1. Princípios, política criminal e sistema democrático
Nas palavras de Nilo Batista, sobre os princípios básicos do direito penal, é comum que os autores procurem deduzir tais princípios, seja de seus conceitos de direito penal, seja das conexões deste com outros ramos do direito, seja de “características” do próprio direito penal, ou ainda situá-los como princípios interpretativos1. Por certo, os princípios reitores são fundamentais para o estabelecimento da política criminal que rege o sistema penal de determinado Estado. Novamente com Batista é possível definir política criminal como um conjunto de princípios e recomendações para reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação2.
Um fundamental exemplo de princípio intimamente ligado às questões de política criminal é o princípio da legalidade3, previsto expressamente em nosso ordenamento jurídico no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal e no artigo 1º do Código Penal. O destacado princípio estabelece a regra de que não há crime sem lei anterior que o defina e nem pena sem prévia cominação legal (nullum crimen, nulla poena, sine praevia lege).
À guisa de exemplo, em uma perspectiva histórica, nota-se que a política criminal conduzida pelo princípio da legalidade não era seguida pelo direito penal nazista, que, através da Lei de 28.jun.35, alterou o Código Penal alemão para incluir a regra que permitia ser “punido quem comete um fato que a lei declara punível ou que é merecedor de punição segundo o conceito que dá fundamento a uma lei penal e segundo o são sentimento do povo; se ao fato não se puder aplicar nenhuma norma penal determinada, deverá ser ele punido de acordo com a norma cujo conceito fundamental melhor se seja aplicável”.
Por certo, quando se permite a flexibilização do princípio da legalidade, admitindo, em geral, interpretações extensivas e analogias incriminadoras, estar-se-á muito mais próximo de um direto penal autoritário, como foi o nazista, do que de um direito penal compatível com o Estado democrático de direito, que tem como pedra angular a necessária limitação dos poderes do Estado através das leis. O princípio da legalidade é a base de sustentação do ordenamento jurídico democrático, pois, garante a prevalência do império da lei sobre o império do poder. Em geral, quanto à amplitude referida, os princípios básicos comprometem o legislador, transitando assim pela política criminal, e os aplicadores da lei – do juiz da Corte Suprema ao mais humilde guarda do presídio –, devendo ser obrigatoriamente considerados pelos que se propõem a estudá-las4.
O desenvolvimento do pensamento penal e suas transformações ao longo do tempo moldaram diferentes discursos de sustentação da política criminal. Do discurso científico (escola positivista) aos discursos sociológicos (funcionalismo, reação social) e os novos direcionamentos em razão da integração dos direitos humanos no plano jurídico interno (princípios constitucionais) e externo (tratados internacionais), o Estado de direito, ao menos em âmbito teórico e declarado, passou a se distanciar de um direito penal de base essencialmente punitivista. Aliás, sobre esse ponto, faz-se sempre necessária a contundente visão crítica de Zaffaroni, apontando que tornou-se comum a descrição da operacionalidade real dos sistema penais em termos que nada têm a ver com a forma pela qual os discursos jurídico-penais supõem que eles atuem, asseverando, ainda, que a programação normativa baseia-se em uma “realidade” que não existe e o conjunto de órgãos que deveria levar a termos essa programação atua de forma completamente diferente5.
No Brasil, por exemplo, resta evidente a declarada política penal repressiva na Exposição de Motivos do Código Penal atual, refletindo o regime autoritário do Estado-Maior de Getúlio Vargas. No plano sociopolítico, como destaca Melchior, ao longo da história brasileira, por exemplo, o emprego da repressão criminal como fim político de constranger as lutas sociais, eliminar pessoas e ideologias contrárias ao poder estabelecido constitui uma constante reafirmação das matrizes autoritárias da formação sócio-cultural do nosso país6. Em maior harmonia com as interações do sistema criminal com os direitos fundamentais da pessoa humana, em uma visão que se submete com sucesso ao filtro axiológico do sistema democrático, de caráter minimalista em seara penal, Fragoso já afirmava que uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele afastando todas as condutas anti-sociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego das sanções criminais7.
