3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SISTEMAS ECONÔMICOS
3.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ATINENTES À ATIVIDADE ECONÔMICA
Fundamental é, ao se iniciar o estudo jurídico da possibilidade do Estado tabelar ou não o preço de medicamentos e, assim, de outras mercadorias de uso do povo, a análise da estrutura axiológica presente no ordenamento jurídico brasileiro e, em especial, na CF/88, já que os princípios constituem o alicerce do Direito, seja para criação das normas, sua interpretação ou, em última escala, implementação. São, desse modo, o primeiro fator de orientação a ser seguido em qualquer medida encetada pelo Estado, para que se possa garantir a harmonia de todo o sistema. De forma contrária não poderia ser quando da intervenção no domínio econômico e do tabelamento de preços.
Tratando da existência e importância dos princípios dentro de um ordenamento jurídico, Eros Roberto Grau (GRAU, 2002, p. 81), afirma que, mesmo que muitos não se encontrem expressos em documentos legislativos e até mesmo na própria CF/88, não há como negar a sua vivência na referida estrutura, bem assim sua relevância no processo de aplicação do Direito. Isso porque o todo normativo não se compõe só por regras, mas também por princípios jurídicos.
Jerzy Wróblewski, citado por Eros Roberto Grau, tece uma conceituação de "princípio", ressaltando a importância deste dentro de um arcabouço normativo: "(...) como regras, palavras (noms) ou construções que servem de base ao direito como fontes de sua criação, aplicação ou interpretação." (GRAU, 2002, p. 84).
Urge salientar as ponderações de outros autores, mencionados por aquele, com o objetivo de deixar clara a imprescindibilidade de respeito aos princípios em qualquer medida executada pelo Estado, o que inclui a intervenção na economia mediante tabelamento de preços, para que não se constate desvirtuamento dos fitos almejados pela CF/88:
A respeito deles, observa Celso Antonio Bandeira de Mello (...): "3. Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. (GRAU, 2002, p. 86/87).
O autor ainda enfatiza: "Afirma Geraldo Ataliba (...): ‘Mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionada pelos princípios. Eles se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema’." (GRAU, 2002, p. 87).
A importância dos princípios em um sistema jurídico encontra fulcro no fato que o Direito não é um simples amontoado de normas. É, acima de tudo, um sistema e, pois, dotado de unidade e coerência, que se dá pela existência dos referidos preceitos. Dessa maneira, é que a interpretação das disposições constitucionais deve ser feita em concordância com a força existente em cada um dos princípios, o que, indiscutivelmente, deve ocorrer ao se analisar as regras relativas à ingerência do Estado na economia, cuja uma das manifestações é o tabelamento de preço de medicamentos. Relativamente a isso, Jorge Miranda, lembrado na obra de Eros Roberto Grau, assevera:
Jorge Miranda (...): "A acção imediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão a coerência geral do sistema. E, assim, o sentido exacto dos preceitos constitucionais tem de ser encontrado na conjugação com os princípios e a integração há de ser feita de tal sorte que se tornem explícitas ou explicáveis as normas que o legislador constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente". A dominação da interpretação jurídica (interpretação em sentido estrito) pelos princípios é marca que informa, de modo indelével, a distinção que a aparta da compreensão (...) (GRAU, 2002, p. 200).
Quanto à relevância dos princípios na sistematização das normas mestras de condução dos atos humanos em uma coletividade, destaca-se o comentário do professor Celso Ribeiro Bastos: "A doutrina em geral tem reconhecido esse papel saliente e preponderante dos princípios na ordem jurídica, vislumbrando neles mais do que meras normas, justamente por se irradiarem sobre o todo normativo, ao contrário do que ocorre com os meros preceitos ou regras, que se exaurem no comando que expedem" (BASTOS, 1999, p. 452).
É imprescindível, ao se analisar a constitucionalidade ou não do tabelamento de preços de remédios pelo Estado, que se proceda à prévia análise do conjunto principiológico constante na CF/88, a fim de se verificar quais são as diretrizes por ela estabelecidas, na medida em que os citados preceitos se caracterizam como tal, de forma a concluir se a referida medida intervencionista está em conformidade com os dispositivos constitucionais, bem como objetivos.
A Constituição Federal brasileira promulgada em 05.10.1988, ora vigente, sustenta o ordenamento econômico na livre iniciativa, bem como na propriedade privada e na livre concorrência, dentre outros princípios fundamentais, segundo redação de seu art. 170 caput e incisos, o qual se reproduz, não sendo o único a elencá-los, como se verá adiante:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.
