RESUMO
No presente trabalho, defender-se-á uma reformulação do Inquérito Policial, atentando para a necessidade de sumarização desse procedimento (cognição sumária), a implementação da figura do Juiz das Garantias, a participação obrigatória da defesa técnica nos principais atos investigatórios, a instauração do instituto da investigação defensiva e a continuidade da investigação a cargo da Polícia Judiciária, com a presidência do Delegado de Polícia. Outrossim, foi apontada a necessidade premente de mudanças concretas, bem como possíveis soluções para eventuais dificuldades, de natureza prática e teórica, que possam obstar ou dificultar a sua implantação. A pesquisa bibliográfica em diversas obras escritas e na internet, aliada à experiência no exercício de mais de três anos no cargo de Delegado de Polícia Civil serviu de base para a elaboração do presente trabalho.
Palavras- chave: Reformulação, inquérito policial, cognição sumária, investigação defensiva, Juiz das Garantias.
INTRODUÇÃO
No presente trabalho estudar-se-á o fenômeno da crise do inquérito policial, bem como a necessidade de adequá-lo, na medida do possível, e sem perder a sua eficácia, ao sistema acusatório adotado pela Lei Maior.
Será proposta uma reformulação no atual modelo investigatório brasileiro, na qual haja uma adequação desse modelo à proteção efetiva dos direitos e garantias fundamentais do investigado.
Essa nova sistemática tem como escopo interpretar as normas infraconstitucionais em consonância com a Carta Magna, ao contrário do que, infelizmente, sói ocorrer. Buscará um meio termo (um balizamento) entre o princípio da proibição de proteção deficiente (garantismo positivo), que visa precipuamente a assegurar a prestação, por parte do Estado, ao cidadão de um serviço de segurança pública eficaz, e o princípio da proibição do excesso, que é uma guarida do cidadão contra as arbitrariedades do Estado (garantismo negativo).
O principal obstáculo a ser superado nessa fase persecutória é o desrespeito, do ponto de vista empírico e legal, aos direitos e garantias do investigado, bem como a ineficiência do inquérito policial. Dentro desse panorama, urge a necessidade de inovações legislativas que transplantem garantias existentes na fase processual à fase pré-processual, sem perder de vista a razoabilidade, a eficiência e o aumento da qualidade do material produzido nessa última fase.
Igualmente, é imprescindível que as funções de investigar e acusar sejam exercidas por sujeitos distintos (não necessariamente entre órgãos distintos) para que não ocasione uma desigualdade, na fase processual, entre as partes: isso fragilizaria o princípio da paridade de armas e o sistema acusatório.
Há a necessidade de que na investigação preliminar criminal haja uma sintonia entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária. Aquele delineando linhas gerais de investigação e maior acompanhamento dos procedimentos criminais.Também se faz necessária a implantação de tecnologias modernas (que já são utilizadas na fase processual em muitos estados brasileiros) à fase preliminar da investigação criminal, para que se aumente o índice de solução das infrações penais.
O objetivo primordial desse trabalho é contribuir para a discussão sobre a necessidade premente da reformulação da fase pré-processual, trazendo soluções consentâneas com os entendimentos mais alvissareiros existentes no direito pátrio e no direito comparado. Apresentar e debater propostas divergentes das defendidas pelo presente autor, mostrando os aspectos positivos e negativos, com um viés dialético, buscando o avanço da atual sistemática.
A sociedade contemporânea anseia por um sistema de investigação preliminar livre das máculas do sistema inquisitório e das arbitrariedades oriundas deste, bem como que haja índices razoáveis de solução das infrações penais, diferentemente das pífias estatísticas atualmente existentes.
Diante dos grandes desafios em que se encontra a investigação preliminar criminal no Brasil, esse trabalho visa a contribuir com a renovação do arcaico processo penal brasileiro, mormente a fase pré-processual, realçando a importância dessa fase, e com a consolidação do garantismo penal[1].
1 EM BUSCA DE UMA NOVA SISTEMÁTICA NA FASE PRÉ-PROCESSUAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
Nesse trabalho serão analisados alguns tópicos relevantes a respeito da fase pré-processual, bem como serão propostas algumas mudanças visando ao aperfeiçoamento do sistema processual penal brasileiro.
Resta acrescentar que as mudanças propostas não devem ser consideradas para as infrações penais de menor potencial ofensivo, optando-se, assim, pela continuidade da atual sistemática, que fora adotada pela Lei 9.099/95(lei dos juizados especiais).