Para compreender o lugar de apoio dos princípios que atualmente conduzem a missão do direito penal (intervenção mínima, subsidiariedade, fragmentariedade, entre outros), é importante partir dos movimentos de constitucionalização dos direitos humanos experimentados pelos Estados contemporâneos, que levaram as teorias dos direitos humanos para dentro da ciência do direito penal. Nesse painel, com relevantes referências a Jellinek8 e Alexy9, Bissoli Filho destaca que essa lógica de pensar os direitos humanos fundamentais para o âmbito penal, o status negativo ou status libertatis (Jellinek) ou o direito a ações negativas (Alexy) correspondem à proposta do Estado liberal, de limitação do poder punitivo, viabilizafa, sobretudo, por meio do princípio da legalidade penal, enquanto o status positivo ou status civitas (Jellinex) ou direito a ações positivas (Alexy) correspondem à proposta do Estado social, de proteção de bens jurídicos10.
Situada a importância dos princípios para a construção da política criminal de um determinado sistema e para a definição dos objetivos do direito penal, é fundamental sempre recordar as lições de Alexy, que, dentro do gênero normas jurídicas, realiza a distinção entre regras e princípios. Nesse sentido, segundo o professor da Universidade de Kiel, as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não, assim, se uma regra é válida, então se deve fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Os princípios, por sua vez, são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, ou seja, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível11.
Para Batista, os princípios básicos do direito penal não deixam de ter um sentido programático, e aspiram a ser a plataforma mínima sobre a qual possa elaborar-se o direito penal de um Estado de direito democrático12. Zaffaroni vislumbra que os princípios penais são princípios limitadores da criminalização que emergem do próprio Estado de direito, em especial do sistema republicano13. Por sua vez, em relação à legitimidade do direito penal, Ferrajoli confere aos seus princípios o status de garantias penais ou substanciais, tendo-os como critérios negativos ou limitadores, realizáveis somente relativa e tendencialmente, com o valor de condições necessárias, embora não suficientes, de legitimidade14.
2. Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos
A tutela de bens jurídicos traduz o que Welzel indicou como a função ético-social do direito penal. Nas palavras do jurista alemão, é missão do direito penal amparar os valores elementares da vida em comunidade15. Nesse sentido, o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos orienta o direito penal à proteção dos bens mais relevantes para o homem. São exemplos: a vida, a integridade física, a liberdade sexual, o patrimônio, a propriedade intelectual, a Administração Pública, entre outros. Trata-se de princípio relacionado à função do direito penal, ou seja, à sua missão; e, por isso, tem atuação primordial na condução da atividade legislativa para a criação de normas penais incriminadoras.
O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos ganha grande relevo no momento posterior ao finalismo de Welzel (pós-finalismo), dentro do funcionalismo16 teleológico-racional teorizado por Claus Roxin. No consagrado entendimento de Roxin, consistindo a missão do Direito penal na proteção de bens jurídicos, então o injusto penal deve manifestar-se como o menoscabo de um bem jurídico, isto é, como lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico17. Sobre a definição de bem jurídico, o jurista alemão afirma que são legítimos de proteção pelas normas jurídicos-penais, sempre e quando isso não se possa alcançar de outra forma, as condições individuais necessárias para uma coexistência semelhante (isto é, a proteção da vida e do corpo, da liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.) e também as instituições estatais adequadas para este fim (uma administração de justiça eficientes, um sistema monetário e de impostos saidáveis, uma administração livre de corrupção etc.)18.
Não há fórmulas legais que auxiliem na eleição dos bens jurídicos que merecem a proteção penal, o que ratifica a ligação íntima de tal desiderato às questões de política criminal. Roxin dá um importante norte à questão, anotando que o ponto de partida correto consiste em reconhecer que a única restrição previamente dada ao legislador se encontra nos princípios presentes na Constituição19. No painel brasileiro, a Constituição de 1988 tem base antropológica20, o que significa dizer que o indivíduo é a sua medida maior, ou seja, é a principal referencial estruturante do sistema jurídico. O referencial humanista está ancorado expressamente no inciso III do artigo 1º, que coloca como fundamento do Estado democrático de direito brasileiro a dignidade da pessoa humana, que se estabelece como o principal critério dado pela Carta Magna ao legislador para legislar penalmente.
3. Princípio da intervenção mínima
O direito penal só deve ser utilizado pelo Estado quando estritamente necessário, mantendo-se subsidiário em relação aos outros instrumentos estatais disponíveis e fragmentário em relação à ofensa aos bens jurídicos. É nesse sentido que Cirino do Santos afirma que o Direito Penal protege bens jurídicos apenas em ultima ratio: por um lado, proteção subsidiária porque supõe a atuação principal de meios de proteção mais efetivos do instrumental sociopolítico e jurídico do Estado; por outro lado, proteção fragmentária porque não protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República e protege apenas parcialmente os bens jurídicos selecionados para proteção penal21.