Reproduz-se, ademais, a redação dos arts. 1º e 3º, com seus respectivos incisos:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No que respeita à ordenação econômica constitucional, com a qual, destaque-se, relaciona-se, diretamente, a ingerência estatal por meio do
tabelamento de preços de medicamentos, pode-se destacar os seguintes princípios:
a) dignidade da pessoa humana: considerada como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), bem como um dos fitos a serem alcançados pelo ordenamento econômico (art. 170 caput);
b) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa: também eleitos como alicerces da República Brasileira (art. 1º, IV) e da ordenação econômica (art. 170 caput);
c) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária: sendo um objetivo basilar da República Federativa (art. 3º, I);
d) garantir o desenvolvimento nacional: também colocado no status de finalidade da presente Federação (art. 3º, II);
e) erradicação da pobreza e da marginalização, aliada à redução das desigualdades sociais e regionais: outro fim da República (art. 3º, III), sendo este, ainda, um princípio da disciplina econômica (art. 170, VII);
f) liberdade de associação profissional ou sindical: art. 8º;
g) garantia do direito de greve: art. 9º;
h) ditames da justiça social: aos quais se submete a ordem econômica (art. 170 caput);
i) soberania nacional, propriedade e função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte: todos princípios enunciados no art. 170;
j) integração do mercado interno ao patrimônio nacional: em conformidade com a disposição do art. 219.
Alguns constituem-se mais como objetivos, propriamente ditos, como o da "redução das desigualdades regionais e pessoais" e a "busca do pleno emprego". Não obstante o retro afirmado, todos, indubitavelmente, podem ser aceitos como princípios ante o fato de serem preceitos condicionantes da atividade econômica, em todas as suas modalidades, bem como de qualquer ato que lhe diga respeito (à atividade econômica), como é o caso do tabelamento de preço de medicamentos. A CF/88 dispõe, ainda, que a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Desta feita, consagra uma economia de mercado com uma ordem econômica que prioriza os valores do trabalho humano sobre todos os demais. Essa importância objetiva delinear o caminho a ser seguido pelo Estado quando promover a eventuais intervenções na economia (tabelando preços, por exemplo), para que se façam valer os valores essenciais do trabalho, os quais, conjuntamente com a iniciativa privada, representam não somente o fundamento da ordem econômica, mas da própria República Federativa Brasileira (art. 1º, IV).
Além disso, é categórica ao submeter a ordem econômica aos ditames da mencionada justiça, a fim de se assegurar existência digna a todos, indistintamente, atribuindo-lhe conteúdo preciso. Nesse viés, é que se vislumbram alguns princípios vinculados àquela ordem, tais como: defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e pessoais, busca do pleno emprego, dentre outros, já expostos.
Dispondo sobre os princípios mencionados e, em especial os insculpidos no art. 170 da CF/88, e sua relação com a ingerência estatal na economia, o Ministro Moreira Alves assim se posicionou: "As matérias arroladas nos vários incisos do art. 170, como observou Alberto Venâncio Filho, a respeito de preceito similar na Constituição de 1946, constitui, na verdade, o roteiro que deve orientar toda a legislação do Estado no domínio econômico (...)" (ALVES, 1993, p. 42) – o que abrange, conseqüentemente, a figura do tabelamento de preço de medicamentos - E segue asseverando: "(...) sob o ângulo de atividade econômica, a ela se aplicam os princípios gerais da atividade econômica que se encontram nos artigos 170 a 180 que integram o capítulo I do Título VII concernente à Ordem Econômica e Financeira, salvo aqueles que são incompatíveis com os decorrentes da ordem social (...)" (ALVES, 1993, p. 48).
Nesse contexto, insere-se o comentário de Nelson Schiesari:
Como se vê, cuida-se de princípios programáticos, aos quais se deve amoldar toda a legislação correspondente. de seu exame combinado há de concluir-se que as metas na ordem econômico-social do Estado brasileiro, e proclamadas na Magna Carta, são o desenvolvimento nacional e a justiça social, para cuja consecução os instrumentos principais são, em razoável combinação, a livre empresa de um lado e a intervenção controladora ou a gestão direta pelo Estado, de outro lado, como elementos supletivos da iniciativa privada. Vale dizer que o Estado estimulará sempre a iniciativa dos particulares no campo das atividades de produção econômica como norma geral; como exceção, porém, intervirá no processo econômico, ou para fiscalizar e controlar essa atividade, ou mesmo para substituir-se ao particular, se assim for entendido de interesse público (SCHIESARI, 1982, p. 247).
Importa acentuar as ponderações de Fábio Konder Comparato, citado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no que concerne à busca que o Estado deve empreender para que os princípios referentes à ordem econômica e social harmonizem-se de tal forma que se atinjam os fins maiores almejados pela CF/88, quais sejam, preservação da dignidade da pessoa humana e promoção de justiça social, exigência esta que não pode de forma alguma dispor o Estado quando poceder a eventuais tabelamentos de preços de medicamentos, já que, por meio deste, acaba por interferir não só na sistematização econômica, como na social:
A Constituição, com efeito, declara que a ordem econômica deve assentar-se, conjuntamente, na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano. E assinala que o objetivo global e último dessa ordenação consiste em "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput). É em função desse objetivo último de realização da justiça social que devem ser compreendidos e harmonizados os demais princípios expressos no art. 170, a par da livre concorrência, a saber, especificamente, a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (PERTENCE, 1993, p. 81).
Agora, proceder-se-á à análise mais atenta e minuciosa dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, visto serem, dentre todos os até o momento elencados, os que possuem, pela sua própria essência e natureza, como se verá a seguir, maior ligação com a medida de intervenção estatal na economia representada pelo tabelamento de preço de medicamentos, sendo, assim, de maior relevância ao objeto de estudo do presente trabalho.