2 CONTINUIDADE DA INVESTIGAÇÃO A CARGO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA E DA PRESIDÊNCIA DO IP PELO DELEGADO DE POLÍCIA
A maioria da doutrina e da jurisprudência entende que o sistema processual penal brasileiro é misto: inquisitório na fase pré-processual e acusatório na fase processual. Porém, o entendimento defendido nesse trabalho é de que ele é essencialmente inquisitório, tendo em vista que é a gestão das provas a característica principal que diferencia se um sistema processual é acusatório ou inquisitório: num sistema acusatório a iniciativa probatória deve ficar exclusivamente nas mãos das partes, e, o juiz deve atuar como balizador e “garantidor das regras do jogo”, com uma postura inerte e imparcial diante do que se deva ser provado em juízo, respeitando, dessa forma, a paridade de armas e o “adversarial system”.
No inquérito policial, o Juiz se mantém distante da produção dos elementos de informação, e, salvo nos caso de produção antecipada de prova, ele não tem iniciativa probatória, todavia, na fase processual ele atua de forma complementar a produção de provas realizadas pelas partes. Essa postura proativa do magistrado vai de encontro ao “adversarial system”.
O sistema processual pátrio, de fato, é essencialmente inquisitório, herdado do império romano, com a “cognitio extra ordinem”, e da inquisição perpetrada pela igreja católica durante a Idade Média, motivos pelos quais ele deve ser reformulado.
Urge assim, a necessidade de o inquérito policial brasileiro ser remodelado para que haja a complexa compatibilização entre o respeito aos direitos fundamentais do investigado (garantismo penal) e o aumento nos índices de solução das infrações penais (eficácia na investigação preliminar criminal).
O projeto do novo Código de Processo Penal, no seu Art. 5º, assim prevê essa harmonização, estabelecendo que “a interpretação das leis processuais penais orientar-se-á pela proibição de excesso, privilegiando a dignidade da pessoa humana e a máxima proteção dos direitos fundamentais, considerada, ainda, a efetividade da tutela penal.”
Nesse trabalho se opta pela tese adotada por Luís Flavio Gomes, no sentido de que a investigação deve ficar a cargo da Polícia Judiciária por ser esta mais qualificada para desempenhar eficazmente a investigação preliminar, em virtude, sobretudo, da experiência adquirida. Todavia, devem-se corrigir as distorções existentes no sistema investigatório brasileiro.
Portanto, fez-se a opção pela continuidade do modelo de investigação a cargo da Polícia Judiciária, contanto que haja reformulações nesse modelo. A sua continuidade também foi proposta pelo projeto do novo Código de Processo Penal, inclusive, mantendo a sua presidência pelo Delegado de Polícia.
Tais mudanças só lograrão êxito a partir de quando as Polícias Judiciárias atuarem de forma autônoma e independente funcionalmente, qualificadas através de um programa permanente de capacitação dos seus agentes e reestruturação do seu aparato tecnológico. É necessária também uma seleção criteriosa e metódica de policiais, por meio do advento de um sistema interno de promoção de seus membros, que privilegie a meritocracia e a experiência e por meio de uma justa valorização remuneratória em todos os cargos policiais existentes, não somente para determinadas categorias funcionais.
Manter-se-á, nada mais do que razoável e necessário, o controle externo da Polícia Judiciária, que continuará ser feito pelo Ministério Público, por meio de regras específicas produzidas pelo poder legislativo e não por meio de resoluções internas desse órgão.
Poderia ser instituído um concurso público interno de provas e títulos, que disponibilizaria metade das vagas para o cargo de Delegado de Polícia ou chefe de polícia, com requisito de formação em direito e que tivesse determinado tempo mínimo de serviço policial, por exemplo, três anos de efetivo exercício na atividade policial. A outra metade das vagas seria preenchida por meio de um concurso público externo(modelo que contribui para uma reoxinação da carreira) e teria a exigência da prática jurídica de três anos.
Faz-se necessário, também, o fortalecimento do controle interno da atividade policial, além da criação de um departamento especializado em investigação de crimes funcionais cometidos por policiais em serviço ou em razão do cargo, como já ocorre nalguns estados brasileiros.
