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Sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material

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28/09/2004 às 00:00
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5. A ação rescisória no caso de declaração de inconstitucionalidade

É importante evidenciar, ademais, que a admissão da ação rescisória, sem uma adequada compreensão da importância da coisa julgada material, também importa em admissão de que a declaração de inconstitucionalidade a destrói 23. Ou seja, quando se imagina que, no caso de declaração de inconstitucionalidade, a desconstituição da coisa julgada está sujeita apenas à mera propositura da ação rescisória, admite-se que a declaração de inconstitucionalidade retroage para apanhar a coisa julgada. A diferença, que nada tem a ver com a substância do problema, é a de que, no caso de ação rescisória, a desconsideração da coisa julgada não seria efeito automático da decisão de inconstitucionalidade.

Portanto, se não se quer negar a importância da coisa julgada, não é possível aceitar como racional a tese de que a ação rescisória pode ser utilizada como um mecanismo de uniformização da interpretação da Constituição voltado para o passado. Como é sabido, o art. 485, V, do CPC, afirma que a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando "violar literal disposição de lei". Trata-se de hipótese que, em uma interpretação ajustada àquele que não se conforma com a decisão transitada em julgada, pode simplesmente eliminar a garantia constitucional da coisa julgada material. Ou seja, se o surgimento de interpretação divergente em relação a que foi dada pela decisão transitada em julgado puder implicar na admissão de violação de disposição de lei para efeito de ação rescisória, estará sendo desconsiderado exatamente o que a coisa julgada quer garantir, que é a estabilidade da decisão jurisdicional e a segurança do cidadão.

Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula n. 343, que afirma não caber "ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais". Em um dos acórdãos que deram origem a essa Súmula, frisou o seu relator, o saudoso Ministro Victor Nunes Leal, que "a má interpretação que justifica o judicium rescindens há de ser de tal modo aberrante do texto que equivalha à sua violação literal". Lembrou, ainda, que "a Justiça nem sempre observa, na prática quotidiana, esse salutar princípio, que, entretanto, devemos defender, em prol da estabilidade das decisões judiciais" 24.

Porém, o próprio Supremo Tribunal Federal tem decidido no sentido de que tal Súmula somente se aplica à interpretação controvertida da lei infraconstitucional. Afirma-se, nessa linha, que a Súmula n. 343. se reporta à interpretação controvertida da lei, e não à matéria constitucional, que, pela sua supremacia jurídica, "não pode ficar sujeita à perplexidade" 25.

Se a Súmula n. 400. do Supremo Tribunal Federal - que dispõe que a "decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário" – não deve prevalecer, pois a função do Supremo Tribunal Federal é a de ditar a interpretação da Constituição, isso não pode levar à tese extrema de que o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade da lei, deve se voltar ao passado para fazer prevalecer o seu entendimento em relação a todos aqueles que já tiveram os seus litígios solucionados pelo próprio Poder Judiciário. Semelhante idéia levaria à instituição de um "controle da constitucionalidade da decisão transitada em julgado", ou melhor, na aceitação de que o controle da constitucionalidade da lei pode levar ao uso da ação rescisória como mecanismo para uniformizar a interpretação da Constituição, o que é pouco mais do que absurdo.

Imaginar que a ação rescisória pode servir para unificar o entendimento sobre a Constituição é desconsiderar a coisa julgada. Se é certo que o Supremo Tribunal Federal deve zelar pela uniformidade na interpretação da Constituição, isso obviamente não quer dizer que ele possa impor a desconsideração dos julgados que já produziram coisa julgada material. Aliás, se fosse verdade, como pensam aqueles que não admitem a aplicação da Súmula n. 343, que a interpretação do Supremo Tribunal Federal deve implicar na desconsideração da coisa julgada, o mesmo deveria acontecer quando a interpretação da lei federal se consolidou no Superior Tribunal de Justiça. Não se diga, como já fez o Superior Tribunal de Justiça, que a diferença entre as duas situações está em que, no caso da declaração de inconstitucionalidade, a coisa julgada se funda em lei inválida, enquanto que "uma decisão contra a lei ou que lhe negue vigência supõe lei válida" 26.

Ora, ninguém mais nega – e o art. 27. da Lei 9.869/99 é a prova mais eloqüente disso - que, em razão de a decisão de inconstitucionalidade ter, em princípio, eficácia ex tunc, não é possível a manutenção de situações anteriores fundadas na lei declarada inconstitucional (na lei inválida). Se isso é evidentemente possível, não é correto argumentar que a coisa julgada material 27, quando fundada em lei declarada inconstitucional, não deve ser considerada pelo simples fato de ter se baseado em uma "lei inválida" 28.