3.1.1 Livre Iniciativa
Um princípio a ser enfatizado no estudo da intervenção do Estado no domínio econômico manifestada pelo tabelamento de preço de remédios, haja vista sua suma importância neste contexto, é o da livre iniciativa, já anunciado anteriormente. Ele confere às pessoas a liberdade – já que é um desdobramento desta - de escolha da atividade econômica que melhor atenda aos seus anseios. Isso é garantido pelo art. 170, na medida em que assegura a liberdade de iniciativa como um dos esteios da ordem econômica, tornando possível a cada pessoa, individualmente considerada, o desenvolvimento livre do ofício escolhido. Porém, a mencionada liberdade só será legítima na exata proporção em que exercida no interesse da justiça social e, ilegítima, quando seu uso buscar, exclusivamente, puro lucro e realização pessoal do empresário. Logo, sempre que laboratórios farmacêuticos facilitam o acesso a seus produtos para o povo, está-se diante de uma situação de legitimidade, perfeitamente consagrada pelo ordenamento jurídico pátrio. Porém, quando o interesse daqueles é simplesmente a busca por lucros exagerados por parte de seus proprietários, que pode ocorrer pelo estabelecimento de valores muito altos nos preços de certos remédios, evidencia-se um procedimento revestido de caráter completamente ilegal e, ademais, contrário aos objetivos do sistema.
Uma vez que a livre iniciativa consiste em um desdobramento da liberdade, é relevante a consideração do jurista Eros Roberto Grau a respeito desta:
Considerada desde a perspectiva substancial, tanto como resistência ao poder, quanto como reivindicação por melhores condições de vida (liberdade individual e liberdade social e econômica), descrevo a liberdade como a sensibilidade e acessibilidade a alternativas de conduta e resultado. Pois não se pode entender como livre aquele que nem ao menos sabe de sua possibilidade de reivindicar alternativas de conduta e de comportamento - aí a sensibilidade; e não se pode chamar livre, também, aquele ao qual tal acesso é sonegado – aí a acessibilidade. (GRAU, 2002, p. 243).
O jurista ainda ressalta que o diferencial que se vislumbra, hodiernamente, no que tange ao trato da liberdade, é o seu substrato jurídico. Com isso, quer dizer que ela, em suas mais diversas expressões, condiciona-se ao reconhecimento pelo ordenamento jurídico e pela sistematização positivada. Dessa maneira, quem define a sua silhueta é a ordenação jurídica e, neste sentido, referentemente ao Brasil, a CF/88 eleva-a ao patamar de fundamento da República Federativa e da ordem econômica.
Há que se frisar que a Administração Pública não tem autorização para concentrar em suas mãos a titularidade de outorga a particulares do direito ao desenvolvimento de atividades com substrato econômico, tampouco a de fixar a quantidade produzida ou comercializada por empresários que, casualmente, intencionem realizar. Isso devido à redação das disposições constitucionais, no sentido de que a escolha do trabalho a ser desenvolvido, assim como o montante a ser constituído e, futuramente, posto em comércio, devem advir de resolução livre dos agentes econômicos. Destarte, em sendo interessante a determinado profissional, devidamente habilitado, desempenhar a atividade farmacêutica, seja de pesquisa, produção e/ou venda de medicamentos, o Estado não pode impedir-lhe, salvo se verificada alguma irregularidade. Também, a priori, não cabe a este definir o montante da mercadoria a ser produzida, cabendo esta decisão apenas aos laboratórios competentes. O mencionado direito é consagrado no texto da CF/88.
Ademais, conforme enfatiza o professor Eros Roberto Grau, sobre a relevância social deste princípio: "Isso significa que a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso" (grifo nosso), (GRAU, 2002, p. 242). Isso porquanto a República Federativa do Brasil, conquanto reconheça e, mais do que isso, garanta a livre empresa, condiciona o seu exercício, assim como das atividades econômicas, ao bem-estar coletivo. Desta forma, se determinado (ou determinados) laboratório farmacêutico se vale dessa liberdade de iniciativa para buscar apenas a satisfação pessoal de seus proprietários, prevalecendo, assim, o interesse meramente particular sobre o público, não se constata o exercício desse princípio com seu valor social, de promoção do bem da coletividade. Buscando impedir essa situação é que o Estado, não raras vezes, como se têm evidenciado no histórico brasileiro, intervém na economia tabelando o preço de medicamentos produzidos por várias dessas empresas, o que será adequadamente discutido no capítulo seguinte (vide item 4.2).
Além disso, pondera, o autor acima, que a livre iniciativa é um termo com significação bastante ampla, contudo, na forma como foi inserida nas disposições constitucionais, leva à aparente e limitada significação de liberdade econômica ou de iniciativa econômica (GRAU, 2002, p. 243), todavia, face à consagração deste princípio como alicerce da Federação Brasileira e da disciplina econômica (art. 1º, IV), assevera que ela não pode ser considerada, simploriamente, com os sentidos retro ventilados, em decorrência da relevância que possui dentro da sociedade (GRAU, 2002, p. 244).