Mudanças substanciais são necessárias principalmente porque a eventual adoção de um modelo investigatório presidido pelo MP, com o auxílio da Polícia Judiciária, trará um desequilíbrio processual, atacando o princípio da paridade de armas e o direito de defesa efetiva por parte do investigado. Isso sem levar em consideração o fato de que a investigação a cargo da polícia é mais barata do que as demais e, do ponto de vista prático, é menos parcial do que a realizada pelo MP: titular da ação penal pública e parte processual. “Data vênia”, este está mais interessado em sustentar teses acusatórias do que assegurar um devido processo legal e as garantias que lhe são inerentes.
O Procedimento Investigatório Criminal, procedimento investigatório presidido pelo MP, traz a seguinte mácula: a quebra da igualdade entre as futuras partes processuais. Em razão disso, ele também deve ser reformulado para que haja uma participação mais ativa da defesa durante a realização desse procedimento, desde que não acarrete a ineficácia das investigações.
A implantação desse novo modelo não exclui a possibilidade do MP também investigar, como já ocorre, desde que o Promotor de Justiça que presidiu a investigação criminal e fez a denuncia não seja o mesmo que atue na fase processual.
Portanto, permitir que um órgão investigue e acuse ao mesmo tempo é incompatível com a alegada imparcialidade do MP sobre a qual fundamenta a participação processual do Ministério Público. Assim, uma pessoa deve investigar e outra acusar: ou dois promotores distintos ou a Polícia Judiciária e o Ministério Público.
O Superior Tribunal de Justiça, na súmula 234, firmou entendimento em sentido contrário ao aqui defendido, no sentido de que não há quebra da imparcialidade por parte do órgão ministerial quando o mesmo promotor faz a investigação e a acusação no mesmo caso: “a participação do membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspensão para o oferecimento da denuncia”.
3 A NECESSIDADE DE IMPLANTAÇÃO DA FIGURA DO JUIZ DAS GARANTIAS
Seria necessária também a atuação da figura do Juiz das Garantias na fase pré-processual. Este deverá ser suscitado, grosso modo, nas hipóteses em que há reserva de jurisdição, como por exemplo, busca e apreensão domiciliar, prisões provisórias e interceptação telefônica, e, quando houver questionamento a respeito da prática de ilegalidade durante a investigação criminal.
O Juiz das Garantias foi previsto no Projeto de Lei 156/2009 (novo CPP) do Senado Federal, de autoria do então senador José Sarney. Esse projeto foi aprovado pelo plenário desse órgão em 2011 e remetido a Câmara dos Deputados.
O juiz garante terá a função precípua de fiscalizar a devida observância aos direitos e garantias fundamentais do imputado já na fase da investigação preliminar. Veja a previsão legal supramencionada:
Art. 15. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: I receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5º da Constituição da República; II receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 543; III zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença; IV ser informado da abertura de qualquer inquérito policial; V decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar; VI prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las; VII decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa; VIII prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no parágrafo único deste artigo; IX determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento; X requisitar documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação; XII decidir sobre os pedidos de: a) interceptação telefônica ou do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática; b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado. XIII julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; XIV outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. Parágrafo único. Estando o investigado preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar a duração do inquérito por período único de 10 (dez) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será revogada. Art. 16. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo e cessa com a propositura da ação penal. 1º Proposta a ação penal, as questões pendentes serão decididas pelo juiz do processo. 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz do processo, que, após o oferecimento da denúncia, poderá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso. 3º Os autos que compõem as matérias submetidas à apreciação do juiz das garantias serão juntados aos autos do processo. Art. 17. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 15 ficará impedido de funcionar no processo. Art. 18. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal."
Nessa senda, países como Estados Unidos da América, França e Espanha vêm reformando os ordenamentos jurídicos pátrios, com o objetivo de preservar a imparcialidade do julgador na fase do processo.