Isso quer dizer que ou a Súmula n. 343. não vale para nada – nem mesmo para as leis infraconstitucionais – ou ela deve ser aplicada também à matéria constitucional. Mas, pensar na eliminação da Súmula n. 343. significa dar extensão desmedida ao art. 485, V do CPC 29, equivalente não à necessidade de uma exceção à coisa julgada material, mas sim à negação da sua própria essência 30.

A tentativa de eliminar a coisa julgada diante de uma nova interpretação constitucional não só retira o mínimo que o cidadão pode esperar do Poder Judiciário 31 – que é a estabilização da sua vida após o encerramento do processo que definiu o litígio -, como também parece ser uma tese fundada na idéia de impor um controle sobre as situações pretéritas.

Não é possível esquecer, porém, o teor do novo parágrafo único do art. 741. do CPC, segundo o qual o executado poderá, por meio de embargos à execução, afirmar a inexigibilidade do título judicial (sentença) "fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal" 32.

Trata-se de dispositivo baseado em uma falsa suposição de que os embargos do executado devem servir para manter a uniformidade das decisões jurisdicionais, como se a coisa julgada fosse um valor menor e insignificante.

Entende-se que tal parágrafo faz referência à declaração de inconstitucionalidade realizada pelo Supremo Tribunal Federal através do controle concentrado ou incidentalmente. No primeiro caso, o executado somente poderia se valer da decisão do Supremo Tribunal Federal quando a decisão não houvesse ressalvado a coisa julgada. Na segunda hipótese, os embargos somente teriam cabimento quando o Senado, após a decisão incidenter tantum, tivesse retirado a norma do ordenamento jurídico, imprimindo a essa retirada eficácia ex tunc. Afirma-se, ainda, que os embargos podem ser manejados quando a sentença aplicou ou interpretou o texto legal de modo já considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal 33. Nesse sentido, alude-se à "declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto" e à "interpretação conforme a Constituição", que constituem instrumentos de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos 34.

Embora já tenho sido demonstrado que a decisão declaratória de inconstitucionalidade não atinge a coisa julgada, é conveniente ressaltar, aqui, a sua natureza de princípio constitucional, que se impõe sobre as normas infraconstitucionais que a tentem invalidar. Nessa perspectiva, não haveria como deixar de entender essa norma como inconstitucional 35. Entretanto, em uma operação de salvamento da norma, cabe a interpretação no sentido de que esse parágrafo único somente pode ser invocado no caso em que a sentença impugnada se fundou em lei ou em ato normativo declarado inconstitucional, ou em aplicação ou interpretação consideradas incompatíveis com a Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal, no caso em que pode prosperar a própria ação rescisória fundada em violação do texto constitucional, vale dizer, na hipótese de ausência de controvérsia jurisprudencial sobre a questão constitucional.


6. O laudo pericial que discrepa da realidade

Resta tratar dos casos em que, posteriormente ao encerramento do processo, verifica-se falta de identificação entre o afirmado na sentença e a realidade. A fim de defender a tese de que a coisa julgada não pode discrepar da realidade, Dinamarco faz menção a um sistema bastante diverso, afirmando que no direito americano importa mais a realidade que a estabilidade. Porém, não parece ser essa a posição defendida pela doutrina americana mais abalisada, que reconhece que "the purpose of a lawsuit is not only to do substantial justice but to bring an end to controversy. It is important that judgements of the court have stability and certainty" 36

Nesse campo é necessário grande cuidado, pois o oportunismo daqueles que já tiveram seus direitos rejeitados pode servir de estímulo a pretensões que desejem reavivar a discussão de fatos já analisados, ou mesmo de provas já produzidas e valoradas. E isso, lamentavelmente, não tem sido incomum, pois têm surgido, na prática, casos em que, por exemplo, a Fazenda Pública é condenada a pagar quantia que julga exorbitante, mas que é resultado de laudo pericial que foi devidamente discutido em contraditório. Se a Fazenda Pública supõe, diante de certo caso concreto, que o valor a que foi condenada a pagar é indevido ou excessivo, não é por isso que poderá pretender rever o laudo pericial que, discutido plenamente em contraditório, chegou a tal valor. O problema do funcionamento indevido dos corpos jurídicos não pode ser resolvido mediante a simples tentativa de rediscussão de sentença acobertada pela coisa julgada material. Nesse aspecto, é de se salientar que nenhuma das teorias que tratam do tema enfrentou a questão do art. 474. do CPC, princípio basilar de que a coisa julgada cobre o deduzido e o dedutível.