Relativamente à sua feição de liberdade de iniciativa econômica, cujo titular é a empresa, esta abrange a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e liberdade contratual, sendo prevista no art. 170 caput e parágrafo único da CF/88, como uma das escoras da sistematização econômica. Dentre os vários setores em que se pode exercer essa liberdade de empreendimento e de produção de bens, insere-se o farmacêutico e/ou de medicamentos. Sobre o princípio da livre empresa, tece comentários o professor Celso Ribeiro Bastos: "(...) É o regime, pois, da livre empresa, pelo qual a cada um é dado lançar-se na atividade empresarial por sua conta e risco. As leis que presidem a esta atividade são as de mercado." (BASTOS, 1999, p. 450). Adicione-se a Doutrina de Eros Roberto Grau:
Insisto em que a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa. Pois é certo que ela abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas, e – como averba Antonio Souza Franco (...) – "as empresas são apenas as formas de organização com característica substancial e formal (jurídica) de índole capitalista". Assim, entre as formas de iniciativa econômica encontramos, além da iniciativa privada, a iniciativa cooperativa (art. 5º, XVIII e, também, art. 174, §§ 3º e 4º), a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública (arts. 173, 177 e 192, II). Quanto à iniciativa pública, observa Antonio Souza Franco, reportando-se ao art. 61 da Constituição de Portugal, para dizer que ele "não fala em iniciativa pública, e com razão: pois a iniciativa do Estado e de entidades públicas não poderia caber em nenhuma forma de direitos do homem ou direitos fundamentais" (GRAU, 2002, p. 245).
Dois aspectos devem ser neste passo considerados. O primeiro respeita ao fato de que a referência, sempre reiterada, à liberdade de iniciativa econômica como direito fundamental apenas se justifica quando da expressão – "direito fundamental" – lançamos mão para mencioná-la como direito constitucionalmente assegurado. O texto constitucional não a consagra como tal, isto é, como direito fundamental. Ademais, a liberdade de iniciativa econômica é liberdade mundana, positivada pela ordem jurídica. O segundo, à circunstância de que não há limitação ao direito de liberdade econômica (liberdade de iniciativa econômica), mas, tão somente, à liberdade econômica. Isso porque o regime de liberdade de iniciativa econômica é aquele definido pela ordem jurídica. Vale dizer: o direito de liberdade econômica só tem existência no contexto da ordem jurídica, tal como o definiu a ordem jurídica. Por certo que, na comparação entre ordens jurídicas distintas, poder-se-á afirmar que nesta, em relação àquela, a liberdade de iniciativa econômica é mais - ou menos – dilatada, em decorrência de ser menos ou mais limitada. Não, porém, que o direito de liberdade econômica aqui ou ali seja limitado, neste ou naquele grau. O direito de liberdade econômica é direito integral nos quadrantes da ordem jurídica positiva que o contempla (GRAU, 2002, p. 246/247).
E, destaca que, acima de tudo, a liberdade de iniciativa econômica representa a garantia da legalidade, compreendida como a não submissão a qualquer restrição oriunda do Estado, a não ser que se tenha desenrolado o devido procedimento legislativo, ou seja, em virtude de lei. Em outras palavras: se não houver proibição legal quanto ao exercício do ofício escolhido, o Estado não pode arbitrária e injustificadamente, impedi-lo. No Brasil, em princípio, não há qualquer vedação de medicamentos.
Sem demora, ressalta-se que, conforme anteriormente exposto, a livre concorrência possui outros sentidos, como a manifestação do trabalho humano, decorrente da valorização do laboro livre. Em conseqüência disso, é que a CF/88 elege o valor social da livre iniciativa como uma das bases da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV), e não o seu cunho meramente individualista, visto que não é isto que ela busca com a consagração do referido princípio, do contrário, repudia qualquer ato que afronte ou despreze o interesse público, a fim de privilegiar o privado. E, demais, coloca-o ao lado do trabalho humano (art. 170 caput), sublinhando a importância conjunta de ambos, para que este seja valorizado. Desse modo, é que a estipulação de preços exorbitantes de medicamentos por laboratórios vai de encontro a este objetivo constitucional, uma vez que tão somente quem os dirige é que se beneficia e não a população como um todo. Do oposto, esta acaba por ter o acesso a esse bem imprescindível ao bem-estar e à vida saudável dificultado, quando não impedido, na hipótese do valor do remédio ser incompatível com o seu rendimento salarial. É esse desvio de finalidade que o Estado procura consertar com o tabelamento de preços desse produto (vide item 4.1). Nesse viés, insere-se o ensino de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, lembrado por Eros Roberto Grau em seu livro:
A propósito, as ponderações de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (...): "Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao fracasso a uma ‘estabilidade’ supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois, que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Isso não significa, porém, uma ordem do ‘laissez faire’ (não-interferência do governo na vida econômica), posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho humano. Mas, a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica. Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre iniciativa, que por isso não a exclui a atividade normativa e reguladora do Estado. Mas há ilimitação no sentido de principiar a atividade econômica, de espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao fazê-lo, o Estado a bloqueia e impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas está dirigindo e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado" (GRAU, 2002, p. 248/249).
