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A crise da democracia em tempos de globalização

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Sumário: 1 Introdução. 2 Uma aproximação ao conceito de Democracia: A democracia como cenário político. 2.1 A Democracia em sua gênese histórica e territorial: autolimites à visão pragmático-romântica de seus defensores. 3 O fenômeno da Globalização: uma aproximação ao tema. 3.1 A Globalização e a Democracia: Contradições e Interconexões. 4 Conclusão. 5. Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO.

"Deve-se entender bem que não é o simples fato de viver no presente que faz alguém ser moderno, pois neste caso tudo o que vive hoje seria moderno. Só é moderno aquele que tem profunda consciência do presente". CARL GUSTAV JUNG.

É perceptível que estamos vivendo um tempo de grande crise. Econômica, política, social e conceitual. Os efeitos desse momento de transformação e ruptura são tão marcantes, que nenhum espaço parece escapar incólume a essas mudanças que tornam a própria linguagem um campo limitado e, sem medo de errar, esgotável em suas fontes de reordenação.

É, assim, com o espaço político. Em toda a sua extensão se pode perceber uma fragmentação em seus alicerces, pois que ele está seduzido pela ruptura dos velhos paradigmas que, ao longo do século passado, fizeram-no viver o seu apogeu. Dentre os elementos que o formam e que sofrem essa crise, está a figura da democracia.

Mas o simples fato de se constatar a presença do signo da crise não significa, necessariamente, um resultado negativo. É preciso romper com as tradicionais visões maniqueístas do pensamento. Nesse sentido, a crise é aqui percebida como um instrumento que estimula a transformação, pois que nela há a presença de uma potência de significado positivo, pois que obriga aos institutos do vasto campo social, a desenvolver uma eterna capacidade de se transformar. É, assim, com a democracia, principalmente a partir da década de 80, do século XX.

Desde ao final dos anos 80, a democracia presenciou, enquanto campo privilegiado do espaço político, a áurea da vitória inconteste. Das ditaduras militares da América Latina, até aos regimes socialistas da Europa Oriental, pôde-se perceber o triunfo de sua catequese.

Entretanto, quase que instantaneamente, iniciou-se o influxo de uma crise que tem exaurido a sua capacidade de resposta, criando um paradoxo1 ao apogeu que foi por ela alcançado.

Repita-se: o paradoxo é o resultado da vitória que a democracia alcançou a partir do momento em que o espaço socialista se fragmentou, pois com o fim desse sistema político, o discurso democrático, obrigado a se confrontar consigo mesmo, acabou por se perder em suas próprias contradições e limitações.

Nesse sentido, a democracia vive com intensidade a mesma dificuldade que o Estado e os seus poderes, que a soberania e que a cidadania estão a atravessar. Experimentada como forma política que pode constituir alguma alternativa para superar a crise atual, ela não tem conseguido responder-se enquanto solução uniforme e perceptível, o que vem criando um certo sentimento de imobilidade e desencanto tanto aos setores da filosofia, quanto ao universo do senso comum. 2

Se junta a esse cenário de dificuldades, os efeitos do instituto da globalização, que ao mesmo tempo em que oferece saídas para a crise sentida pela democracia (bem como para o conjunto do campo político), aprofunda novas dificuldades que desafiam o projeto democrático, e, com tal intensidade são essas dificuldades, que para muitos, obriga esse projeto a uma redefinição e reafirmação constantes.

Bem assim, o presente trabalho procura demonstrar que a crise pressentida pela democracia, não pode estar determinada pela figura da globalização, pois que essa não é a causa primeira, mas, sim, deve ser buscada dentro dela mesma – o que cria as condições para o paradoxo em que a democracia vive –. Isso não significa que se negue a influência do instituto da globalização em criar mais dificuldades para capacidade de resposta daquela.

Finalmente, como último esforço desse trabalho, é fundamental destacar que está no universo jurídico uma possibilidade bastante real para reanimar o discurso democrático, principalmente através da teoria constitucional, pois que se busca dela, não a Constituição enquanto uma norma fundamental, pois que a própria Constituição é um instrumento ideológico espaço-temporal, mas os princípios que a fundamentam, pois que esses, de conteúdo amplamente universais, podem acompanhar as novas extensões globais, permitindo aos sujeitos de diferentes culturas, agir a partir de uma base comum.

