos “universais” não é requerido demonstrar qualquer relação institucional com a matéria impugnada, por meio de requisito de admissibilidade, “pois o interesse genérico em preservar a supremacia da Constituição decorre das suas atribuições institucionais.”[2] Assim, são legitimados universais o Presidente da República, as Mesas do Senado Federal e Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos com representação no Congresso Nacional (ADI 1396, Rel. Min. MARCO AURÉLIO), com fundamento nos incs. I, II, III, VI, VII e VIII do art. 103 da Constituição Federal.

Assim, a pertinência temática nos termos apresentados foi construída jurisprudencialmente, visto que a Constituição, ou qualquer norma, dispõe algo nesse sentido. Em palavras pretensiosamente mais claras, o Supremo Tribunal Federal, por meio de suas decisões, erigiu a necessidade de comprovação da pertinência temática a um requisito de admissibilidade para a proposição de ações no controle abstrato de normas, em relação a alguns legitimados ativos.

Diante disso, um questionamento pode ser feito: poderia o Supremo Tribunal Federal prever um requisito de admissibilidade que nem a norma suprema do nosso país prevê? A resposta só pode ser uma: não!


3 – A INCONSTITUCIONALIDADE DO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA

O Supremo Tribunal Federal, ao querer a comprovação da pertinência temática, como um requisito de admissibilidade, tem atuado como legislador positivo, substituindo, de modo temerário, o Congresso Nacional, ou mesmo o Poder Constituinte.

Bem, se a Constituição não faz qualquer exigência para os legitimados ativos para o controle abstrato de constitucionalidade de normas, não poderia o STF fazê-la. Até mesmo uma lei que preveja o requisito da pertinência temática seria, a nosso sentir, de constitucionalidade duvidosa.

A propósito do tema, GILMAR MENDES pondera que:

Cuida-se de inequívoca restrição ao direito de propositura, que, em se tratando de processo de natureza objetiva, dificilmente poderia ser formulada até mesmo pelo legislador ordinário. A relação de pertinência assemelha-se muito ao estabelecimento de uma condição de ação – análoga, talvez, ao interesse de agir -, que não decorre dos expressos da Constituição e parece ser estranha à natureza do sistema de fiscalização abstrata de normas. (g.n)

Por isso, a fixação de tal exigência parece ser defesa ao legislador ordinário federal, no uso de sua competência específica.

Assinale-se que a necessidade de que se desenvolvam critérios que permitam identificar, precisamente, as entidades de classe de âmbito nacional não deve condicionar o exercício do direito de propositura da ação por parte das organizações de classe à demonstração de um interesse de proteção específico, nem levar a uma radical adulteração do modelo de controle abstrato de normas. Consideração semelhante já seria defeituosa porque, em relação à proteção jurídica dessas organizações e à defesa dos interesses de seus membros, a Constituição assegura o mandado de segurança coletivo (Art. 5º, LXX, b), o qual pode ser utilizado pelos sindicatos ou organizações de classe, ou, ainda, associações devidamente constituídas há pelo menos um ano.

Uma tal restrição ao direito de propositura, além de não se compatibilizar, igualmente, com a natureza do controle abstrato de normas, criaria uma injustificada diferenciação entre os entes ou órgãos autorizados a propor a ação, diferenciação essa que não encontra respaldo na Constituição.[3]

Em sentido aparentemente contrário à jurisprudência firmada no sentido da necessidade da pertinência temática, o STF, na ADI 1254-MC-AgR, da relatoria do Min. CELSO DE MELLO, entendeu que o controle abstrato de normas é de índole objetiva, não podendo qualquer pessoa, que se sinta prejudicado pela norma atacada, ser legitimado para a impulsão do controle abstrato, mesmo que tenha legítimo interesse:

