iii. Poder de iniciativa em matéria de isenções tributárias estaduais
Diz o artigo 24, caput, da Constituição do Estado de São Paulo que são titulares do poder de iniciativa das leis complementares e ordinárias qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, o Governador do Estado, o Tribunal de Justiça, o Procurador Geral de Justiça e os cidadãos. Ante os termos deste dispositivo, poderíamos concluir, num primeiro relance, que não carece o Legislativo Paulista do poder de iniciativa na esfera da tributação.
Contudo, tal entendimento está longe de ser unânime. Para muitos, a iniciativa das leis que versam sobre matéria tributária integra a esfera de competência privativa do Executivo Estadual, ponto de vista que não carece de bons fundamentos. Aqueles que o esposam amparam-se principalmente em dois argumentos: a necessária observância do princípio da simetria entre as normas fundamentais dos entes federados e as disposições constantes do artigo 174, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo.
Comecemos pelo princípio da simetria. Diz o artigo 61, § 1º, inciso II, alínea b, da Constituição Federal, que são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham, entre outros assuntos, sobre "matéria tributária". Ora, por força do seu artigo 25, dispõe a mesma Carta Política que:
"Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição".
Da inteligência do citado dispositivo, tiramos que a autonomia legislativa dos Estados está limitada pelos princípios que regem a Carta Magna Federal, de tal modo que, mesmo atendendo às singularidades locais, não podem as normas estaduais escapar aos postulados básicos do Estado Brasileiro. Resta saber se entre estes mesmos postulados fundamentais se encontra a iniciativa privativa do Executivo em matéria tributária. De imediato, o que podemos constatar é que, ao fazer somente uma referência genérica aos princípios que devem presidir a legislação estadual, a Constituição Federal opôs grande dificuldade ao trabalho do intérprete.
Afinal, que princípios seriam esses? Apenas aqueles que dão uniformidade ao texto constitucional, como parece pensar Cretella Júnior [33], ou todos os outros que possamos inferir das disposições incidentes sobre cada um dos ramos do direito abrangidos pelo Texto Magno? A resposta a esta questão se prefigura muito difícil, sobretudo quando percebemos que a jurisprudência que trata da matéria padece de excessivo apego ao direito anterior a 1988.
Vejamos, por exemplo, um dos argumentos que fundamentaram a decisão pela qual, em recente exame de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal rechaçou lei estadual que concedia reajuste de salário aos servidores do Mato Grosso do Sul:
"As regras básicas do processo legislativo federal – incluídas as de reserva de iniciativa – são de absorção compulsória pelos Estados, na medida em que substantivam prisma relevante do princípio sensível da separação dos poderes." [34]
Posição semelhante manifestou o Ministro Celso de Mello, ao relatar pedido de liminar na ADIn nº 1434-SP, in verbis:
"O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República – inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação de leis – impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-membros." [35]
O fundamento destas decisões remete imediatamente o leitor aos ditames da Carta Constitucional de 1967, conforme a redação que lhe foi dada pela Emenda nº 1, que dispunha o seguinte:
"Artigo 13 – Os Estados organizar-se-ão e reger-se-ão pelas Constituições e leis que adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos nesta Constituição, os seguintes:
...
III – o processo legislativo;
..."