Reconstruir o discurso da democracia é permitir que ela possa enfrentar as várias facetas da exclusão, e os princípios constitucionais dos direitos fundamentais e da garantias do homem, podem vir a se constituir em um antídoto bastante eficiente, reanimando o próprio espaço político, a própria figura do Estado e, é claro, da própria democracia, mesmo em tempos de globalização.

Assim é que, "Este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua, os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra."3


2. UMA APROXIMAÇÃO AO CONCEITO DE DEMOCRACIA:

A Democracia como Cenário Político.

"Existe certamente um estágio onde não há sentido fazer mais perguntas ou exigir mais respostas; entretanto, no processo de alcançar esse estágio, podemos encontrar um terreno comum a outros ao fazer nossas avaliações, e esse terreno comum é de grande importância". H. R. G. GREAVES.

Ao se referir ao conceito de democracia deve-se partir de uma premissa fundamental: enquanto signo do campo político o seu sentido é multiforme e contestável.

É multiforme porque, enquanto sinal político, pertence a todos os ideários sociais, isto é, a democracia sofre todas as influências dos conflitos, das contradições e das significações que os sujeitos sociais vão acrescendo a ela ao longo de sua trajetória.

Efeito dessa intensa inter-relação com os sujeitos sociais têm sido o fato de que, a democracia, não raro, alcançou variadas definições, muitas, contraditórias entre si. Desse modo, conjugada com outros tantos conceitos do campo político, que lhe emprestam distintas significações, a democracia vem praticando um difícil exercício em se adequar aos diferentes usos que dela são exigidos, a ponto de ter esgotado essa tradicional elasticidade conceitual, resultando, com isso, na pasteurização da sua própria natureza.

A democracia, portanto, ao longo de sua trajetória, foi mesclada com diferentes tradições: com o republicanismo, com o liberalismo, com o socialismo, com o elitismo etc. De um poder do povo, enquanto representante da "velha" polis, foi conduzida para ser a forma política definitiva da nação. 4

De direito do cidadão, foi carreada para ser exercício de cidadania nos modernos Estados capitalistas, até confundir-se e violentar-se, finalmente, com a noção desagregadora de mercado econômico.

Nesse último estágio, ela acabou servindo para legitimar um discurso crítico à política de desigualdade fruto do capital, e que acabou por assentar os sonhos de toda uma geração revolucionária.

Ao longo do século XX, a democracia se viu, ainda, reduzida a mera estratégia de marketing político, no discurso partidário que, demagogicamente propalando-a como objetivo último, buscava, na verdade, alcançar o máximo exercício do poder político através do voto, da eleição, enfim, da conquista do aparelho estatal.

Agora, na abertura do novo milênio, onde a crise é a marca de todo o campo político, a democracia é confrontada com a extra-territorialização do capital, que na sua forma virtual, impõe uma nova noção de tempo e de espaço.

Nesse sentido, o tempo dessa economia virtual, muito mais instantâneo e acintosamente rápido, oblitera o padrão tempo tradicional, pois que subverte o presente, reduzindo-o a um simples toque de uma tecla de computador. Ao mesmo tempo, o espaço não é mais o da fronteira territorial, mas é o do globo, passando por cima das diferenças culturais, o que dá a esse capital a possibilidade de impor seus interesses além dos interesses pragmáticos da nação, e conseqüentemente, da democracia.

E esse capital além do Estado-nação, exigiu da democracia buscar novos espaços para se fazer emergir, como é o caso de sua aproximação, por exemplo, com o campo jurídico, pois que esse campo apresenta um discurso mais amplo, já que pode falar ao "homem", e não apenas ao cidadão, o que permite, assim, ao discurso democrático encontrar novas estratégias para tentar dirimir as contradições sociais atuais.

Dessa maneira, a estratégia de se impor, via Constituição, a imagem dos direitos fundamentais, que é, igualmente, uma reafirmação do Estado Democrático de Direito, cria um discurso mundial e comum que busca enfrentar as novas ondas de exclusão racial, sexual, religiosa e ideológica, essas, conseqüências diretas da globalização da economia.

Como afirma CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, "O Direito Constitucional contemporâneo põe-se no turbilhão das mutações, oferece-se ao destino das transformações dos homens, desde que não se perca o seu centro e a sua razão maior: o valor homem e os valores dos homens, leal aos quais se persiste a buscá-los no traçado dos novos caminhos, seguindo-se as novas vertentes". 5

Direitos fundamentais, direitos sociais, direitos de solidariedade são signos que se buscam emprestar à democracia, com o fim último de permitir-lhe diminuir o estranhamento que a relação Estado/indivíduo/sociedade alcançou nos dias atuais, o que reforça a tese de que ela tem uma natureza multiforme.