Não se discutem situações individuais no âmbito do controle abstrato de normas, precisamente em face do caráter objetivo de que se reveste o processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade. O círculo de sujeitos processuais legitimados a intervir na ação direta de inconstitucionalidade revela-se extremamente limitado. Pois nela só podem atuar aqueles agentes ou instituições referidos do art. 103 da Constituição, além dos órgãos de que emanaram os atos normativos questionados. A tutela jurisdicional de situações individuais – uma vez suscitada controvérsia de índole constitucional – há de ser obtida na via de controle difuso de constitucionalidade, que, supondo a existência de um caso concreto, revela-se acessível a qualquer pessoa que disponha de legítimo interesse (CPC, art. 3º). (g.n)

Ou seja, no julgado logo acima citado, o STF, a nosso ver, acertadamente considera o controle abstrato de normas um processo objetivo, que dentre outras características, não se têm “partes” no sentido processual mais técnico. Todavia, quando o STF prevê a necessidade de comprovação da pertinência temática, não faz outra coisa se não prever um requisito de processo subjetivo, qual seja, a comprovação de que os efeitos da norma guerreada irão prejudicar o legitimado constitucional.

Ora, se uma norma jurídica é atacada por meio do controle abstrato, significa que ela goza dos requisitos de abstratividade, generalidade e efeito erga omnes. Contudo, o STF justamente requer que os “legitimados especiais” justifiquem a sua legitimação por meio de comprovação de efeitos concretos e individuais.

Com efeito, uma norma inconstitucional não só prejudica um específico grupo ou grupo temático, ela desafia todo um ordenamento jurídico e deve ser banida do sistema normativo pátrio. Sabiamente, a Constituição Federal, ao prever um largo rol de legitimados para a proposição das ações diretas, no controle concentrado de constitucionalidade, fez com vistas a pluralizar a possibilidade de proposição desse tipo de ação.

A respeito da pluralização dos intérpretes da Constituição, PETER HÄBERLE afirma que:

Não se conferiu até aqui maior significado à questão relativa ao contexto sistemático em que se coloca um terceiro (novo) problema relativo aos participantes da interpretação, questão que, cumpre ressaltar, provoca a práxis em geral. Uma análise genérica demonstra que existe um círculo muito amplo de participantes do processo de interpretação pluralista, processo este que se mostra muitas vezes difuso. Isto já seria razão suficiente para a doutrina tratar de maneira destaca esse tema, tendo em vista, especialmente, uma concepção teórica, científica e democrática. A teoria interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma “sociedade fechada”. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida em que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados.

Se se considera que uma teoria constitucional deve encarar seriamente o tema “Constituição e realidade constitucional” – aqui se pensa na exigência de incorporação das ciências sociais e também nas teorias jurídico-funcionais, bem como nos métodos de interpretação voltados para atendimento do interesse público e do bem-estar geral –, então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os agentes conformadores da “realidade constitucional.[4]

GILMAR MENDES, ainda sobre o tema proposto por PETER HÄBERLE, aduz:

Embora as modernas Constituições dos países que adotam a jurisdição constitucional consagrem a democracia e o princípio da soberania popular como princípios básicos, dispõem elas em geral sobre a forma de manifestação da vontade popular e sobre a atuação dos órgãos representativos dessa vontade. Estes devem agir dentro de limites prescritos, estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos. Essas Constituições pretendem, portanto, que os atos praticados por esses órgãos de representação possam ser objeto de crítica e controle.[5]

Assim, o interesse geral de guarda da Constituição é validado pela tese da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, em que todos podem pugnar pela ordem no sistema normativo por meio de um procedimento pré-estabelecido e sem surpresa jurisprudencial.

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Aliás, a jurisprudência de um Tribunal pode ser alterada, diga-se, em qualquer posterior julgamento pela simples mudança de entendimento da matéria, o que pode gerar sérios prejuízos ao ordenamento em decorrência do desrespeito ao princípio-informador da segurança jurídica pelo próprio STF.