Ainda, dispondo sobre o caráter social da livre iniciativa, assim como acerca de sua relevância, está o Ministro Moreira Alves:
Embora a atual Constituição tenha, em face da Constituição de 1967 e da emenda Constitucional nº 1/69, dado maior ênfase à livre iniciativa, uma vez que, ao invés de considerá-la como estas (arts. 157, I, e 160, I, respectivamente) um dos princípios gerais da ordem econômica, passou a tê-la como um dos fundamentos dessa mesma ordem econômica, e colocou expressamente entre aqueles princípios o da livre concorrência que a ela está estreitamente ligado, não é menos certo que tenha dado maior ênfase às suas limitações em favor da justiça social, tanto assim que, no artigo 1º, ao declarar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, coloca entre os fundamentos deste, no inciso IV, não a livre iniciativa da economia liberal clássica, mas os valores sociais da livre iniciativa (...) (ALVES, 1993, p. 51).
Corroborando a opinião dos juristas acima elencados, está o doutrinador Hely Lopes Meirelles, acentuando o caráter social do qual deve se revestir a livre iniciativa, no exercício de qualquer ofício de cunho econômico, dentre o qual se inclui a produção e oferta de medicamentos:
No domínio econômico – conjunto de bens e riquezas a serviço de atividades lucrativas - a Constituição assegura a liberdade de iniciativa, mas, no interesse do desenvolvimento nacional e da justiça social, impõe a valorização do trabalho, a harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção e a expansão das oportunidades de emprego produtivo (art. 170), admitindo que a União intervenha nesse domínio para reprimir o abuso do poder econômico (MEIRELLES, 2002, p. 509).
Não há como se admitir, hoje, a supressão da livre iniciativa na seara econômica, pois ela é imprescindível ao ser humano para que este possa se expressar e ter sua dignidade respeitada, já que cabe somente a ele traçar os caminhos de sua vida e de seu destino. Esse princípio viabiliza que cada qual faça suas escolhas de forma livre e deliberada e, por meio das atividades eleitas, exteriorize suas capacidades, potencialidades e qualidades. Nesse contexto, insere-se a ocupação econômica das pessoas, cuja uma das manifestações é a produção e posterior venda de medicamentos, logo, o citado princípio liga-se, necessariamente, a esta atividade e a qualquer ato que lhe respeite.
Em conformidade com o anteriormente exposto, promover-se-á, na seqüência, o estudo separado e detalhado do princípio da livre concorrência, ressaltando-se, além da sua importância dentro do ordenamento jurídico pátrio, a sua relevante e direta relação com o tabelamento de preço de medicamentos.
3.1.2 Livre Concorrência
É precípuo, ademais, na discussão da possibilidade ou não do Estado intervir na seara econômica tabelando o preço de remédios, pontuar o princípio da livre concorrência. Este estimula a competição aberta, previsto no art. 170 da CF/88, como uma orientação a ser obrigatoriamente seguida na estruturação do ordenamento econômico pátrio e, conseqüentemente, sempre que o Estado proceder a tais intervenções. É admitido como uma exteriorização da livre iniciativa, garantida pelo mesmo documento legal, em seu art. 173, §4º:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
(...).
§ 4º. A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
A redação prevê que será reprimido o exacerbamento de poderio econômico voltado à dominação de mercados, supressão de concorrentes e aumento desregulado de lucros, buscando, assim, aniquilar ou, pelo menos, atenuar, a tendência de concentração de capital e bens de produção. Isso se verifica quando empresas ligadas ao setor farmacêutico estabelecem valores muito altos na venda de seus produtos e acabam, desse modo, incorrendo em uma ou mais das situações retro expostas. Entretanto, na medida em que o Estado implementa o tabelamento de preços da referida mercadoria, promove a redução dessa prática maléfica, bem como de seus efeitos prejudiciais ao bem-estar coletivo.
Evidencia-se que os dois dispositivos (livre iniciativa e livre concorrência) se complementam, em um mesmo fim. Na definição do professor Celso Ribeiro Bastos: "Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência dos seus rivais". (BASTOS, 1999, p. 459) – disputa esta que se faz presente no setor de produção e venda de remédios, como não poderia deixar de ser.
Todavia, é fundamental ressaltar que os dois princípios não se confundem, como lembrado por Miguel Reale, no estudo promovido por Eros Roberto Grau:
Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170. Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o ‘princípio econômico´ segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado (grifo nosso), (GRAU, 2002, p. 224).
Tecendo minúcias com referência à livre concorrência, encontra-se Tércio Sampaio Ferraz Júnior, na obra de Eros Roberto Grau:
Mais uma vez recorro à exposição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (...): A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre os outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preços. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada (grifo nosso). (GRAU, 2002, p. 252).
Um dos mais interessantes pontos a se destacar quando da abordagem do princípio da livre concorrência concerne às diversas formas de manifestação que ele pode vir a ter, como no preço de mercadorias e serviços, na qualidade destes, dentre outros exemplos. Isso é o que conduz à atividade concorrencial e de cunho competitivo dos mais variados agentes, os quais acabam por oferecer aos compradores produtos assemelhados, o que, por sua vez, proporciona a otimização de recursos econômicos e preços acessíveis, na exata proporção em que, por meio da concorrência recíproca previne-se o desenvolvimento de lucros excessivos e contrários à ordem instaurada, bem como eventuais abusos que possam ser cometidos referentemente ao poderio econômico. No setor de medicamentos ocorre essa situação de normalidade e legalidade, nas hipóteses em que nenhum laboratório extrapola sua liberdade na fixação do preço dos produtos e, dessa maneira, facilita o acesso a estes para toda a população, promovendo, pois, o bem-estar de todos e não só do fabricante.