Por certo, o direito penal representa a violência estatal, sendo o mecanismo que intervém de maneira mais incisiva na esfera individual do indivíduo. Por isso, para que violência organizada do Estado seja legítima, é preciso que ela seja a mínima necessária. O princípio da intervenção mínima só justifica a utilização do direito penal quando a prática de determinada conduta representa uma violência maior do que a violência da sua punição legal. Em outras palavras, a intervenção mínima será atendida quando deixar de punir penalmente determinado comportamento puder provocar maior inquietude social do que a violência da própria pena.
Com raízes nos movimentos políticos de ascensão da burguesia do século XVIII, o princípio da intervenção mínima é de tradição iluminista, fruto da reação contra o sistema penal do Estado absolutista, que procurou limitar o máximo possível a intervenção estatal na esfera individual do homem. É nesse contexto que o princípio foi previsto expressamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em posição de destaque merecida ao lado do princípio da legalidade, em seu artigo 8º, rezando que “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”.
Como vislumbra Muñoz Conde, o princípio da intervenção mínima se converte, assim, num princípio político-criminal limitador do poder punitivo do estado22. Não tem previsão explícita no ordenamento jurídico brasileiro, mas faz parte necessariamente da política criminal própria de um sistema democrático, onde o valor maior é a dignidade da pessoa humana, que somente será assegurada quando a intervenção estatal na esfera individual, por instrumentos penais, for a mínima necessária, em regime de exceção. Pontualmente, Batista afirma que este princípio possui compatibilidade e conexões lógicas com pressupostos políticos do Estado de direito democrático23.
O princípio da intervenção mínima é diretamente ligado ao movimento do minimalismo penal, que, dentro do âmbito da política criminal, orienta que o direito penal deve ser usado da forma mínima necessária, justamente por concretizar as intervenções em direitos individuais mais drásticas à disposição do Estado. É importante destacar que o minimalismo não chega a adotar postura abolicionista, pois reconhece o direito penal como instrumento necessário, mas procura apresentar alternativas de sua redução que respeitem a dignidade humana. Vale destacar que os modelos teóricos mais importantes do minimalismo penal foram construídos por Alessandro Baratta, Eugênio Raul Zaffaroni e Luigi Ferrajoli.
Interessante observar que Ferrajoli desenvolve o conteúdo limitador correspondente ao princípio da intervenção mínima sob outra denominação, como princípio da necessidade ou da economia das proibições penais, e, a partir daí, afirma que se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidadãos e de minimizar a violência, as únicas proibições penais justificadas por sua “absoluta necessidade” são, por sua vez, as proibições mínimas necessárias, isto é, as que comportam, suporiam, uma maior violência e uma mais grave lesão de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal24.
Como já destacado, a subsidiariedade e a fragmentariedade integram o conteúdo do princípio da intervenção mínima, mas podem ser abordados individualmente, também em caráter principiológico.
4. Princípio da subsidiariedade
O princípio da subsidiariedade orienta que o direito penal só deverá intervir quando os instrumentos jurídicos de natureza diversa forem ineficazes, pois se trata do mecanismo mais violento à disposição do Estado. Logo, o direito penal é subsidiário em relação aos outros ramos do Direito, é a ultima ratio, utilizado somente diante da impotência dos outros instrumentos estatais. Caso outro mecanismo de pacificação social seja suficiente para responder satisfatoriamente à uma determinada lesão a um bem jurídico, o uso do direito penal será ilegítimo.
Nessa linha, Roxin denomina o direito penal como remédio sancionador extremo, tratando-o como a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado25. No mesmo caminho, Muñoz Conde assevera que a intervenção do direito penal se dá unicamente quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do direito26.
Como exemplo de incidência da subsidiariedade, é possível citar a conduta que poderia ser classificada como dano culposo, e que, no ordenamento jurídico brasileiro, é satisfatoriamente respondido através do direito civil, não constituindo fato típico penal (diferente do dano doloso, incriminado no art. 163. do CP).