O relatório do ex-Senador Renato Casagrande (PSB-ES) explica, com clareza solar, o instituto jurídico do Juiz das Garantias, da seguinte forma:
a ideia é garantir ao juiz do processo ampla liberdade crítica em relação ao material colhido na fase de investigação. O raciocínio é o seguinte: o juiz que atua no inquérito, seja mantendo o flagrante ou decretando a prisão preventiva do 1investigado, seja autorizando a quebra dos dados resguardados por sigilo constitucional, incluindo a interceptação das conversas telefônicas, seja permitindo técnicas invasivas como a infiltração de agentes, pois bem, esse juiz tende, cedo ou tarde, a assumir a perspectiva dos órgãos de persecução criminal (polícia e Ministério Público). Por isso, para que o processo tenha respeitado o equilíbrio de forças e assegurada a imparcialidade do magistrado, seria melhor, na ótica do PLS nº 156, de 2009, separar as duas funções. Além do mais, como teríamos um juiz voltado exclusivamente para a investigação, estima-se que isso se traduza em maior especialização e, portanto, ganho de celeridade. Com efeito, a competência do juiz das garantias cessa com a propositura da ação penal e alcança todas as infrações penais (art. 16), ressalvadas as de menor potencial ofensivo, que seguem o rito dos juizados especiais. Todavia, é preciso ter claro que o juiz das garantias difere do juiz das varas de inquérito policial, hoje instituídas em algumas capitais, como São Paulo e Belo Horizonte. É que o juiz das garantias deve ser compreendido na estrutura do modelo acusatório que se quer adotar. Por conseguinte, o juiz das garantias não será o gerente do inquérito policial, pois não lhe cabe requisitar a abertura da investigação tampouco solicitar diligências à autoridade policial. Ele agirá mediante provocação, isto é, a sua participação ficará limitada aos casos em que a investigação atinja direitos fundamentais da pessoa investigada. O inquérito tramitará diretamente entre polícia e Ministério Público. Quando houver necessidade, referidos órgão dirigir-se-ão ao juiz das garantias. Hoje, diferentemente, tudo passa pelo juiz da vara de inquéritos policiais.
Resta evidente a necessidade de um órgão específico nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais para que haja impugnações das decisões prolatadas pelo Juiz das Garantias, e se evitem arbítrios e ilegalidades por parte deste, bem como que esse controle recursal seja eficiente.
Alguns tribunais, consoante lição de Luís Flavio Gomes[2], “alegarão razões orçamentárias para não se implantar o juiz das garantias”, não se atentando ao fato de que o sistema atual é mais oneroso e deletério do que o previsto na reforma legislativa, mormente porque enseja muitas nulidades, sem contar o desprestígio para a própria justiça criminal.
4 A SUMARIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR E O CONTRADITÓRIO MITIGADO
Parte considerável da doutrina entende que o inquérito policial deva ter uma cognição sumária: grosso modo, deve ser simplificado, do ponto de vista do número de atos (cognição qualitativa) e do ponto de vista temporal (cognição quantitativa). Outros ainda entendem, erroneamente, que não há necessidade do contraditório e da ampla defesa na fase preliminar de instrução.
Segundo Lopes Júnior:
A sumariedade implica a proibição de que o órgão encarregado da investigação preliminar( juiz instrutor, promotor investigador ou polícia) analise a fundo a matéria, ou seja, o fato constante na notícia-crime, de modo que não poderá comprovar de forma plena todos os elementos necessários para emitir um juízo de certeza. Como não se busca a certeza, mas a mera probabilidade, o grau de profundidade com que se investiga, ou o quanto a ser esclarecido, é menor.[3]
O mesmo autor ainda afirma que, nos sistemas processuais modernos, a sumariedade é utilizada para “limitar o nível de cognição do objeto da instrução preliminar,”
No presente trabalho, também se entende que há a necessidade de simplificar a fase pré-processual, não obstante, essa simplificação não pode ser estendida quando da prática de atos investigatórios que influenciam diretamente na formação da “opinio delicti”, tendo em vista que a partir desse juízo fático-jurídico o “parquet” deve ou não oferecer denuncia. Tampouco pode recair sobre atos produzidos durante a fase investigatória que tenham o condão de influenciar diretamente o juiz na rejeição ou não recebimento da peça acusatória. Pode-se citar como exemplo desses atos, o interrogatório do investigado e a oitiva de testemunhas durante a investigação preliminar.
Uma investigação preliminar com garantias mínimas, como o contraditório mitigado, pode acarretar a não deflagração do processo. Isso é menos oneroso para o investigado do que buscar um trancamento do inquérito policial via “habeas corpus” ou esperar o MP não provar a culpa do investigado ao longo da via-crúcis do processo, isso porque este, em si, já é uma pena.