Em função do exposto é que a CF/88 determina que, com a utilização dos instrumentos normativos competentes, o Estado aplique as sanções cabíveis e adequadas às pessoas que, por intermédio das atividades econômicas exercidas, acabem por desvirtuar os objetivos da livre concorrência, bem como tentem reduzi-la ou aniquilá-la, e que acabam por se constituir em formas de dominação ilegal de mercado, verificadas pelas tentativas dos agentes econômicos em se esquivar dos ditames da livre concorrência, garantindo para si uma parcela do mercado ou, em alguns casos, a sua integralidade. Isso é vislumbrado quando empresas, geralmente privadas, produtoras de medicamentos cobram valores muito altos para vender seus produtos, obtendo lucros excessivos e impedindo que a coletividade como um todo possa adquirir este bem que é necessário a todos, segregando a oferta de seus remédios apenas àqueles que podem arcar com elevados valores (preços), quando da sua aquisição.
A livre concorrência é fundamental em um Estado Democrático de Direito porquanto assegura a todas as pessoas da coletividade, enquanto consumidores em potencial, o direito de adquirir produtos e serviços a qualidade e preço justos. Por isso que se falou ser este princípio tão relevante no que respeita à fixação de preço de medicamentos por seus produtores, já que quem necessita desta coisa deve poder ter a possibilidade de pesquisar o preço que mais lhe interessa, adquirindo um produto de qualidade e, principalmente, pagando apenas o valor devido. Como lembra Celso Ribeiro Bastos: "E, de outra parte, para quem se lança à atividade econômica, é uma forma de obter a recompensa pela sua maior capacidade, pela sua maior dedicação, pelo seu empenho maior, prosperando, conseqüentemente, mais do que seus concorrentes". Desta forma, percebe-se que quem aufere vantagens não é somente os que necessitam de remédios, mas também as empresas que os produzem e os oferecem.
É precípuo destacar a importância da relação existente entre o princípio da livre concorrência e os preços, visto que a presente monografia aborda uma questão atinente a este (fixação de preço de medicamentos). Quanto a isso, insere-se a doutrina de J. Petrelli Gastaldi: "Os preços são diretamente afetados pela amplitude da livre concorrência nos mercados" (GASTALDI, 1995, p. 210). Essa afirmação consubstancia-se no fato de que os preços não são fatores determinados, e sim um resultado do estabelecido, de forma livre, entre as partes como o equivalente no ato da troca.
Neste sentido, quanto mais próxima da perfeição for a livre concorrência em um mercado, maior será a abundância de mercadorias e menor será o preço, visto que, se a oferta for escassa, apenas adquirirão a rara cousa exposta à venda aqueles que, efetivamente, necessitem dela. É o que acontece quando poucos laboratórios colocam no mercado determinado medicamento. Porém, uma vez aumentada a oferta desse mesmo produto, o seu valor tende ao declínio, face ao aumento no volume de aquisições. Esta fórmula é a ideal, pois permite que todos tenham acesso ao bem, pela viabilidade de arcar com o seu custo, já que razoável.
Logo, ante o acima exposto, pode-se afirmar que o caráter normativo da atuação estatal quando de sua intervenção no domínio econômico tabelando o preço de remédios não pode se desenvolver de forma a aniquilar a liberdade econômica. O que o Estado deve ter sempre como norte no exercício de suas funções é reprimir eventuais condutas que venham a desvirtuar os objetivos estatuídos pela CF/88, bem como por leis infraconstitucionais, no momento em que foram elaboradas as suas disposições.
Especificamente quanto à fixação de preços, seja de remédios ou de qualquer outro bem de uso do povo, muitas vezes imprescindível para evitar abusos de grupos econômicos e outras alterações danosas nos esteios da economia, destaca-se o comentário do professor Gastaldi relativamente à necessidade de observância dos princípios, quando da implementação da referida medida, pelo Estado: "(...) deverá, sempre, obedecer aos princípios técnico-científicos, sem os quais as medidas, objetivando a fixação de preços e a defesa do consumidor, transformem-se em fonte de desajustamento ainda mais acentuados, com inevitável incentivo às fraudes, aos mercados clandestinos e aos crimes contra a economia popular" (GASTALDI, 1995, p. 216).
Além disso, também é tarefa estatal assegurar a eficácia dos princípios açambarcados pela CF/88, obrigação esta pela qual o Poder Público deve primar sempre que proceder ao tabelamento de preço de medicamentos.
Feitas essas considerações, a partir do item vindouro, proceder-se-á à análise dos diversos sistemas econômicos existentes, com enfoque especial ao peculiar do Estado brasileiro, de forma a verificar se este, pelas suas características, abre possibilidade ao Poder Público para intervir na atividade privada, como ocorre quando tabela o preço de medicamentos, tomando, assim, o lugar dos laboratórios pertinentes; ou, de forma diversa, se há liberdade plena e ilimitada aos particulares para estipularem os valores que mais lhe interessem e beneficiem; ou, ainda, em uma última hipótese, se o Estado é o único competente para proceder a essa regulamentação, não deixando margem alguma de liberdade para o setor privado relativamente à questão do estabelecimento de preço de medicamentos e de outras mercadorias imprescindíveis ao consumo popular.