5. Princípio da fragmentariedade
A fragmentariedade, como princípio, conduz o direito penal a só intervir quando houver relevante e intolerável lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico essencial. Assim, a proteção penal não atua em razão de qualquer ofensa a um bem jurídico, mas apenas em reposta àquelas graves suficientes para justificar a excepcional intervenção que promove. Como lembra Batista, quem registrou pela primeira vez o caráter fragmentário do direito penal foi Binding, em seu tratado de Direito Penal Alemão Comum – Parte Geral (1896), e, desde então, a fragmetariedade passou a acompanhar as correntes minimalistas que procuram reduzir a intervenção penal, propondo alternativas mais humanitárias.
É importante observar que o princípio da fragmentariedade promove uma verdadeira seleção de lesões, descartando aquelas que não representam um painel relevante e intolerável à sociedade, ou que a ofensa que representa pode ser satisfatoriamente respondida por outros instrumentos estatais. Apenas para comparar e destacar a harmonia no sistema principiológico democrático, nota-se que, enquanto o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos realiza uma seleção de bens jurídicos que a lei penal deve tutelar, o princípio da fragmentariedade (ou da intervenção mínima, em sentido mais amplo) realiza uma seleção das ofensas que a lei penal deve incriminar.
Da fragmentariedade do direito penal extrai-se outros dois princípios: o princípio da adequação social e o princípio da insignificância (ou bagatela). Portanto, todos estes princípios, incluindo o princípio da subsidiariedade, encontram-se contextualizados dentro da incidência de um princípio mais amplo, direcionador da política criminal que os conduzem: o princípio da intervenção mínima, inerente ao sistema jurídico penal do Estado democrático de direito.
6. Princípio da adequação social
De acordo com o princípio da adequação social, o direito penal não pode ser aplicado em relação à conduta socialmente adequada, mesmo que esta possua adequação típica formal. Em outras palavras, um comportamento aceito pela sociedade não lesiona um bem jurídico, mesmo que se subsuma formalmente a uma norma penal incriminadora. Este princípio foi concebido por Welzel, segundo o qual ações que se movem dentro do marco das ordens sociais, nunca estão compreendidas dentro dos tipos criminosos, nem mesmo quando elas estão subsumidas a um tipo mediante interpretação literal, denominando-as de ações socialmente adequadas; explicando, ainda, que socialmente adequadas são todas as atividades que se movem dentro do marco das ordens éticos-sociais da vida social, estabelecidas através da história27.
O princípio pode ser utilizado tanto para que o legislador faça a seleção adequada das condutas penalmente relevantes e intoleráveis para criminalização, como também como regra de interpretação, dirigia ao julgador na apreciação de casos concretos, na análise da tipicidade penal. Sobre o seu papel, Cirino dos Santos esclarece que a opinião dominante compreende a adequação social como hipótese de exclusão de tipicidade, mas existem setores que a consideram como justificante, como esculpante, ou como princípio geral de interpretação da lei penal28. Poderiam ser considerados como exemplos as pequenas lesões desportivas (lesão no futebol), a circuncisão realizada em algumas religiões; o furar de orelha de uma criança para uso de brincos; os trotes acadêmicos, entre outros.
No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, em relação à discussão da aplicação da adequação social para afastar o crime contra propriedade intelectual das condutas de venda de “produtos piratas” (falsificados), editou a súmula 502, firmando seu entendimento no sentido de que “Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no artigo 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas”. A negativa de aplicação do princípio da adequação social tem como um dos fundamentos mais robustos o confronto com o princípio da legalidade, que só admite revogação de lei penal mediante outra lei penal. Nesse sentido, vale lembrar que, por força da legalidade, em direito penal não se revoga norma penal em razão de costumes, circunstância que se aproxima do que se poderia tratar de conduta socialmente aceita.
Sobre a dificuldade de encontrar um lugar à adequação social dentro de um ordenamento jurídico regido pela legalidade, Greco pontua que embora sirva de norte para o legislador, que deverá ter a sensibilidade de distinguir as condutas consideradas socialmente adequadas daquelas que estão a merecer reprimenda do Direito Penal, o princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais incriminadores. Mesmo que sejam constantes as práticas de algumas infrações penais, cujas condutas incriminadas a sociedade já não mais considera perniciosas, não cabe, aqui, a alegação, pelo agente, de que o fato que pratica se encontra, agora, adequado socialmente. Uma lei somente pode ser revogada por outra, conforme determina o caput do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil29.