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Sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material

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28/09/2004 às 00:00
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6. O laudo pericial que discrepa da realidade

Resta tratar dos casos em que, posteriormente ao encerramento do processo, verifica-se falta de identificação entre o afirmado na sentença e a realidade. A fim de defender a tese de que a coisa julgada não pode discrepar da realidade, Dinamarco faz menção a um sistema bastante diverso, afirmando que no direito americano importa mais a realidade que a estabilidade. Porém, não parece ser essa a posição defendida pela doutrina americana mais abalisada, que reconhece que "the purpose of a lawsuit is not only to do substantial justice but to bring an end to controversy. It is important that judgements of the court have stability and certainty" [36]

Nesse campo é necessário grande cuidado, pois o oportunismo daqueles que já tiveram seus direitos rejeitados pode servir de estímulo a pretensões que desejem reavivar a discussão de fatos já analisados, ou mesmo de provas já produzidas e valoradas. E isso, lamentavelmente, não tem sido incomum, pois têm surgido, na prática, casos em que, por exemplo, a Fazenda Pública é condenada a pagar quantia que julga exorbitante, mas que é resultado de laudo pericial que foi devidamente discutido em contraditório. Se a Fazenda Pública supõe, diante de certo caso concreto, que o valor a que foi condenada a pagar é indevido ou excessivo, não é por isso que poderá pretender rever o laudo pericial que, discutido plenamente em contraditório, chegou a tal valor. O problema do funcionamento indevido dos corpos jurídicos não pode ser resolvido mediante a simples tentativa de rediscussão de sentença acobertada pela coisa julgada material. Nesse aspecto, é de se salientar que nenhuma das teorias que tratam do tema enfrentou a questão do art. 474 do CPC, princípio basilar de que a coisa julgada cobre o deduzido e o dedutível.

Se o laudo, no caso exemplificado, tiver se fundado em prova falsa, caberá ação rescisória, em conformidade com o art. 485, VI do CPC. Isso porque a prova falsa, aí, dá constituição à própria perícia, na qual a sentença se fundou para chegar ao valor imposto à Fazenda Pública. Entretanto, há nítida e gritante diferença entre perícia que se serviu de prova falsa e perícia que chegou a um resultado destoante daquele que se poderia chegar através de nova prova pericial.


7. O exame de "DNA" capaz de alterar o resultado da sentença da ação de investigação de paternidade

Porém, também cabe ação rescisória se, depois da sentença, a parte obtiver documento novo, "cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável" (art. 485, VII, CPC). A hipótese, como é evidente, não abre ensejo para a simples revisão do fato, uma vez que só admite a rescisão da sentença quando a parte puder apresentar documento cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar resultado favorável.

Contudo, o caso exemplar da investigação de paternidade não se enquadra perfeitamente na moldura da norma antes descrita, pois um laudo de DNA não é exatamente um documento. Não obstante, o objetivo do legislador, ao se referir a documento novo, foi o de viabilizar a rescisão no caso de prova de que não se pôde fazer uso, capaz de conduzir a julgamento favorável. Se é assim, nos casos em que a investigação de paternidade ocorreu na época em que o exame de DNA ainda não existia, não há dúvida que o laudo de DNA pode ser equiparado a um "documento novo".

Todavia, o problema vai além, pois quando se pensa que a ação rescisória deve ser proposta no prazo de dois anos, contado do trânsito em julgado da decisão que se almeja rescindir – como quer o art. 495 do CPC -, surge uma questão adicional, uma vez que a decisão da ação de investigação de paternidade pode ter transitado em julgado há mais de dois anos do momento em que se tornar possível o exame de DNA.

Não há como deixar de observar, é certo, que quando se pensa em documento novo, supõe-se documento existente à época da ação, mas que não pôde ser utilizado, e que esse raciocínio não pode ser empregado diante do DNA, pois esse não constitui documento ou algo que existia na época da ação. O exame de DNA é um meio técnico novo para se pôr em evidência um fato que foi afirmado na ação, ou uma prova pericial que não pôde ser realizada para demonstrar o fato afirmado, por consistente em técnica que ainda não podia ser utilizada.