3.2 SISTEMAS ECONÔMICOS
É relevante proceder à análise das diversas modalidades de sistemas econômicos, com enfoque no característico do Estado brasileiro, a fim de se evidenciar se há viabilidade para intervenção deste na atividade econômica de particulares, o que, ressalte-se, ocorre sempre que o Poder Público tabela o preço de remédios, o que, via de conseqüência, contribui para melhor apreciação da constitucionalidade desta medida, lembre-se, tema da presente monografia.
Primeiramente, faz-se necessário definir "sistema econômico" e "modelo econômico":
Sistema econômico como conjunto coerente de instituições jurídicas e sociais, de conformidade com as quais se realiza o modelo de produção e a forma de repartição do produto econômico em uma determinada sociedade. Modelo econômico como configuração peculiar assumida pela ordem econômica (mundo do ser), afetada por determinado regime econômico (GRAU, 2002, p. 234).
Morris Bornstein, citado por José Paschoal Rossetti, em sua obra, arrisca outra definição de "sistema econômico":
Sistemas econômicos são arranjos historicamente constituídos, a partir dos quais os agentes econômicos são levados a empregar recursos e interagir via produção, distribuição e uso dos produtos gerados, dentro de mecanismos institucionais de controle e de disciplina, que envolvem desde o emprego dos fatores produtivos até as formas de atuação, as funções e os limites de cada um dos agentes (ROSSETTI, 2002, p. 158).
Da definição supra, Rossetti infere os principais elementos constituidores dos sistemas econômicos, quais sejam:
a) estoque de fatores de produção: o qual constitui o alicerce da atividade econômica, sendo formado pelas reservas naturais, recursos humanos, capital e capacidades tecnológica e empresarial, sem os quais não há viabilidade de desenvolvimento de qualquer atividade de cunho econômico. Adicione-se a lição do referido doutrinador: "Os estoques desses elementos condicionam a existência e as dimensões do aparelho de produção. Suas qualificações e as formas com que são combinados condicionam a eficiência. E de decisões sobre as alternativas de geração de produtos finais decorrem os padrões de eficácia do sistema como um todo" (ROSSETTI, 2002, p. 158);
b) quadro de agentes econômicos interativos: estruturado pelas unidades familiares, empresas e governo, os quais tomam as decisões referentes às formas de emprego, destinação dos recursos, composição dos produtos gerados, atuando em conformidade com o amontoado institucional que dá base e contorno às suas ações;
c) complexo de instituições: jurídicas, sociais e políticas, é o responsável pela definição das interações estabelecidas entre os agentes econômicos. Sobre este item, destaca-se o comentário de Rossetti:
Nenhum sistema econômico é possível sem que um conjunto de normas jurídicas discipline os deveres e as obrigações dos detentores dos recursos e das unidades que os empregarão. Também não há como prescindir de um conjunto de instituições políticas, que definam as esferas de competência de cada agente, e de instituições sociais, que estabeleçam valores de referência e regras de conduta (ROSSETTI, 2002, p. 158).
Ainda, quanto aos sistemas econômicos, também denominados "ordenamentos institucionais", compreendidos como os modos de organização da atividade econômica, pode-se afirmar que há três modalidades, cujos caracteres e princípios decorrem de um longo processo evolutivo, o qual continua a se desenrolar:
a) economia de mercado: o trâmite econômico se dá por meio da liberdade de empreendimento e da manifestação livre das "forças de mercado", com a mínima ingerência estatal. As suas bases são a racionalidade do homem econômico, as virtudes do individualismo, o automatismo das referidas forças e os ajustamentos pela livre e perfeita concorrência. Neste modelo, os agentes econômicos têm ampla liberdade relativamente à atividade a ser realizada, assim como aos bens produzidos e à sua ulterior destinação, prevalecendo as forças de competição. A propriedade dos meios produtivos é privada, individual ou societária, sendo que cada agente prima pelo alcance das máximas vantagens particulares (interesse próprio), o que constitui a "mola propulsora" do sistema. As decisões são emanadas pelo próprio mercado;
b) economia de comando central: aqui, não há espaço para as "forças do mercado livre", ao contrário, os agentes se submetem a ordens expressas, advindas de comandos centralizados autoritários ou de centrais de planificação, os quais dispõem a respeito dos bens e serviços a serem desenvolvidos, juntamente com a divisão do produto. Quanto aos atos, enfatiza Rossetti: "(...) resultam de decisões de um organismo central que exerce autoridade de comando e controla a economia como um todo" (ROSSETTI, 2002, p. 195). A propriedade dos meios de produção, neste caso, é coletiva ou socializada, restando a figura da competição substituída pelo solidarismo e pela cooperação, de forma a alcançar o bem-comum. A tomada de decisões se procede nas centrais de planificação;
c) sistemas mistos: nestes, constata-se coexistência entre as "forças de mercado" e determinados mecanismos controladores e reguladores, centrados nas mãos de autoridades públicas. Há algumas limitações à total liberdade, sendo as opções sociais, ora resultantes de estímulos do mercado, ora de imposições de órgãos de comando. Uma parcela da produção é apropriada pelo Poder Público, que a redistribui, segundo uma escala de prioridades politicamente construída. Verifica-se a existência harmônica entre as formas de propriedade dos meios produtivos, ocorrendo preponderância do interesse social sobre o privado e, referentemente ao processo decisório, este se desenrola no mercado, sob o poderio regulador da autoridade pública.