Através, assim, de um discurso judicializante da política, a democracia ambiciona estabelecer uma comunicação mais abrangente, pois que o campo jurídico pode, mesmo agora, operacionalizar uma sedução mais eficiente, pelo simples fato de que pode pretender falar a todos os povos e culturas.

A "fala" jurídica, ao defender o ‘homem’, através da defesa inconteste de seus direitos indisponíveis, tais como o direito ao ambiente, a água potável, ao trabalho, enfim, à vida, permite que a democracia possa recuperar o carisma que atualmente lhe falta e, dessa forma, diminuir o déficit em que se encontra.

Todavia, é condicio sine qua non que essa judicialização do discurso democrático não se deixe manipular pelas pretensões de um ou outro país, pois que assim, corre o risco de se identificar, mais uma vez, com o malfadado discurso nacionalista.

A democracia é, igualmente, contestável porque, quanto mais se enaltece as suas qualidades em dirimir as diferenças e desigualdades, menos ela parece capaz de enunciar algum discurso com o poder de romper com a clausura econômica que o mercado lhe impôs e, assim, superar os limites e ocasos das distâncias e das disputas sociais, quer dizer, das próprias diferenças e desigualdades.

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Essa característica de altercar em possibilidades antagônicas está agravada, ainda, pelo "império" da pós-modernidade. A pós-modernidade tem se apresentado como uma fase de fragmentação e desconstrução dos velhos paradigmas, principalmente, no campo das ciências sociais. Tal fragmentação, observada no campo do político é mais profunda, pois que ao longo dos séculos, a civilização entregou a esse espaço privilegiado a capacidade de solver os problemas que perturbam o ser.

Confrontado com silêncios que a filosofia política tradicional não pode mais responder, se faz obrigatório, para ampliar a capacidade de sedução dos institutos políticos, superar o ser como o principal sujeito da análise, pois dessa forma, o discurso democrático, buscando tornar-se mais operativo, deve olhar para um espaço e um tempo que, igualmente, se despreocuparam com o sujeito físico. O universo virtual do capital mundial é uma afronta à "velha hermenêutica", mas é preciso enfrentá-la com novos signos.

A democracia não pode, portanto, ser vista como simples participação política, como um mero estratagema da embolorada política tradicional, já que com a crise do Estado nacional, até mesmo essa pretensão se desmanchou no ar.

Destarte, a democracia não pode ser, apenas, entendida como um "direito", quer dizer, como direito à participação política (voto/eleição/poder político), ao direito ao tratamento igual, etc. Ela tem, na verdade, um sentido mais amplo, isto é, a democracia deve ser entendida como um cenário, cenário privilegiado da política, onde o maior número possível de sujeitos desenvolvem estratégias para atuar e ampliar os centros de controle e de decisão, sendo que esses dois instrumentos devem ser entendidos como exercício de poder político dos agentes sociais.

A democracia, então, deve ser entendida como um espaço6 de atuação do sujeito, onde os indivíduos e os entes jurídicos disputam o exercício do poder político (controle e decisão). É, portanto, o campo da intersecção de vontades do agir político, onde a sua natureza multiforme e contestável lhe dá forças ao mesmo tempo em que gera as contradições que a imobilizam, num constante e construtivo paradoxo. A alternativa para se conseguir romper essa circularidade paradoxal pode estar na conjunção ao discurso jurídico, que com novos signos, pode permitir-lhe enfrentar, de forma mais eficiente, os novos tempos.

2.1 A Democracia em sua Gênese Histórica e Territorial: Autolimites à Visão Pragmático-Romântica de seus Defensores.

"O homem civilizado colocado em meio ao caminhar de uma civilização que se enriquece continuamente de pensamentos, de experiências e de problemas, pode sentir-se ‘cansado’ da vida, mas não ‘pleno’ dela. Com efeito, ele não pode jamais se apossar senão de uma parte ínfima do que a vida do espírito incessantemente produz, ele não pode captar senão o provisório e nunca o definitivo". ANÔNIMO.