Entretanto, se o prazo não pode ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença que se quer impugnar, porque não se trata de algo que já existia na época do processo extinto, mas de um meio que passou a existir não se sabe quanto tempo após o trânsito em julgado, aparece uma nova questão: é certo deixar que o vencido na ação de investigação de paternidade, seja autor ou réu, possa rever a sentença a qualquer tempo, sem subordiná-lo a qualquer prazo? Será que a biologia não estaria se sobrepondo à própria necessidade da definição da relação de filiação, a qual é imprescindível para o surgimento do afeto necessário para a vida entre pai e filho, ou mesmo tornando indefinida a vida das pessoas? Perceba-se que a eterna abertura à discussão da relação de filiação consistiria algo que sempre estaria a estimular a desconfiança dos envolvidos [37]. Porém, é claro que, mesmo em relação à investigação de paternidade, o estabelecimento de prazo para a rescisão da sentença é um imperativo da natureza do ser humano e da vida em sociedade e, assim, da própria necessidade da jurisdição [38].

Como é óbvio, não se pretende afirmar que a evolução tecnológica não possui importância para a descoberta da relação de filiação. O que se deseja evidenciar é que a eternização da possibilidade da revisão da coisa julgada pode estimular a dúvida e, desse modo, dificultar a estabilização das relações.

Seria correto concluir que a sentença da ação de investigação de paternidade somente pode ser rescindida a partir de prazo contado da ciência da parte vencida sobre a existência do exame de DNA. Não obstante, a dificuldade de identificação dessa ciência, que certamente seria levantada, é somente mais uma razão a recomendar a imediata intervenção legislativa.

Como essa ação possui relação com a evolução da tecnologia, ou melhor, com uma forma de produção de prova impensável na época em que o artigo 485 do CPC passou a reger a ação rescisória, é imprescindível que esse artigo seja alterado para deixar clara a possibilidade do uso da ação rescisória com base em laudo de DNA, bem como o seu prazo.


8. A desnecessidade de se aludir à regra da proporcionalidade

a) Como está claro, o problema da ação de investigação de paternidade tem relação com o fenômeno da evolução tecnológica. Isso demonstra que não se trata de balancear a coisa julgada material com o direito já levado ao juiz, mas sim de admitir que a parte, diante de limitações técnicas da época em que o processo foi instaurado, não teve a oportunidade de demonstrar o seu direito.

A impossibilidade de o legislador acompanhar a velocidade do progresso da tecnologia não pode levar à conclusão de que o juiz pode definir, mediante a aplicação da regra da proporcionalidade, os direitos que não se submetem à coisa julgada material.

É verdade que há, no direito contemporâneo, uma tendência em aumentar os poderes do juiz, com o objetivo de lhe conferir a possibilidade de tratar adequadamente do caso concreto. Antigamente, em razão da necessidade de limitação do poder do juiz, derivada da garantia de liberdade dos cidadãos, o controle do poder judicial era feito através da lei, que definia o que podia, e o que não podia, ser feito. Isso ocorria, para se dar um exemplo bem claro, com a expressa previsão legal dos meios executivos que podiam ser utilizados pelo juiz, dando-se ao cidadão a garantia de que sua esfera jurídica jamais seria invadida através de um meio de execução não tipificado na lei. Com o passar do tempo, verificou-se que, diante das diferentes situações litigiosas, não seria possível dar tutela adequada aos direitos apenas através dos meios executivos previstos pela lei, os quais obviamente eram desenhados em abstrato, desconsiderando a diversidade das situações conflitivas. Em razão disso, o art. 84 do CDC e o art. 461 do CPC deram ao juiz a possibilidade de trabalhar com a medida executiva adequada ao caso concreto ou com aquilo que esses artigos expressamente chamam de "medidas necessárias". Tais artigos, como é óbvio, privilegiaram a "justiça do caso concreto", cientes de que, para uma tutela mais perfeita dos direitos, era indispensável atribuir maior poder ao juiz. Ou melhor, apostaram no juiz, ainda que esse – diante de sua própria condição humana – lamentavelmente possa ser arbitrário. Porém, justamente em razão de que o juiz obviamente não pode deixar de ser controlado, o que mudou foi apenas a forma de controle do juiz, que antes era feita através da lei e agora deve ser realizada através da regra da proporcionalidade, especificamente das suas sub-regras da adequação e da necessidade.