Não raras vezes, o processo penal é utilizado como meio de se punir antecipadamente um indivíduo, visando à eficiência de políticas criminais estatais em detrimento dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Com uma deturpada finalidade de prevenção geral, acaba propiciando a “intimidação” policial aos membros da sociedade. Isso gera estigmatização social e jurídica: um estado prolongado de angústia e níveis elevados de estresse para o imputado enquanto durar a persecução penal.
Segundo Lopes Junior [4], “a difamação pública por meio do processo penal tem o caráter de pena exemplar e dissuasória”. Ao contrário do que ocorre muitas vezes, o IP deve ser manejado como se fosse um filtro processual, evitando, assim, que acusações infundadas e levianas prosperem e não traga maiores prejuízos ao investigado, descartando, de plano, uma acusação infundada.
Nessa senda, o IP tem caráter nitidamente instrumental porque serve de base para o processo penal. Os atos praticados nessa fase investigatória, via de regra, tem caráter interno a essa fase (endoprocedimental), tendo em vista que servem para fundamentar a decretação de medidas cautelares e a instauração ou não do processo.
5 OBRIGATÓRIEDADE DA DEFESA TÉCNICA PARA A PRÁTICA DOS PRINCIPAIS ATOS DA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR E A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA
Na prática, há uma nefasta cultura de a investigação policial privilegiar as teses da acusação em desfavor da busca da reconstrução imparcial dos fatos. Isso faz com que sejam instaurados e desenvolvidos inquéritos e processos criminais temerários.
Esse fenômeno ocorre principalmente porque há uma tendência de rejeição de teses defensivas durante a fase pré-processual, que, se fossem acolhidas preliminarmente, poderiam fulminar com a persecução penal.
Esse fenômeno é típico de um sistema inquisitório que desprestigia uma investigação criminal imparcial e transforma o IP num instrumento a serviço preponderantemente da acusação, em busca de uma utópica verdade (“persecutio criminis imaginarium”), seja ela real ou processual.
Na prática é comum não se respeitar o princípio de presunção de inocência e o princípio da paridade de armas. Este último é um dos princípios basilares do sistema acusatório. No projeto do novo CPP, tentando diminuir essa manifesta vantagem a favor da acusação, foi previsto o instituto da investigação defensiva:
Art. 13. É facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor da defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas. § 1º As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento formal das pessoas ouvidas. § 2º A vítima não poderá ser interpelada para os fins de investigação defensiva, salvo se houver autorização do juiz das garantias, sempre resguardado o seu consentimento. § 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, o juiz das garantias poderá, se for o caso, fixar condições para a realização da entrevista. § 4º Os pedidos de entrevista deverão ser feitos com discrição e reserva necessárias, em dias úteis e com observância do horário comercial. § 5º O material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial. § 6º As pessoas mencionadas no caput deste artigo responderão civil, criminal e disciplinarmente pelos excessos cometidos.
Machado[5] assim conceitua a investigação criminal defensiva: “é instrumento a serviço do defensor do imputado, que lhe permite, desde o início da persecução prévia ou mesmo na eventualidade de sua instauração, recolher dados materiais úteis à defesa dos interesses de seu cliente”.
Com a participação do defensor na fase preliminar da persecução penal se evitaria ou dificultaria a produção de atos investigatórios eivados de vícios ou de provas ilícitas, que “contaminariam” a subjetividade do magistrado no momento do recebimento da denuncia e no julgamento do mérito.
Ocorre que, na sistemática atual há uma tendência de as provas ilícitas só serem desentranhadas dos autos somente após o recebimento da denuncia, depois de “macular” a psique do juiz. Pode-se citar como exemplo disso uma confissão adquirida mediante tortura que geralmente só é desentranhada após o recebimento da peça acusatória.
Na investigação defensiva, o defensor atua de forma preventiva e ajuda a fiscalizar a observância da estrita legalidade durante a investigação preliminar.
É importante que haja o contraditório, por mais que seja mitigado, na investigação preliminar. Deve-se permitir que a defesa solicite diligências ao titular da investigação e, caso sejam negadas deverá haver recurso ao chefe hierárquico imediato do delegado de polícia ou para o Ministério Público, consoante proposta do projeto do novo CPP.
A investigação policial busca quase que exclusivamente, elementos para o embasamento da acusação e o material confeccionado ao longo do IP tem pouca utilidade para a defesa, conforme menciona Lopes Junior[6]·.
