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A crise da democracia em tempos de globalização

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Notas:

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Paper apresentado pelo autor na disciplina de Teoria Constitucional do Programa de Pós-Graduação em Direito-Mestrado da Unisinos. Orientação do prof. Dr. ANDERSON ORESTES LOBATO.

2Em sentido amplo, o paradoxo significa aquilo que é "contrário à opinião recebida e comum", ou à opinião admitida como válida. Em Filosofia, paradoxo designa o que é aparentemente contraditório, mas que apesar de tudo tem sentido. Em Matemática, fala-se muitas vezes de paradoxo matemático ou paradoxo lógico, ou seja, de uma contradição deduzida no seio dos sistemas lógicos e das teorias matemáticas. No entanto, as fronteiras do conceito de paradoxo não estão muito bem definidas. As idéias de conflito ou de dificuldade insuperável parecem acompanhar de forma estável a idéia de paradoxo. Mas, demasiado gerais, elas podem servir também para caracterizar uma "antinomia" (que originariamente significava conflito entre duas leis) ou uma "aporia" (caminho sem saída). Um paradoxo lógico consiste em duas proposições contrárias ou contraditórias derivadas conjuntamente a partir de argumentos que não se revelaram incorretos fora do contexto particular que gera o paradoxo. Ou seja, partindo de premissas geralmente aceitas e utilizadas, é (pelo menos aparentemente) possível, em certas condições específicas, inferir duas proposições que ou afirmam exatamente o inverso uma da outra ou não podem ser ambas verdadeiras.

3Ambos os conceitos são emprestados de Antonio Gramsci, que estabelece dois universos culturais distintos: aquele dos intelectuais, onde os conceitos ganham forma e gênese, chamado por ele de universo da filosofia, bem como o da base social, onde estão os setores populares, consumidores daqueles conceitos desenvolvidos, ao qual ele se refere como campo do senso comum. Independente de suas motivações ideológicas, tais definições explicam bastante bem a diferença de apreensão dos significados no universo real dos sujeitos.

4Carlos Drummond de Andrade. "Nosso Tempo".

5Ao longo do processo de sua evolução, a democracia se viu utilizada por diferentes forças sociais e políticas, a tal ponto que a sua captura foi em muitos sentidos, o principal objetivo de algumas correntes políticas. É o caso, em que se destaca aqui, da "democracia liberal", bem como da "democracia popular".

A primeira, a "democracia liberal" teve por intuito maior o objetivo de destacar os direitos individuais dos cidadãos. Queria, assim, alçar à democracia o corolário teórico do liberalismo, onde se por um lado se sobressaia a figura do sujeito-indivíduo, em sua máxima plenipotência, por outro lado, para justificar a competição que na prática nunca se dá em condições iguais de disputa, desenvolveu o conceito englobante de cidadania, criando assim, uma sensação de homogeneidade social. Tal pretensão não permitiu que na realidade do campo social, os indivíduos deixassem de perceber a existência de uma lógica cruel de desigualdades que em muito veio a desgastar a opção democrática.

A segunda, a "democracia popular", que pode ser percebida desde uma tradição rousseauriana, buscou demarcar à democracia os elementos da soberania, da vontade popular (em teoria absoluta), e de uma idéia, ainda resgatável em muitos autores, do contrato social. Nessa engenharia política, a democracia seria um exercício do poder popular que, a partir da gênese contratual, fundava a legitimidade do exercício político do Estado na soberania. E essa, em última razão, pertenceria ao sujeito histórico, muito pouco definido, conhecido, simplesmente, por "povo".

A "democracia popular" não raro acabou por estabelecer contradições tão intensas que permitiu a metamorfose da democracia em sistemas autoritários, e que, particularmente, na América Latina acabou por ganhar o desenho dos chamados sistemas populistas.

Destarte, em que pese que se busque e aceite a democracia como forma política mais desejável, tal reconhecimento não tem o condão de eliminar a contestação que surge do seu interior, pois, quanto mais se enaltece as qualidades democráticas, mais intensas e robustas se torna a controvérsia em torno de seus limites e ocasos, a tal ponto que, tal como o mito de Pandora, encerra esperanças que espalham males maiores, mas que nem por isso, são evitáveis ou (in)desejáveis na busca da construção de uma sociedade moralmente igualitária e responsável.

6ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. pág. 10, texto disponível na Internet em www.jus.com.br.