Mas, o que aqui interessa é perguntar se a proporcionalidade pode ser admitida como critério para a "relativização" da coisa julgada. Como é evidente, a proporcionalidade, nesse caso, não poderia ser pensada como adequação ou necessidade, mas como proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, como regra hermenêutica que seria capaz de solucionar as situações de choque entre a manutenção da coisa julgada e a proteção de bem que torne indispensável a revisão do julgado. Seria o caso, em outras palavras, de aplicar um método de "ponderação" dos bens, e não de simples harmonização, lembrando-se que "ponderar" é o mesmo do que sopesar para definir o bem que deve prevalecer, enquanto que "harmonizar" indica a necessidade de contemporizar para assegurar "a aplicação coexistente dos princípios em conflito". [39]

Entretanto, a ponderação somente deve ser utilizada em situações excepcionais, em que não exista outra alternativa. Ou seja, a ponderação não só é um método complementar, mas talvez, como diz Enrique Alonso García, o mais criticado de quantos existem [40].

Ressalte-se que a ponderação não é um método de interpretação. Como explica Canotilho, "a atividade interpretativa começa por uma reconstrução e qualificação dos interesses ou bens conflituantes procurando, em seguida, atribuir um sentido aos textos normativos a aplicar. Por sua vez, a ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens" [41].

b) Para aceitar como plausível a alusão à proporcionalidade em face da ação de investigação de paternidade, a contraposição não estaria sendo feita entre o direito à descoberta da relação de filiação e a coisa julgada material em abstrato, mas sim no caso concreto, considerado o surgimento do meio técnico do DNA como capaz de dar nova conformação à decisão transitada em julgado.

Porém, não há qualquer possibilidade ou razão para apelo à "harmonização" quando o que está em jogo é o surgimento de meio técnico capaz de modificar o julgamento. Como já foi dito, se o exame de DNA pode alterar o julgamento que se formou na sentença acobertada pela coisa julgada, o correto é interpretar tal exame como um "documento novo" que não pôde ser utilizado, mas que é capaz, por si só, de "assegurar um pronunciamento favorável" (art. 485, VII do CPC). [42]

O prazo da ação rescisória deve decorrer a partir da ciência da parte a respeito da existência dessa técnica - e não, evidentemente, do trânsito em julgado. Ademais, diante da natureza da prova do momento dessa ciência, caberá ao réu da rescisória demonstrar que o autor teve tal ciência há mais de dois anos.

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Como se vê, basta somente adequar o conceito de "documento novo" – desenvolvido em época já distante – à realidade da sociedade contemporânea, isto é, à descoberta do exame de DNA. Ao que se saiba, essa forma de interpretar o texto legal nada mais é do que uma obrigação do intérprete.

Lembre-se, com efeito, que o enunciado da norma não se confunde com a norma jurídica, que é o resultado da interpretação. O juiz deve ler o texto legal em face da sociedade em que vive, adequando-o às novas realidades. Ao interpretar o texto o juiz chega a uma conclusão – ou resultado -, que nada mais é do que a norma jurídica. Nessa perspectiva, se o texto da norma pode envelhecer, ele deve ser reavivado através da interpretação judicial, que estabelece a norma jurídica. Desse modo, a normatividade deve ser vista como um "processo", e não como uma qualidade do texto. Ela não é; ela age [43].

c) Ora, se a interpretação é suficiente para realçar o significado que a regra processual deve possuir diante da descoberta do método "DNA", chega a ser incompreensível a razão para se pensar na aplicação da proporcionalidade ou da ponderação no caso de coisa julgada material.

A menos que se imagine que é possível contrapor, em abstrato, um direito – ainda que protegido constitucionalmente - à coisa julgada material, como se ao juiz pudesse ser dado o poder de dizer que determinado direito não se sujeita à coisa julgada material. Ou seja, é de todo insustentável dizer, por exemplo, que a justa indenização se sobrepõe à coisa julgada material.