Se o laudo, no caso exemplificado, tiver se fundado em prova falsa, caberá ação rescisória, em conformidade com o art. 485, VI do CPC. Isso porque a prova falsa, aí, dá constituição à própria perícia, na qual a sentença se fundou para chegar ao valor imposto à Fazenda Pública. Entretanto, há nítida e gritante diferença entre perícia que se serviu de prova falsa e perícia que chegou a um resultado destoante daquele que se poderia chegar através de nova prova pericial.


7. O exame de "DNA" capaz de alterar o resultado da sentença da ação de investigação de paternidade

Porém, também cabe ação rescisória se, depois da sentença, a parte obtiver documento novo, "cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável" (art. 485, VII, CPC). A hipótese, como é evidente, não abre ensejo para a simples revisão do fato, uma vez que só admite a rescisão da sentença quando a parte puder apresentar documento cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar resultado favorável.

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Contudo, o caso exemplar da investigação de paternidade não se enquadra perfeitamente na moldura da norma antes descrita, pois um laudo de DNA não é exatamente um documento. Não obstante, o objetivo do legislador, ao se referir a documento novo, foi o de viabilizar a rescisão no caso de prova de que não se pôde fazer uso, capaz de conduzir a julgamento favorável. Se é assim, nos casos em que a investigação de paternidade ocorreu na época em que o exame de DNA ainda não existia, não há dúvida que o laudo de DNA pode ser equiparado a um "documento novo".

Todavia, o problema vai além, pois quando se pensa que a ação rescisória deve ser proposta no prazo de dois anos, contado do trânsito em julgado da decisão que se almeja rescindir – como quer o art. 495. do CPC -, surge uma questão adicional, uma vez que a decisão da ação de investigação de paternidade pode ter transitado em julgado há mais de dois anos do momento em que se tornar possível o exame de DNA.

Não há como deixar de observar, é certo, que quando se pensa em documento novo, supõe-se documento existente à época da ação, mas que não pôde ser utilizado, e que esse raciocínio não pode ser empregado diante do DNA, pois esse não constitui documento ou algo que existia na época da ação. O exame de DNA é um meio técnico novo para se pôr em evidência um fato que foi afirmado na ação, ou uma prova pericial que não pôde ser realizada para demonstrar o fato afirmado, por consistente em técnica que ainda não podia ser utilizada.

Entretanto, se o prazo não pode ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença que se quer impugnar, porque não se trata de algo que já existia na época do processo extinto, mas de um meio que passou a existir não se sabe quanto tempo após o trânsito em julgado, aparece uma nova questão: é certo deixar que o vencido na ação de investigação de paternidade, seja autor ou réu, possa rever a sentença a qualquer tempo, sem subordiná-lo a qualquer prazo? Será que a biologia não estaria se sobrepondo à própria necessidade da definição da relação de filiação, a qual é imprescindível para o surgimento do afeto necessário para a vida entre pai e filho, ou mesmo tornando indefinida a vida das pessoas? Perceba-se que a eterna abertura à discussão da relação de filiação consistiria algo que sempre estaria a estimular a desconfiança dos envolvidos 37. Porém, é claro que, mesmo em relação à investigação de paternidade, o estabelecimento de prazo para a rescisão da sentença é um imperativo da natureza do ser humano e da vida em sociedade e, assim, da própria necessidade da jurisdição 38.

Como é óbvio, não se pretende afirmar que a evolução tecnológica não possui importância para a descoberta da relação de filiação. O que se deseja evidenciar é que a eternização da possibilidade da revisão da coisa julgada pode estimular a dúvida e, desse modo, dificultar a estabilização das relações.

Seria correto concluir que a sentença da ação de investigação de paternidade somente pode ser rescindida a partir de prazo contado da ciência da parte vencida sobre a existência do exame de DNA. Não obstante, a dificuldade de identificação dessa ciência, que certamente seria levantada, é somente mais uma razão a recomendar a imediata intervenção legislativa.

Como essa ação possui relação com a evolução da tecnologia, ou melhor, com uma forma de produção de prova impensável na época em que o artigo 485 do CPC passou a reger a ação rescisória, é imprescindível que esse artigo seja alterado para deixar clara a possibilidade do uso da ação rescisória com base em laudo de DNA, bem como o seu prazo.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 454, 28 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5716. Acesso em: 22 nov. 2024.

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