Não parece sofisma afirmar que há, verdadeiramente, uma correlação entre a figura do Estado-Nação e a figura da democracia. Isso porque, foi no espaço do primeiro, pacificado e delimitado, "que se desenvolveram ao longo dos dois últimos séculos as lutas pela democracia, a configuração de identidades e solidariedades sociais e as formas constitucionais e arranjos específicos de governos democráticos". 7

A emergência do Estado nacional, enquanto ruptura da modernidade ao modelo medieval, trouxe à tona a discussão em torno do exercício do poder político. Em sua gênese, esse poder político esteve concentrado na figura da monarquia absolutista, mas, com a crítica iluminista e os eventos ocorridos ao final do século XVIII, tanto o exercício do poder político, quanto o cenário de participação foram ampliados, pois que se passou a conjugar os conceitos de república e de democracia, e dessa maneira, o poder concentrado nas mãos de um determinado sujeito foi, de forma revolucionária, despersonalizado.

Independente das fases vividas pelo Estado, isto é, desde o Estado de modelo liberal, passando pelo Estado do bem-estar social, e chegando ao modelo atual, a democracia sempre esteve amarrada ao Estado nacional. Esse foi, até ao final do século XX, o nó górdio da sua existência. Analisemos, ainda que de forma tênue, a evolução do caminhar democrático.

Sob a ótica liberal, a teoria da democracia esteve, ao longo, principalmente, do século XIX, estruturada sobre o pressuposto básico da simetria e congruência entre os que eram responsáveis pelas decisões políticas, e àqueles a quem essas estavam destinadas. Apesar de propalada dentro de uma organização estatal que se autoproclamava como "Estado Mínimo", tantas foram as disputas e conflitos sociais ocorridos, que de forma bastante clara ficou a impressão de que os direitos à uma ampla democracia estavam longe de serem reais.

Nessa natureza de cunho liberal, o discurso jurídico, condicionado já, com o capital, buscou ser protetor dos direitos do indivíduo, constituindo aos atos do Estado uma natureza negativa, pois que disciplinava a sua limitação frente à defesa da individualidade.

Nesse contexto, a democracia rapidamente se esgotou, pois que as diferenças infamantes e inflamáveis entre os grupos sociais, abriram grandes brechas na sua capacidade de se apresentar como representante de todos os sujeitos sociais.

Na emergência do discurso socialista, de ruptura à ordem imposta, o Estado liberal foi coagido a ampliar os espaços democráticos, e pressionado pela opção de uma revolução, incorporou muitas das críticas que eram feitas pelos setores populares. Para se tornar elástico em sua capacidade de atender a essas exigências sociais, o Estado foi obrigado, por um lado, a transformar-se, o que deu origem à figura do Estado do bem-estar social, ao mesmo tempo, que por outro lado, radicalizou na politização do agir democrático, pois que disciplinou a democracia enquanto jogo exclusivamente do político.

E, isso foi assim, porque se fazia necessário, ao mesmo tempo em que se cedia aos apelos dos grupos posicionados mais próximos da base da pirâmide social, disciplinar as conquistas desses, retirando-lhes do discurso crítico, os marcos de ruptura à ordem. Para reorganizar a disciplina, ofereceu-se a democracia, agora como um discurso de todos, mas manifestado a favor dos interesses do capital, para que, dessa forma, na conquista de vários pontos, ocorresse, igualmente, a derrocada de um discurso social mais violento e de pretensão subversiva aos poderes hegemônicos.

Politizar ao extremo o discurso democrático significou desarmá-lo de seu conteúdo mais revolucionário, e seduzindo as oposições, oferecendo-lhes o jogo político tradicional, foi possível proteger-se a origem da própria razão de ser da revolução.

Logo, ao buscar de qualquer modo a manutenção da hegemonia do sistema do capital, o Estado do bem-estar-social alterou o próprio discurso jurídico, pois que esse, a partir de então, passou a ser mais interventor, acrescendo linhas de intervenção que tiveram por escopo diminuir a capacidade autoregulatória da sociedade civil.

Assim, no século XX, "o foco da teoria da democracia, através de distintos modelos – desde as vertentes elitistas-conservadoras de matriz schumpeteriana ou da teoria da escolha pública, passando pelo pluralismo liberal, até as críticas provenientes do marxismo e das correntes democrático-radicais republicana e participativa, tem-se concentrado nas condições que promovem ou dificultam a vida democrática de uma nação", 8 quer dizer, a democracia foi, lenta e inexoravelmente, condicionada aos humores do Estado nacional, a tal ponto que ela se metamorfoseou em simples exercício de participação política do cidadão na vida da nação.

