As «Duas culturas» e a cultura dos juristas: a arte de (não) buscar conexões significativas (Parte 1)
«¡Oh cándida incredulidad de muchas gentes, sin juicio analítico ni otra guía del laberinto que su deseo de que ocurra lo que les conviene! También los optimistas se equivocaron ayer.» Sofía Casanova
Desde quando a distinção tem sentido, os desenvolvimentos das ciências sociais e naturais correram separados por barreiras disciplinares. A meados do século passado, o novelista C. P. Snow se queixava, em sua famosa conferência em Cambridge (posteriormente editada como livro) sobre as «Duas culturas», da incomunicação entre as humanidades e as ciências naturais[1]. E como todas as demais disciplinas sociais — ou culturais, como dizem os alemães — também o Direito, com seus mecanismos internos, objetivos e razões que podem chegar a ser muito distintos e até opostos, tem, nesta particular dinâmica de falta de comunicação, sombras que cabe denunciar.
Blindado baixo a clássica mentalidade de «torre de marfim»[2] e protegido por uma tradição de especialistas na qual cada um possui sua própria perspectiva fragmentária e muito cerca da omnisciência, quiçá pouco se sabe fora dessa «torre», lugar emblemático onde os juristas, absolutamente seguros de si mesmos e convencidos de ter mais razão que um santo, permanecem encerrados em seus próprios pensamentos, bastião que supostamente protegem e ao mesmo proporcionam uma altura para garantir visões distantes e evitar possíveis invasões.
O resultado não deveria surpreender: a «torre» se transformou em púlpito. Passando de um excesso a outro como continuamente fazem os humanos, a plataforma da sentinela do saber jurídico se transformou em cenário de espetáculo: sistemas arbitrários de pensamento vazios de qualquer fundamento, técnica ou escrutínio empírico-científico minimamente sério – e repleto de interesses acadêmicos setoriais –, como se fora a quintessência do complexo, o esclarecedor, o reflexivo; um negócio com certa decepção para alguns e com suma satisfação para outros.
A necessidade de criar fabulosas narrativas e desconcertantes teorias imaginativas (que flertam com o poético, com a inspiração áulica e que complicam tudo para fazer-se interessantes), de organizar-se em castas, de estabelecer seus próprios standard de êxito e suas próprias preocupações especializadas, e de entreter a fantasia de um mito contínuo de justiça, forjaram uma espécie de culto extremadamente inapropriado que induz à acomodação e promove uma barreira artificial, fictícia e injustificada entre ciência e Direito.
Por outra parte, e como corolário desta separação aparentemente digna e impermeável, às instituições de ensino se escusa manter-se informada sobre temas científicos e os docentes, amantados de mistério, não têm que justificar com demasiados detalhes muitas das dinâmicas acadêmicas e argumentativas que supostamente se levam a cabo em nome do conhecimento, de teorias que só um “jurista” pode entender e onde o «faz-de-conta» se tolera e os fatos se ignoram.
Tampouco existe um entusiasmo notável para tratar das recentes demandas (científicas) do presente, porque resulta mais fácil dedicar-se apenas a exercer de forenses das ideias de outros autores, à prosaica e sossegada tarefa de glosar, explicar e traduzir repetidamente textos, discursos e teorias normativamente «corretas» em que os anelos de unanimidade acadêmica (e/ou de lealdade disciplinar) superam toda motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar e atuar alternativas. Sobretudo, há os que fogem como da peste de toda inquietude teórica que pressuponha o conhecimento (empírico-científico) um pouco minucioso de qualquer coisa que ocorra mais além do jogo mental de ideias, das especulações e generalizações.
E não é somente que alguns juristas estejam vacilantes ou em desacordo com os detalhes a respeito da magnitude que têm a ciência para o Direito. Como todos os seres humanos, esses «deuses da palavra», com suas minudências, podem ter por dentro vozes e aspirações muito diferentes, às vezes até em conflito entre si. Ademais, não são inocentes, estão possuídos de toneladas de intenções, dirigidos para uns fins e impedidos para outros, atravessados de linguagem, prejuízos, interesses pessoais e ideologia, e preparados para produzir, com suas lógicas internas, cérebros de primatas e sabedoria não solicitada, tipos concretos de ideias, discursos ou teorias degenerados por um abstracionismo extremo, episódicos pactos de significado compartidos com que intentam “atar todos los cabos y cuadrar el círculo”. Nos dias que correm, sobra dizer, os ventos sopram a favor da «opinologia» e das prioridades extraviadas. Ruído e mais ruído!
O único inconveniente é que este panorama aguentou bem enquanto as informações circulavam com conta-gotas e a investigação científica se limitava a poucos indivíduos. Nas últimas décadas as coisas foram cambiando, perturbando (por fim!) este equilíbrio milenário do alegórico mundo dos juristas. As investigações científicas começaram a estar ao alcance de todos e os fluxos de informação sofreram a explosão que todos conhecemos. No momento em que as castas já não dão para tanto, que a informação começa a cotizar-se seriamente nos círculos acadêmicos, e que já não cabe gente dentro da «torre», há que reinventar a interação entre conhecimento jurídico e conhecimento científico, e reconhecer, com brutal humildade e necessária decência intelectual, que quando se constrói um relato/teoria jurídica ou se projeta um ideal jurídico é necessário comprovar que a natureza, o significado das ideias e os argumentos descritos sejam possíveis, ou se percebam como possíveis, para seres como os sapiens.
Por que conto tudo isso? Por que de repente trato deste tema, insistentemente? Primeiro, porque a maior parte da gente não suporta expor-se em matérias controvertidas, inclusive os melhores e mais honestos. Segundo, porque este tipo de separação não tem nenhum sítio na cabeça de uma pessoa sensata. Sejamos sérios: estamos rodeados de sofisticadas teorias, correntes e movimentos filosófico-jurídicos que não estão corroboradas por dados empíricos; opiniões, devaneios e racontos contados para influir em nosso juízo e expressados sempre, como não, com a maior convicção e seriedade. E se descontamos os relatos absurdos e as conjecturas muito difíceis de comprovar com o rigor científico necessário, ainda assim devemos admitir que estamos tão acostumados e influenciados pela profusão e o poder das histórias que na grande maioria das vezes as aceitamos tal e como se nos aparece e não nos fazemos mais perguntas. Como dizia o clássico aforismo romano de medicina: «El veneno no es la sustancia sino la dosis».
Ó Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
[1] Nota bene: Snow era um físico e novelista inglês, preocupado pela incomunicação entre os acadêmicos que trabalhavam nas humanidades e os que o faziam nas ciências. Se deu conta de que estes dois tipos diferentes de “espíritos” apenas se entendiam uns aos outros: os “cientistas” não apreciavam suficientemente as grandes obras da tradição artística, enquanto que os “humanistas” ignoravam crescentemente as leis científico-naturais mais fundamentais. Snow chegou a insinuar uma “terceira cultura” capaz de encurtar distâncias.
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_de_marfim