Como forma de atenuar essa tendência, o mesmo autor também menciona que:
a legislação alemã e a italiana preveem a obrigação do MP diligenciar sobre fatos e circunstâncias que possam ser favoráveis ao investigado e no sistema italiano ainda existe a possibilidade de o próprio defensor investigar na fase preliminar, isso com o escopo de que determinado meio de prova não se perca durante essa fase, prejudicando sobremaneira a função defensiva ao longo do processo.
Um dos grandes problemas do atual sistema processual penal brasileiro é o fato de que o inquérito policial ocasiona nítidos prejuízos para a defesa, estes quando não são de difícil reparação são impossíveis de serem reparados durante a fase processual. Na práxis, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem dos investigados e até a presunção de inocência deles, não raras vezes, são colocadas em segundo plano pela sociedade e pelo Estado policialesco. Isso sem contar o fato de que é comum a mídia sensacionalista expor indevidamente a imagem do investigado, com shows pirotécnicos que ferem de morte o princípio da inocência, mormente nos casos de delitos graves.
Para evitar esses danos, seria necessária a obrigatoriedade da participação do defensor nos principais atos de investigação criminal, como por exemplo, no interrogatório do imputado e na formulação de quesitos quando da produção de uma prova não repetível (o contraditório diferido não supre a deficiência da não participação do defensor). Evitar-se-ia a prática de alguns vícios corriqueiros perpetrados durante o inquérito policial, bem como o cometimento de ilegalidades e arbitrariedades por parte dos órgãos policiais, adotando, assim, uma postura constitucional e garantista, aprimorando sobremaneira a investigação criminal.
A ideia de que os vícios produzidos durante o inquérito policial não contaminariam o processo é retrógrada e não condiz com o sistema de proteção constitucional e internacional dos direitos humanos. Nessa visão ultrapassada do IP, o contraditório é menos que mitigado: ele é quase inexistente. Nesse viés conservador, os vícios do inquérito seriam “meras irregularidades”, não sujeitas, grosso modo, a nulidades, e seriam posteriormente filtradas(depuradas) à luz do processo.
Recentemente, a Lei 13.245/16 (que altera o estatuto da OAB) trouxe uma substancial mudança no que diz respeito à disciplina das nulidades no inquérito policial ao se admitir a nulidade absoluta em caso de negativa injustificada de assistência do advogado ao seu constituinte durante as investigações, sejam elas de natureza penal, cível ou administrativa. Fato esse que ocasiona, consoante dicção legal, a “nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente”.
6. DIFICULDADES PRÁTICAS NA IMPLANTAÇÃO DAS MUDANÇAS PROPOSTAS E POSSÍVEIS SOLUÇÕES
Quanto às dificuldades práticas na implantação dessa nova sistemática, seria necessária uma etapa de transição, tendo em vista que o Estado brasileiro ainda não dispõe de estrutura suficiente para a sua imediata implantação. Ele não possuiu a quantidade suficiente de juízes para atuar conforme o modelo proposto aqui nesse trabalho, porquanto seriam necessários a atuação de dois juízes durante a persecução penal: um para exercer a função de juiz garante, na fase pré- processual, e, outro para atuar durante o processo.
O projeto do novo CPP, no mesmo sentido, previu dificuldades de ordem prática pra se assegurar um juiz das garantias em comarcas que tenham apenas um juiz. Permitiu-se que um único juiz desempenhasse provisoriamente, no mesmo caso, os papeis de juiz do feito e juiz das garantias.
Outro desafio seria quanto à praticidade na formalização do auto de prisão em flagrante, que, devido o tempo exíguo de 24 horas, poderia, em alguns casos, restar impossibilitado de ser realizado. Para se resolver esse último questionamento é necessária à manutenção de plantões permanentes de Defensores Públicos, assim como de Delegados de Polícia.
Outra possível solução para se resolver esses desafios propostos anteriormente, seria a realização de mais concursos públicos, principalmente para os cargos de Juiz de Defensor Público, Promotor de Justiça e de Delegado de Polícia.
Devido ao fato de que Estado não dispõe de instrumentos aptos a efetivar as garantias constitucionais do imputado, este não deve arcar com a incompetência estatal. Em nome de “controle social” não se pode utilizar o direito penal ou o processo penal como instrumentos de política criminal que não esteja em consonância com um Estado Democrático e Social de Direito.