CLÉMERSON MERLIN CLÉVE, a par do tema, revela que “a pertinência temática é um sucedâneo do interesse de agir do processo subjetivo”[6]. ANDRÉ RAMOS TAVARES arremata que essa junção “é extremamente prejudicial à clara compreensão do processo de índole objetiva.” Ou seja, o STF vem aplicando/criando normas processuais no controle abstrato de normas que são alheias ao processo objetivo.[7]

Ao que parece, de acordo com a jurisprudência em relação à pertinência temática, o STF acaba criando uma espécie de “interesse processual objetivo”. Todavia, no magistério de LUIZ FUX, o interesse de agir revela-se como um “direito subjetivo”:

O interesse, como conceito genérico, representa a relação entre um bem da vida e a satisfação que o mesmo encontra em favor de um sujeito. Esse interesse assume relevo quando “juridicamente protegido” fazendo exsurgir o “direito subjetivo” de natureza substancial. Ao manifestar seu interesse, o sujeito de direito pode ver-se obstado por outrem que não reconhece a sua posição jurídica. Em face da impossibilidade de submissão do interesse substancial alheio ao próprio por via da violência, faz-se mister a intervenção judicial para que se reconheça, com a força da autoridade, qual dos dois interesses deve sucumbir e qual deles deve sobrepor-se. (...)

‘A situação jurídica que reclama a intervenção judicial, sob pena de um dos sujeitos sofrer um prejuízo em razão da impossibilidade de autodefesa é que caracteriza o interesse de agir. É que, como já se afirmou em bela sede doutrinária, a “função jurisdicional não pode ser movimentada sem que haja um motivo”.[8]

Nesse sentido, o fato de uma lei ser inconstitucional e a Constituição não determinar qualquer balizamento para a atuação dos legitimados “especiais” descritos no art. 103 é suficiente como motivo para se mover a máquina jurisdicional suprema do nosso país.

A guarda da Constituição cabe precipuamente ao STF. Mas não só! Não cabe à nossa Suprema Corte definir quem pode defender mais ou menos a nossa Constituição, se o Poder Constituinte assim não o fez.

Ademais, se fosse possível e tolerável a pertinência temática para a legitimidade da atuação ativa no controle abstrato de normas, qualquer pessoa que comprovasse a relação causa e efeito para com a norma atacada estaria legitimado. Contudo, esse entendimento como visto acima nas palavras do Min. CELSO DE MELLO, na ADI 1157-MC, não deve prosperar. Até porque segundo o próprio STF, em reiterados julgado entende, a nosso ver, acertadamente, que o rol do art. 103 é taxativo:

Os legitimados para propor argüição de descumprimento de preceito fundamental se encontram definidos, em numerus clausus, no art. 103 da Constituição da República, nos termos do disposto no art. 2º, I, da Lei n. 9.8882/99. Impossibilidade de ampliação do rol exaustivo inscrito na Constituição Federal. Idoneidade da decisão de não-conhecimento da ADPF (ADPF 75-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 3.5.06, Plenário, DJ de 2.6.06)

Ou seja, a taxatividade do rol contido no art. 103, da CF, deve ser o único balizador dos sujeitos ativos do controle concentrado normativo brasileiro.

Não ousamos, contudo, negar a sedução jurídica que a tese da pertinência temática pode nos causar, mas acontece que o STF, embora seja a nossa Corte máxima, está sujeita a regras constitucionais, não podendo, de forma alguma, legislar no sentido de estabelecer qualquer requisito processual, e não cansamos de repetir, que a Constituição não o fez.[9]

Para a pertinência temática ser possível, teria que se seguir, por exemplo, o mesmo processo legislativo do requisito da repercussão geral, que é um requisito de índole constitucional, efetivado com a EC n. 45/2004.

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Sobre o autor
Aderruan Tavares

Assessor-Chefe de Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Mestrando e Pós-Graduado em Constituição e Sociedade pela Escola de Direito de Brasília/IDP. Email: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo originalmente publicado na Revista Direito Público (Porto Alegre), v. 48, p. 106-114, 2012 e no Informativo Jurídico in Consulex, v. 26, p. 4-7, 2012.

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