Contudo, devemos ter em mente que, também neste aspecto, o Texto de 1969 não respeitava a melhor tradição do direito pátrio. Não se tratava mais, como o faziam as Constituições republicanas desde 1891, de evitar somente que houvesse entre os entes federados uma excessiva – e potencialmente perigosa – disparidade de enquadramentos institucionais, mas, de ir muito além disso, convertendo as Cartas Estaduais, na sua essência, em mera reprodução da Constituição Federal. Esta é a opinião de Cretella Júnior, que a seguir reproduzimos:
"A EC nº 1, de 1969, foi além, impondo, no que coubesse, aos Estados Federados, as disposições da Constituição Federal, que se incorporariam ao direito constitucional legislado dos Estados. Ao invés de falar em "adaptação", fala em "incorporação", ou seja, todas as Constituições dos Estados-membros nada mais são do que a própria Constituição Federal transplantada, mutatis mutandis, para os diferentes Estados." (36)
Foi outra, porém, a solução dada à matéria pelo Constituinte de 1988, que repelindo uma indicação exaustiva das regras específicas que deveriam incorporar-se ao direito estadual, referiu-se tão-somente aos princípios presentes no Texto Supremo. Cite-se, a respeito, Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
"As regras estabelecidas para o processo legislativo no plano federal já não são obrigatórias para os Estados Federados. Não há na Constituição em vigor norma equivalente ao art. 200 da Emenda nº 1/69, o qual incorporava, no que coubesse, ao Direito Constitucional estadual as disposições constantes da Lei Magna federal. Ora, por julgamento unânime da doutrina e da jurisprudência, um dos pontos em que essa incorporação cabia era exatamente o processo legislativo, "ex vi" do art. 13, III, da Emenda nº 1/69." [37]
É lícito afirmar, de conseguinte, que não é mais obrigatória a inserção das regras básicas do processo legislativo federal nas normas que estruturam a mesma matéria no âmbito dos Estados. Estes, por óbvio, não podem escapar aos princípios que fundamentam a Constituição da República; contudo, o que nos parece indigno de dúvida é que tais princípios são apenas aqueles que, nas palavras de Cretella Júnior, dão "uniformidade ao todo" em meio à diversidade de matérias tratadas pelo Texto Supremo. São princípios gerais – como aqueles que conformam o Estado Brasileiro ao regime democrático e representativo, à forma republicana de governo, à forma federativa de Estado ou à estrita observância dos direitos fundamentais.
Assim, verbis gratia, não poderiam fugir as Cartas Estaduais à observância dos mesmos princípios que fundamentam a Administração Pública Federal, pois a moralidade, impessoalidade, ou a legalidade da atividade administrativa, se originam do desenvolvimento lógico do princípio republicano, que, como sabemos, é um dos pilares do Estado Brasileiro.
Por outro lado, a inclusão da iniciativa das leis na esfera de competência privativa do Poder Executivo não se configura como o resultado de nenhum dos princípios gerais que fundamentam o Texto Magno da República. Pelo contrário, ela poderia, em princípio, ser considerada como regra de exceção à separação dos poderes, visto que a iniciativa das leis é imanente ao exercício da função legislativa.
Deste modo, quando o Pretório Excelso ponderou que a questão da reserva de iniciativa deveria ser considerada como um "prisma relevante do princípio sensível da separação dos poderes", deve-se ter em mente que tal assertiva se refere muito especialmente à administração de pessoal do próprio Poder Executivo. Neste ponto faz-se necessário lembrar que a Constituição Federal confere a ambas as Casas do Congresso Nacional ampla autonomia para organizar as suas respectivas secretarias e serviços auxiliares (artigo 51, IV), prerrogativa também reconhecida em favor dos tribunais (artigo 96, I, b, e II, b). Não é de se estranhar, portanto, que a reserva de iniciativa do Executivo para tratar do pessoal de sua área seja considerada essencial à independência daquele poder. Percebe-se que entre nós, como foi visto, é decorrência necessária do princípio da separação dos poderes que cada um deles detenha uma reserva de iniciativa em tudo que concerne à sua própria estrutura administrativa.
Completamente distinta se configura a questão quando adentramos no campo da tributação, pois neste caso nosso objeto é a relação jurídico-tributária, ou seja, a criação, extinção ou modificação de um vínculo obrigacional entre o cidadão e o Estado, o tributo e as obrigações a ele conexas. Trata-se, portanto, de matéria estranha à estruturação administrativa dos Poderes do Estado e que, ademais, é tradicionalmente reservada à lei, sendo até a promulgação da Carta Constitucional de 1967 objeto de legislação de iniciativa concorrente.
Não podemos assim fugir à constatação de que o disposto no § 1º, inciso II, alínea b, do artigo 61, constitui-se em exceção à regra geral contida no caput do mesmo artigo da Lei Maior, o qual confere a iniciativa das leis complementares e ordinárias "a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional". E como ensina o mestre Carlos Maximiliano, "o intérprete se é possível considerar um texto como afirmador de princípio, regra geral; o outro, como dispositivo de exceção; o que estritamente não cabe neste, deixa-se para a esfera de domínio daquele" [38] (grifo do autor). Este é também o pensar do eminente jurisconsulto norte-americano Henry Campbell Black, para quem "os preceitos relativos à liberdade, ou que abrem exceção às normas gerais firmadas pela Constituição devem interpretar-se de modo restrito." [39]
Ainda mais pertinente para o nosso tema é o parecer de André Luiz Borges Netto [40], in verbis:
"Convém asseverar, desde logo, que da leitura conjunta do caput dos arts. 25 e 18, bem como do art. 60, § 4º, inciso I, todos da Constituição Federal, levam o intérprete à conclusão de que a autonomia ou poder de autodeterminação dos Estados-membros é a regra adotada pelo constituinte de 1988, sendo as vedações ou as limitações a exceção, razão pela qual a análise dos limites à atuação do Poder Constituinte decorrente sempre deverá ser restritiva, como forma de atender à regra de hermenêutica segundo a qual as exceções devem ser interpretadas restritivamente.