Portanto, tanto aqueles teóricos que a defendem ou a criticam, acabaram por concluir que a democracia somente poderia estar formulada dentro dos limites das relações entre atores e estruturas determinadas pelo Estado-nação, disciplinada pelos interesses autoritários de um nacionalismo expressivo e opressor.

Mas, apesar de se associar ao capital, ao mercado, a democracia nunca foi uma unanimidade, pois que o mesmo instituto que deu espaço para ela se realizar, o Estado, criou outros discursos que a rejeitaram, e que levaram as nações a duas grandes guerras mundiais.

Logo que, com o passar do tempo e, mesmo desafiada pelos regimes que radicalmente a negaram e que acabaram derrotados na segunda guerra mundial, a democracia foi se consolidando, ao mesmo tempo em que acimentava a confusão de ser percebida como um direito ao voto, um direito à eleição, etc; e, igualmente, foi transformada em discurso de partidos políticos que visavam, apenas, alcançar o poder político de controlar e decidir a "coisa pública", dentro de uma determinada unidade nacional.

Vista, assim, como inerente ao Estado nacional, a democracia, pós-segunda guerra mundial, alçou-se como discurso de oposição a todas as formas de autoritarismo, apresentando-se como via de realização da satisfação dos sujeitos sociais. Mas, essa identificação espacial com o território da nação, ao mesmo tempo em que em alguns planos atendeu aos anseios dos grupos sociais, por outro lado enfraqueceu a sua capacidade de resistir às transformações que ocorriam em seu próprio interior e, igualmente, daquelas que vinha além território da nação.

"Nenhum ordenamento político está definitivamente estabelecido. Todo o sistema político é constantemente questionado em relação à sua legitimação e à sua eficiência. Isso vale, sobretudo, para as democracias",9 pois que sendo o cerne do discurso político que contempla a legitimação da soberania, bem como a forma do agir da cidadania, ela se viu submetida às exigências que acabaram questionando o seu sentido primordial.

Repita-se que a democracia sempre esteve implicada pela sua completa identificação com a nação, a tal ponto que não lhe foi possível distanciar-se dos conflitos pertinentes a essa.

É o caso das disputas entre os modelos políticos da guerra fria. Envolvida por esse conflito que opunha nações com modelos políticos distintos, a democracia se viu transformada em um "outro discurso", oposto ao do socialismo e da sua via econômico-social.

Dessa forma, ela se viu reduzida a ser a "outra via", o "outro espaço político", e enquanto foi possível apresentar-se enquanto uma outra proposta de organização social, ela teve forças para subsumir as suas fragilidades ao papel que lhe cabia naquele conflito mundial.

Todavia, com a derrocada do modelo socialista na ex-URSS, e na Europa Oriental, ao perder o papel de oposição e alcançar a vitória enquanto modelo político, ao mesmo tempo em que alcançou o apogeu, se viu incapaz de atender a todas as contradições que daí emergiram.

Sem ser mais a "outra via", o discurso democrático reconheceu sua incapacidade de responder aos velhos e novos conflitos sociais que passaram a emergir, na mesma proporção em que os novos países capitalistas buscaram-na como instrumento para ser a condução segura da transição que se processava, e que em muitos sentidos, acabou resultando numa profunda decepção.

Contemplada pela derrocada do modelo socialista em boa parte do globo, a democracia se viu incapaz de responder-se, tanto como "o modelo vitorioso", como "o derradeiro espaço político". Isso porque, o discurso partidário que passou a ser o principal porta-voz do discurso democrático, como vimos desde a emergência do Estado do bem-estar social, acabou perdendo o contraste que definia os conceitos de "esquerda" e "direita", o que terminou por dispersar os institutos tradicionais do período da guerra fria, esses entendidos, até então, como principais intermediadores da via democrática.

Assim, o fim dos contrários acabou por ter como maior efeito o surgimento de uma ruptura da significação no campo político, com conseqüências tão marcantes que determinaram o seu esvaziamento ideológico, bem como o esvaziamento da participação política dos grupos sociais e, em muitos sentidos, explicam a emergência dos temas da exclusão racial que se está operando em partidos ultranacionalistas e que confrontam a capacidade de inclusão da democracia, bem como na sua busca pela eqüidade.