A coisa julgada é inerente ao Estado de Direito e, assim, deve ser vista como um sub-princípio que lhe dá conformação. Não há como aceitar a tese de José Augusto Delgado [44] e Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria [45], no sentido de que a garantia da coisa julgada material, insculpida no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, dirige-se apenas ao legislador, impedindo-o de legislar em prejuízo da coisa julgada. Ora, como é evidente, a coisa julgada é garantia constitucional do cidadão diante do Estado (em geral) e dos particulares. Não é por razão diversa que, na doutrina portuguesa, fala-se em "princípio da intangibilidade do caso julgado" como garantidor da "segurança jurídica" [46].

A coisa julgada não pode ser colocada no mesmo plano do direito que constitui o objeto da decisão a qual adere. Ela é elemento integrante do conceito de decisão jurisdicional, ao passo que o direito é apenas o seu objeto. Não há dúvida que os direitos podem, conforme o caso, ser contrapesados para fazer surgir a decisão jurisdicional adequada [47], mas a própria decisão não pode ser oposta a um direito, como se ao juiz pudesse ser conferido o poder de destruir a própria estabilidade do seu poder, a qual, antes de tudo, é uma garantia do cidadão.

A coisa julgada sempre pôde ser relativizada nos casos expressos em lei, como, por exemplo, na hipótese de documento novo de que a parte não pôde fazer uso, mas que seja capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável (art. 485, VII do CPC). Trata-se de hipóteses em que se admite a relativização da coisa julgada em virtude de certas circunstâncias, que não são relativas apenas a um direito em especial, mas sim a situações que podem marcar qualquer direito. Ou melhor, os casos de ação rescisória não abrem margem para a desconstituição da coisa julgada em razão da especial natureza de determinado direito, mas sim em virtude de motivos excepcionais capazes de macular a própria razão de ser da jurisdição.

Isso quer dizer que não é um direito em específico, mas sim uma dada situação excepcional, que pode exigir que se dê maior atenção ao tema da coisa julgada. Nesse caso, entretanto, como se não se tratará de considerar o direito material objeto da decisão acobertada pela coisa julgada material, mas sim uma circunstância que impede a idoneidade da decisão jurisdicional acerca do direito, não existirá como pensar em contrapesar esse direito com a coisa julgada, mas sim em uma interpretação da regra processual capaz de atender as situações que pulsam da realidade e não podem deixar de ser impostas às categorias jurídicas.

d) Note-se que a idéia de se dar ao juiz o poder de balancear um direito com a coisa julgada material elimina a essência da coisa julgada como princípio garantidor da segurança jurídica, passando a instituir um sistema aberto.

Contudo, a própria razão de ser da coisa julgada impede que se imagine um sistema desse tipo, em que o juiz possa analisar, diante do caso concreto, se ela deve, ou não, prevalecer. Um sistema aberto não se concilia com a natureza da coisa julgada material.

Ademais, a possibilidade de o juiz desconsiderar a coisa julgada diante de determinado caso concreto certamente estimulará a eternização dos conflitos e colaborará para o agravamento, hoje quase insuportável, da "demora da justiça", caminhando em sentido diretamente oposto àquele apontado pela doutrina processual contemporânea. Aliás, dizer que a "justa indenização" ou o "interesse público" podem se sobrepor à coisa julgada material é algo difícil de compreender quando se deseja retirar os prazos deferidos à Fazenda Pública, que são costumeiramente acusados de "privilégios inconcebíveis".

Se não é possível adotar a proporcionalidade, pois isso seria abrir mão da própria coisa julgada material - que é princípio inerente à atual concepção de Estado de Direito -, é necessário que os operadores do direito compreendam, de vez por todas, que têm o dever de ajustar os textos legais às necessidades da vida. Dessa forma não será difícil eliminar os óbices que, em uma leitura fria e descompromissada do texto legal, impedem que a ação rescisória tenha um rendimento adequado.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada "relativização" da coisa julgada material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 448, 28 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5716. Acesso em: 28 mar. 2024.

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