Para Elival da Silva Ramos e Fernanda Dias Menezes de Almeida a única exegese possível das disposições limitadoras da capacidade organizatória dos Estados-membros "é aquela da qual resulta uma intelecção estrita ou restritiva dessas disposições, na medida em que favorece a autonomia estadual". (41)"
Sendo assim, por se constituir a norma inscrita no artigo 61, § 1º, II, b, em mera exceção à regra geral inserta no caput do mesmo artigo 61 e não um princípio extensível às unidades subnacionais – e por não encontrar a mesma nenhum amparo em qualquer princípio geral do Texto Supremo –, é nosso pensar que a ela não está vinculado o legislador estadual.
Não acreditamos, portanto, que o princípio da simetria possa amparar a inclusão das leis que versarem sobre matéria tributária no âmbito da iniciativa privativa do Executivo Estadual.
Cumpre considerar agora o fundamento encontrado no artigo 174, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo, que determina o seguinte:
"Artigo 174 – Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão, com observância dos preceitos correspondentes da Constituição Federal:
...
§ 2º – A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública estadual, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política das agências financeiras oficiais de fomento.
..."
Como dissemos, uma interpretação equivocada do dispositivo citado redundou no asserto de que toda matéria tributária só poderia ser objeto de lei de iniciativa privativa do Governador do Estado. O que nos parece mais correto concluir da inteligência daquele mesmo dispositivo é que, na estimativa das receitas a serem consideradas pela LDO, o Poder Executivo deverá incluir todas as modificações previsíveis no âmbito da tributação, especialmente aquelas propostas de alterações que forem encaminhadas pelo próprio Executivo ao exame do Parlamento. Afinal é o cômputo geral das receitas públicas, estimado na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que "orientará a elaboração da lei orçamentária", como manda a Lei Maior de nosso Estado, sendo, portanto, imperativo que as eventuais oscilações daquela estimativa sejam consideradas para que as disposições orçamentárias reflitam a exata situação do Erário Estadual.
Tal interpretação do artigo 174, § 2º, pode parecer, à primeira vista, demasiadamente restritiva. Entretanto, ela se apóia na constatação de que o campo da tributação não foi incluído no âmbito de iniciativa privativa do Governador do Estado, conforme podemos verificar pela leitura do artigo 24, § 2º, da Carta Política Paulista e que, em face da ausência de disposição expressa em sentido contrário, deve prevalecer a regra geral inserta no caput do mesmo artigo 24, qual seja, de que cabe "a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa" a iniciativa das leis complementares e ordinárias. Lembre-se mais uma vez, a respeito deste último asserto, os ensinamentos de Carlos Maximiliano e Henry Campbell Black, ou seja, de que toda norma de exceção deve merecer uma interpretação restritiva.
Ante o exposto, concluímos que toda matéria tributária, inclusive a concessão de isenções tributárias e benefícios fiscais, pode ser objeto de lei de iniciativa dos deputados estaduais ou das Comissões da Assembléia Legislativa do Estado. A única exceção a esta regra já foi anteriormente considerada: qualquer isenção de ICMS ou benefício fiscal relativo a este tributo só poderá chegar à apreciação dos Parlamentos Estaduais quando for proposta pelo Executivo local a ratificação de convênio interestadual dispondo sobre a matéria.
Por fim, cumpre lembrar que, como compete privativamente ao Governador de São Paulo "representar o Estado nas suas relações jurídicas, políticas e administrativas" (artigo 47, inciso I, da Constituição Estadual), será sua prerrogativa exclusiva decidir sobre as manifestações oficiais do Governo Paulista no âmbito do CONFAZ. Não é possível ao Parlamento do Estado decidir a priori sobre qual será a posição de São Paulo nas deliberações daquele órgão.