No hiato que se construiu com a ruptura da ordem socialista, houve uma sobrecarga de expectativas sociais à perspectiva "abençoada" que o sistema democrático ocidental oferecia, mas que se provou, muito mais rapidamente do que se gostaria, uma mera ilusão. Sem o socialismo, uma boa dose de utopia foi perdida, o que veio a azedar o gosto dos dissabores com as limitações do modelo democrático-ocidental.

Nesse sentido, afirma WEIDENFEILD que "o sistema partidário tirou suas coordenadas do contraste entre leste e oeste, que não era apenas uma disputa por poder político, mas também um conflito cultural. A direita e a esquerda estavam presas no torno deste mundo simbólico da política mundial. Porém, depois que desapareceram os bastidores deste conflito entre imagens do homem – o homem como pessoa versus o homem como ser de uma espécie – os alicerces programáticos dos partidos, enquanto instâncias mediadoras da vida democrática se dissolveram".10

Perdida a sua capacidade de justificar-se enquanto discurso de um outro mundo político, a democracia se viu incapaz de ofuscar as suas limitações, e tal dificuldade ainda se agravou pelo fato dela estar identificada à figura do Estado-nação, pois que o fim do conflito capitalismo/socialismo e, a emergência decisiva do efeito da globalização, em muito abateu a racionalidade intrínseca que justificavam muitos dos discursos do Estado.

Percebe-se, dessa forma, que a globalização não é causa fundamental da atual crise do Estado e da democracia, mas mais um elemento que surgido ao longo do final da segunda metade do século XX, acabou por agudizar tal crise, já que obrigou àqueles a responder a novas problemáticas que, consentâneas com àquelas anteriores e internas a eles, enfraqueceram qualquer capacidade de resposta razoável e possível do Estado e da democracia, frente aos novos desafios impostos.

E um desses desafios da democracia está colocado, hoje em dia, na (im)possibilidade de estender ou não a amplos setores sociais, concretas e possíveis condições de inclusão, através de uma revitalizada cidadania, de uma difícil soberania compartilhada, e de uma quase utópica eqüidade e solidariedade entre os sujeitos políticos.

E, não deve tal desafio, ficar restrito a determinados espaços nacionais, pois que a regionalização continental desse processo, em última instância só pode levar tal projeto a soçobrar frente aos espaços que por ventura, não forem por ele tocados.

Mas em que sentido é possível a construção desse "novo" discurso democrático? Em primeiro lugar, é necessário abandonar a idéia que vigora de que a lei é, igualmente, procedimento, forma de um discurso que oferece a amplos setores da sociedade, um verdadeiro exercício da igualdade de participação.

Entretanto, como a lei é em síntese um discurso ideológico bastante formal, e que busca dar essa sensação de segurança jurídica, deve ser confrontada por um outro discurso ideológico que só encontra existência dentro do universo do dever-ser, isto é, a Constituição, que é lei, mas que deve ser sobreposta a toda e qualquer outra norma, de tal forma que ela seja percebida não mais como instrumento meramente normativo, mas a partir de seus princípios.

E o caminho para se ordenar esse conflito somente pode se dar através do uso elástico que se pode fazer dos princípios constitucionais, e dos sujeitos que o enunciam. Dessa forma, os princípios constitucionais, mais amplos que a própria lei, alcançam, hoje em dia, um caráter principalista, quer dizer, apresentam uma natureza de formação, de explicação, de interpretação e de supletação (entendido esse como a capacidade de suprir, completar aquilo que a própria lei não consegue fazer).

A partir dessa exigência para um novo papel da Constituição, através da capacidade dos seus princípios em alongar a sua influência sobre os limites da lei, a Carta Constitucional passa a exercer um caráter não apenas normativo ou político, mas declarativo. E em assim o fazendo, dá a democracia condições para se revigorar, já que através da teoria constitucional e seus princípios, e da definição dos direitos fundamentais como poder do indivíduo para limitar a ação estatal, o sujeito social pode reconstruir um discurso que, rompendo com as condições do campo econômico, reduza a exclusão e objetive o processo para validar a inclusão.