7O espaço da política é aqui entendido como distinto do campo político. A política é gênero, e o político, a espécie, portanto, englobado por aquela. A primeira se estende para além do espaço concreto do social, já que se confunde com a própria visão ideológica dos sujeitos. Ela acontece, assim, no espaço discursivo dos sujeitos, enquanto o segundo é eminentemente manifestado no espaço do público, já que representa a disputa pelo exercício do poder político, elemento da primeira. Igualmente fruto de discursos, aqui é o grupo, partido ou representante que enunciam os conceitos para os sujeitos, a tal ponto que mesmo que partindo do indivíduo e retornando a ele pelo espaço do público, é em um novo sentido, o que reafirma a influência do político sobre a política, até porque, na divisão do espaço público sobre o privado, apesar de vários fluxos em que um ou outro predominou, se assiste, hoje em dia, através da explosão dos espaços da mídia, uma reafirmação do público sobre o privado. É assim que Claude Lefort, em seu estudo A Democracia e a Teoria Política ratifica tal distinção, afirmando que "(...) a política se refere a estratégias manifestas e empíricas do sujeito, enquanto o político denota a matriz constitutiva, quase-transcendental da vida política, isto é, o espaço público que permite o mise-em scène (ou encenação) da política".

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8GÓMES, José Maria. Globalização, Estado e Cidadania. Pág. 51.

9GÓMES, José Maria, pág. 52.

10WEIDENFEILD, Werner, pág.02.

11WEIDENFEILD, pág.03.

12Maria José Fariñas Dulce, ciudadanía universal versus ciudadanía fragmentada, in: El vínculo Social: Ciudadanía y Cosmopolistismo. pág. 183, Valência: Turant lo Bllanch, 2002.

13A vida política é feita dessa oposição entre decisões políticas e jurídicas que favorecem os grupos dominantes e o apelo a determinada moral social que defende os interesses dos dominados ou minorias e é escutado porque contribui também para a interação social. Portanto, a democracia nunca será reduzida a procedimentos, nem tampouco a instituições; mas é a força social e política que se esforça por transformar o Estado de direito em um sentido que corresponda aos interesses dos dominados, enquanto o formalismo jurídico e político a utilizam em um sentido oposto, oligárquico, impedindo a via do poder político às demandas sociais que coloquem em perigo o poder dos grupos dirigentes. O que, ainda hoje, opõem um pensamento autoritário a um pensamento democrático é que o primeiro insiste sobre a formalidade das regras jurídicas, enquanto o outro procura descobrir, atrás das formalidades do direito e da linguagem do poder, escolhas e conflitos sociais.

14Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, pág.63.

15STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

16Tanto isso é verdadeiro que uma política econômica e social ao estilo daquele pensado por Keines está fadada ao fracasso. São, assim, os exemplos do governo francês de 1981 e 1983, bem como as declaradas intenções protecionistas do primeiro governo de Bill Clinton nos EUA, como o desenrolar das adaptações do plano real ao longo dos últimos anos.

17ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Globalização e Estado Contemporâneo. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001, pág. 83.

18ROTH, André-Noël. O Direito em crise: fim do Estado moderno? pág. 19.

19GÓMES, pág. 65.

20Heráclito, Fragmentos.

21DROR, Yehezel. Pág.69. in: Weidenfeld, Werner.

22Pierre Bourdieu. Lições de Aula. São Paulo: Editora Ática, 1988, pág.35/36.

23Segundo YEHEZEL DROR, "... quando a utilidade dos Estados isolados, enquanto unidade de ação diminui, e muitos problemas precisam ser resolvidos em outros níveis, freqüentemente mais elevados e distantes, todo o arcabouço institucional da democracia precisa ser repensado. Isto é tanto mais certo, quanto as estruturas estatais supranacionais não podem ser construídas por sobre o modelo presente dos Estados. O debate sobre o déficit democrático no seio da União Européia, por exemplo, levanta a questão urgente acerca de como poderiam ser transferidos os conceitos de democracia, originalmente desenvolvidos no nível dos Estados nacionais, para os novos sistemas supranacionais de governo". pág. 71. in: Weidenfeld, Werner.

24Entende-se a noção de sistema e acoplamento estrutural, como quer N. Lhumann, isto é, o sistema é um conjunto de operações fáticas que, por serem operações sociais, são ações comunicativas, e que por possuírem uma natureza autopoiética, podem se reconstruir, mantendo-se em um constante agir que é fechamento e abertura ao entorno e aos outros sistemas parciais. É nesse sentido que o sistema político pode buscar dar ao instituto da democracia uma dinâmica operacional, pois que em se mantendo em comunicação com o sistema jurídico, ela poderá irritar-se com os conceitos desse, e dessa forma, através dos processos de evolução e seleção, codificando-os, a democracia poderá se programar para enfrentar o entorno, entendido como o processo de globalização.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.

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Marx, Karl. Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Vozes, 1990.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. Texto disponível na Internet no site www.jus.com.br.

ROTH, André-Noël. O Direito em crise: fim do Estado moderno? Texto xeroz.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

WEIDENFELD, Werner e outros. O Futuro da Democracia: Projetos para o século XXI. São Paulo: Konrad – Adenauer-Stiftung, 1997, nº 11.

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Sobre o autor
Antonio Marcelo Pacheco de Souza

advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco. A crise da democracia em tempos de globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 433, 13 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5686. Acesso em: 26 abr. 2024.

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