Considerando que o presente trabalho refere-se à possibilidade (ou não) de tabelamento de preço de medicamentos, resta imprescindível focar o sistema econômico brasileiro, com vistas a constatar se este abre margem para que o Estado implemente a referida medida, indo, assim, ao encontro dos postulados da ordem econômica e social, ou se ela representa um mero ato de arbitrariedade por parte da Administração Pública, revestido, pois, de total ilegalidade e inconstitucionalidade.
O Brasil, por seu turno, caracteriza-se como um sistema misto, possuindo, destarte, os traços supra-expostos. Assim, constata-se a grande importância dos princípios da liberdade iniciativa e da livre concorrência no que tange ao processo econômico, especialmente no que respeita à possibilidade dos agentes, deliberadamente, elegerem a atividade que mais lhe interessa, assim como o montante a ser produzido e a posterior distribuição ao mercado. Ademais, como cada pessoa busca auferir a maior quantidade de vantagens possível em razão do ofício exercido, é que se promove competição entre os agentes, o que, conseqüentemente, leva à maior variedade de produtos para os consumidores, bem como maior qualidade nos objetos produzidos e escolha do melhor (e menor) preço, conforme lembra J. Petrelli Gastaldi: "o preço que alcança uma mercadoria é menor à medida que aumenta a quantidade dela oferecida no mercado" (GASTALDI, 1995, p. 210/211). Isso acontece no setor de medicamentos, na exata proporção em que os consumidores têm mais opções de produtos de qualidade, podendo, ainda, adquirir aquele cujo preço melhor lhe aprouver.
Todavia, importa ressaltar que essa liberdade dos agentes econômicos não é total e irrestrita. Diversamente, verifica-se considerável interferência do Estado nos assuntos econômicos, o qual se faz presente, dentre as várias situações possíveis, nos casos em que haja desregulação da economia, seja pela supressão da concorrência, pelo aumento indiscriminado de lucros ou dominação do mercado. Aqui, resta imprescindível a atuação estatal, no sentido de implementar as medidas necessárias à regulação da economia, de forma que não exista viabilidade para instalação de nenhuma das citadas anormalidades, já que é seu dever primar pelo bom e harmônico andamento do processo econômico. É isto que ocorre quando ele implementa o tabelamento de preços de medicamentos, como se verá no capítulo que segue (vide item 4.1).
Logo, percebe-se a coexistência entre as liberdades de mercado e instrumentos públicos que as controlam, uma vez que se busca, sempre, a primazia do interesse público sobre o particular.
Feitas essas considerações, vê-se que o sistema econômico agasalhado pelo Estado brasileiro reconhece a possibilidade do Poder Público tabelar o preço de diversos medicamentos e, destarte, intervir no domínio econômico, já que esta representa uma medida de manutenção da harmonia das relações econômicas e de garantia do exercício das liberdades individuais (com ênfase à livre concorrência e livre iniciativa), na busca pelo atendimento dos anseios e das necessidades coletivas.
Apesar de terem sido já traçados alguns dos objetivos do Estado brasileiro ao atuar na economia, é interessante, de maneira a firmar a sua relevância, abordar mais detidamente este assunto, já que é da atuação estatal nesta seara de que trata o tabelamento de preços, objeto de estudo nesta monografia.
Conceituando e destacando a importância da figura do Estado na economia, asseveram Harold C. Edey e Alan T. Peacock, na obra do professor José Paschoal Rossetti:
Um agente coletivo que contrata diretamente o trabalho de unidades familiares e que adquire uma parcela da produção das empresas para proporcionar bens e serviços úteis à sociedade como um todo. Trata-se, pois, de um centro de produção de bens e serviços coletivos. Suas receitas resultam de retiradas compulsórias do poder aquisitivo das unidades familiares e das empresas, feitas por meio do sistema tributário; e a maior parte de suas despesas se caracteriza por pagamentos efetuados aos agentes envolvidos no fornecimento dos bens e serviços à sociedade (ROSSETTI, 2002, p. 166).
O Estado brasileiro, além de interagir com os demais agentes econômicos, é, na definição de Rossetti: "(...) um centro de geração, execução e julgamento de regras básicas para a sociedade como um todo" (ROSSETTI, 2002, p. 166). Dentre as várias normas que ele pode expedir, inclui-se a imposição a laboratórios do valor a ser cobrado pela venda de medicamentos.
Pontuados os fundamentos deste capítulo, encetar-se-á a apreciação da intervenção do Estado no domínio econômico, bem como de demais conceitos que a ele se vinculam, imprescindível ao bom desenrolar do estudo do tema eleito, visto que, como já referido, o tabelamento de preço de medicamentos constitui-se em uma das modalidades daquela. Por isso a importância de sua análise.