Nesse sentido, afirma MARIA JOSÉ FARIÑAS DULCE que: "El cambio de perspectiva, o si se quiere de paradigma jurídico, hacia lo que ya se viene denominado com cierta asiduidad como Estado constitucional de Derecho, há ocorrido paralelo a las transformaciones em la concepción de la soberania estatal y su fuente jurídica de máxima autoridad o jerarquía, que ha passado de ser la lei como producto del poder legislativo, a la Constitución como texto supremo que contiene los critérios básicos de ordenación política y los derechos fundamentales que se encuentran en la cúspide del sistema jurídico".11

Por conseguinte, a democracia assenta a sua legitimidade, enquanto um novo sistema político, na capacidade da teoria constitucional em ampliar as possibilidades dela em diminuir os espaços da exclusão, seja econômica, racial, sexual, cultural, etc.

E, para que tal projeto não se choque em teorias regionalizantes ou comunitárias, que só buscam manter o discurso da democracia atrelada ao jogo político tradicional, é imperativo que a estratégia dessa redefinição político/jurídica se dê através de uma ofensiva global. E essa ofensiva, somente é possível através dos direitos fundamentais, inclusos nas constituições, e importantes para a teoria do constitucionalismo atual. 12

Os direitos fundamentais buscam redefinir uma nova visão do sujeito, resgatando o conceito da cidadania, pois que a entende não somente como direito a participar no jogo político pelo poder, através do voto do cidadão. Mas é a cidadania, enquanto influenciada por esses direitos, uma participação mais ampla, no próprio tecido social, regatando aqueles valores de primeira, segunda e terceira geração.

Nesse mesmo sentido, a soberania não pode se manter como baluarte de um discurso que cria o outro, adversário interno ou externo e que desvia a atenção para o fato de que o poder deve ser mais compartilhado, o que significa dizer que os espaços entre os blocos dirigentes e dos dirigidos devem diminuir, sensivelmente, para que num esforço conjunto entre uma nova soberania e cidadania, não se busque a imagem do Estado nacional, mas de um novo Estado, organizado sob um novo controle, onde o poder monolítico e pouco afeito à dividir-se, se espalhe pelo corpo social, transformando-se numa verdadeira microfísica do poder democrático.

A democracia, calcada no constitucionalismo, base desse Estado, deve, assim, transformar a noção da cidadania, vista até agora, somente como participação política na nação. Essa deve se reconstruir como um novo instituto, isto é, numa objetiva participação social, independente dos limites físicos do Estado, e através do universo amplo dos direitos fundamentais.

Todavia, os desafios para a emergência desse discurso democrático constitucional, não são poucos. É preciso romper a visão fragmentada das comunidades, das disparidades culturas, do jogo econômico, da lógica do capital virtual e, fundamentalmente, redirecionar o processo da globalização não como estratégia de expansão do mercado, mas como extensão de condições para a presença da eqüidade e da solidariedade.

Restam, infelizmente, algumas questões que devam ser enfrentadas, para que se possa, objetivamente, afastar a matiz utópica dessa pretensão: como legitimar uma democracia em um espaço além do território nacional? E quem há de enunciar as bases epistemológicas desses direitos fundamentais? Finalmente, como romper o elo que atrela a democracia, os direitos fundamentais, enfim, a teoria constitucional, aos interesses do capital?

Reside na (in)capacidade de se responder a esse conjunto de questões a emergência ou não dos limites da democracia, pois que se é possível, no universo da filosofia, estabelecer as condições para a sobrevivência dela, é preciso enfrentar-se a dúvida de como construir a sua presença no universo concreto e cotidiano da sociedade, onde predomina o senso comum, e onde as pretensões, em muitos casos, se encerram simplesmente em ter ou não ter esgoto, luz, comida, etc.

Destarte, não se pode afastar a possibilidade de que a democracia, enquanto sistema político, sempre aceitou a presença do discurso da exclusão, pois enquanto discurso político, ela sempre foi um olhar sobre o campo social, a partir do jogo político que os grupos vêm travando. E como todo o olhar é sempre um olhar engajado, para que tal discurso democrático se firme, agora como novo, é obrigatório que a velha ordem venha a submergir, criando um campo social mais abrangente, onde se revigorem os direitos perdidos. Mas, como tudo nesse processo é dialético, inevitável reconhecer que mesmo assim, mais uma vez, uma nova safra de excluídos haverão de ser constituídos, para desafiar a ordem estabelecida, obrigando-a a se superar novamente.

Nesse momento, é imperioso lembrar, como afirmou KARL MARX, que "O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria, e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico".13

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Sobre o autor
Antonio Marcelo Pacheco de Souza

advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco. A crise da democracia em tempos de globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 433, 13 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5686. Acesso em: 26 abr. 2024.

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