A inconvencionalidade do crime de desacato em relação ao pacto de São José da Costa Rica e as implicações da decisão do Superior Tribunal de Justiça

08/04/2017 às 18:51
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Entenda quais são os efeitos da decisão do Superior Tribunal de Justiça no caso relativo ao crime de desacato de funcionário público.

        

      Recentemente, foi divulgado pela mídia, com fundamento em errônea interpretação da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.640.084-SP, de Relatoria do Min. Ribeiro Dantas, que a referida Corte teria descriminalizado a conduta prevista no art. 331 do Código Penal Brasileiro, a saber, o crime de desacatar funcionário público. O Tribunal decidiu pela incompatibilidade deste tipo penal com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida também como Pacto de São José da Costa Rica. Realizou, desta maneira, controle de convencionalidade do dispositivo legal interno.

      Ocorre que a realização deste controle não significa a descriminalização do crime previsto no artigo citado. A Corte de Justiça realizou um controle de convencionalidade difuso. Para que compreendamos em que consiste tal instituto e os efeitos que acarreta, convém esclarecer alguns conceitos.

     O Controle de Convencionalidade se assemelha bastante ao Controle de Constitucionalidade. Enquanto este último consiste na verificação da compatibilidade entre uma norma infraconstitucional e a Constituição de determinado Estado, o primeiro utiliza como parâmetro uma convenção internacional no lugar da Constituição.

    Nesse mesmo sentido, afirma Valerio de Oliveira Mazzuoli:  “A compatibilidade do direito doméstico com os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no país faz-se por meio do controle de convencionalidade, que é complementar e coadjuvante (jamais subsidiário) do conhecido controle de constitucionalidade”[2]

     Da mesma maneira que no controle de constitucionalidade, pode-se verificar, no controle de convencionalidade, duas modalidades de controle em relação ao órgão que o exerce: o controle abstrato, que só pode ser exercido pela Suprema Corte, e o controle difuso, que pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal. As decisões efetuadas nessas modalidades têm efeitos diferentes. No controle concentrado, a decisão gera efeitos erga omnes (contra todos) e ex tunc (retroage até a data de nascimento da norma contestada), enquanto que no controle difuso os efeitos são inter partes (só se aplicam às partes envolvidas na controvérsia) e ex nunc (a declaração de incompatibilidade não retroage, surtindo efeitos a partir da decisão).

     A decisão proferida pelo STJ, nesse caso, foi em sede de controle difuso de convencionalidade, pois a única Corte competente para realizar o controle concentrado é o Supremo Tribunal Federal.[3] Dessa maneira, a referida “descriminalização” só teve efeitos para as partes envolvidas no caso específico tratado naquele Recurso Especial.

   Em relação ao mérito da questão tratada, ou seja, se o art. 331 do Código Penal realmente é incompatível com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, parece-nos que assiste razão ao Superior Tribunal de Justiça.

   O art. 13 da Convenção dispõe acerca da liberdade de pensamento e de expressão. O dispositivo reza, em seu item 2, que o exercício desse direito “não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei (...)”.[4]

   O art. 331 do Código Penal, por sua vez, define desacato da seguinte maneira:

Art. 331. Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena -  Detenção, de 6 (seis) meses a 2(dois) anos, ou multa.

       O Superior Tribunal de Justiça utilizou o argumento de que as leis que punem as pessoas que ofendem funcionários públicos, pelo fato da dificuldade em se discernir mera censura de desrespeito propriamente dito abriria espaço para a atuação abusiva do Estado, o que atentaria contra o direito à liberdade de expressão.

    Assim se posicionou a Corte:

Não há dúvida de que a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo. A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito preconizado pela CF/88 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Ademais, a punição do uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de são José abolissem suas respectivas leis de desacato.[5]

      No julgamento, a Corte ainda ressaltou que o afastamento da tipificação criminal do desacato não impediria que o agente fosse responsabilizado de outra maneira, seja civilmente ou até mesmo na seara criminal, devido a conduta que possa caracterizar outro tipo penal, como calúnia, injúria, difamação, etc. Dessa maneira, o Tribunal procurou demonstrar a desnecessidade da criminalização do desacato, ao evidenciar que a mesma conduta pode se enquadrar em outro tipo penal.

     De acordo com o exposto, podemos concluir que o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir que o tipo previsto no art. 331 do Código Penal não é compatível com o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos, realizou controle difuso de convencionalidade, decisão esta que surte efeitos apenas entre as partes envolvidas no caso concreto. Assim, diferentemente do que foi alardeado por boa parte da mídia, a conduta de desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela, para todos as outras pessoas, continua constituindo crime.               

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[2] MAZZUOLI, VALERIO DE OLIVEIRA. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 132.

[3] Existe séria controvérsia sobre os tratados que poderiam servir como parâmetro para o controle de convencionalidade concentrado, se seria todo e qualquer tratado que versasse sobre direitos humanos ou se seriam apenas aqueles aprovados pelo rito de Emenda Constitucional. Não enfrentaremos tal quizila em razão do objetivo distinto deste pequeno artigo.

[4]Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm

[5] Resp 1.640.084-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, por unanimidade, julgado em 15/12/2016. Informativo de Jurisprudência de 2017 organizado por ramos do Direito, Brasília, 2017, p. 95.

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Sobre o autor
Rierison Bruno Assunção

Advogado criminalista atuante no estado de Pernambuco.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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