Diante desse contexto de “flexibilização” indevida dos direitos fundamentais é que se originou o malsinado direito penal do inimigo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho analisou a investigação preliminar criminal no Brasil, dando ênfase ao fenômeno da crise do inquérito policial. Foram demonstradas diferentes propostas de mudanças do modelo adotado pelo Brasil, com destaque nas opiniões de Luís Flavio Gomes e Aury Lopes Junior.
Resta clara a necessidade da efetivação de mudanças substanciais no atual sistema investigatório brasileiro, e, muitas delas devem ir além do aspecto teórico.
A adoção, pelo direito pátrio, de um modelo em que a investigação seja presidida pelo MP (auxiliado pela Polícia Judiciária) acarretará um desequilíbrio processual entre as partes, infringindo o princípio da paridade de armas e o próprio sistema acusatório como um todo.
Levando-se em consideração tais premissas, o mais razoável seria a manutenção da presidência do IP a cargo da autoridade policial (que não é parte processual). Não obstante, não se excluiria a possibilidade do MP também investigar por meio do seu próprio procedimento investigatório criminal, como já ocorre: atribuição investigatória concorrente entre Polícia Judiciária e MP.
Nesse trabalho, optou-se pela tese adotada por Luís Flavio Gomes, no sentido de que o inquérito policial deve ficar a cargo da Polícia Judiciária por ser esta mais qualificada, em virtude da experiência adquirida ao longo do tempo e do menor custo da investigação por ela realizada. Todavia, devem-se corrigir as distorções existentes no atual sistema.
Resta esclarecer que a continuidade desse modelo investigatório a cargo da Polícia Judiciária foi sugerida no projeto do novo CPP, inclusive, a presidência do inquérito policial continuou sendo atribuída ao Delegado de Polícia.
Faz-se necessário também o recrudescimento do controle externo da Polícia Judiciária realizado pelo MP. Todavia, a sua positivação deve ser feita por meio de regras claras e por meio de uma operacionalização eficiente, com previsão em lei em sentido estrito, emanada pelo Poder Legislativo.
A intensificação do controle interno da atividade policial também é de suma importância: fortalecimento da corregedoria e da ouvidoria para se fulminar com o corporativismo, além da criação de um departamento especializado em investigação de infrações administrativas e penais perpetradas por policiais em serviço ou em razão do cargo, como já ocorre nalguns estados brasileiros.
Resta acrescentar que Aury Lopes Junior, de forma diferente da que é defendido no presente trabalho, propõe um sistema ideal em que a presidência do IP ficaria a cargo do Ministério Público.
Há a necessidade de uma cognição efetivamente sumária e a implantação da figura do Juiz das Garantias na fase preliminar da investigação criminal.Outrossim, advoga-se a instauração do instituto da investigação defensiva e a participação obrigatória da defesa técnica nos principais atos investigatórios, como por exemplo, no interrogatório do imputado e na formulação de quesitos quando da produção de uma prova não repetível. A implementação de tais institutos processuais tem como escopo consolidar substancialmente a igualdade entre as partes e preservar a imparcialidade do juiz, em prol do fortalecimento do sistema acusatório.
O Projeto do Novo CPP, embora tenha trazido mudanças significativas no que tange à investigação preliminar, tais como, a figura do Juiz das Garantias e a investigação defensiva, não previu a participação obrigatória de defesa técnica nos principais atos investigatórios e a exclusão física das peças da investigação preliminar para que estas não sejam insertas no processo.
Diante do exposto, permitir que uma mesma pessoa investigue e acuse, no mesmo caso, é incompatível com a alegada imparcialidade do Ministério Público sobre a qual fundamenta a participação processual desse órgão. Portanto, “data venia”, o mais adequado seria uma pessoa investigar e outra acusar: dois Promotores de Justiça ou a Polícia Judiciária e o Ministério Público.
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Notas
[1] Entre os principais autores que contribuíram para o embasamento dessa obra estão: Khaled JR., Aury Lopes JR., Ricardo Jacobsen Gloeckner e Luis Flavio Gomes.
[2] GOMES, Luiz Flávio. O juiz de [das] garantias projetado pelo novo Código de Processo Penal. Disponível em http://www.lfg.com.br – 19 de janeiro de 2010, acesso em 19 de março de 2017.
[3] LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen, Investigação Preliminar no Processo Penal. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 179.
[4] . LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen, Investigação Preliminar no Processo Penal. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 111
[5] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação Criminal Defensiva. 2010. P. 171
[6] LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen, Investigação Preliminar no Processo Penal. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 98.