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Carência de ação e coisa julgada:

análise da relação direta entre a sentença de carência de ação e o mérito da demanda

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Não obstante o pensamento dominante segundo o qual o direito de ação é disponível, pouco se analisa no dia-a-dia forense acerca da possibilidade de uma sentença que julgue o processo extinto por carência de ação tornar-se imutável.

1. Considerações iniciais

O presente artigo trata de tema controverso, verdadeira área nebulosa na doutrina processual civil brasileira atual. Não obstante o pensamento dominante segundo o qual o direito de ação é disponível, decorrência direta de sua formulação abstrata, pouco se analisa no dia-a-dia forense acerca da possibilidade de uma sentença que julgue o processo extinto por carência de ação tornar-se imutável, decorrência do manto protetor da coisa julgada material. Com base em ensinamentos doutrinários e, felizmente, também em algumas manifestações jurisprudenciais, procuramos aqui demonstrar a possibilidade de uma sentença que declare o Autor "carecedor de ação" tornar-se, sim, imutável. Outrossim, torna-se necessária a análise conjunta dos institutos da carência de ação e da coisa julgada (o que procura-se fazer em breves tópicos), para o entendimento satisfatório da presente proposição, que já demonstra possuir adeptos de peso na Ciência do Direito Processual Civil.

Bem se sabe que a carência de ação é um fenômeno que somente passou a existir, positivamente, com o advento do Código de Processo Civil de 1973, diploma legal que sofreu, diretamente, as influências então recentes do italiano Enrico Tullio Liebman, eminente processualista peninsular, que passou alguns tempos no Brasil para se resguardar dos horrores da II Guerra Mundial. Liebman, como grande processualista, procurou conciliar a teoria concreta [1] com a teoria abstrata [2] da ação, por meio de uma construção científica que veio a chamar de teoria eclética [3] da ação.

Segundo a teoria eclética, a ação era, de fato, um direito abstrato, incondicionado, passível de exercício por qualquer pessoa, independente da existência efetiva ou não de um direito subjetivo. Era a ação, pois, nas palavras de Couture, "algo inerente à própria condição de cidadão". Entretanto, Liebman argumentava que o direito processual não poderia, nunca, ter uma autonomia tão grande que viesse a desligá-lo do direito material, razão pela qual determinou a exigência de três condições à ação, para que esta pudesse ser, efetiva e legitimamente, exercida. São as três condições da ação, pois, a Possibilidade Jurídica do pedido (rectius da demanda), a Legitimidade ad causam, e o Interesse Processual.

Não obstante as conceituações do mestre italiano, toda doutrina deve ser analisada com base no Ordenamento para a verificação de sua veracidade e coerência. Assim, nada mais lógico do que utilizar a Constituição como ponto de partida da análise da teoria eclética. E é da leitura do texto elaborado pelo legislador constituinte de 1988 que constatamos a presença de um direito constitucional de ação, representado pela garantia de que "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"(Art. 5º., XXXVI da CF/88).

Dessa forma, constatamos a existência de um segundo direito de ação: o direito constitucional de demandar, que se contrasta com o chamado direito processual de ação. Este é o que se sujeita às condições da ação, para que haja o julgamento meritório. Considera-se direito condicionado: sofre restrições à análise do mérito, por parte do ordenamento, em contraste com o direito incondicionado de ação (garantia constitucional), que assegura o direito de demandar a qualquer pessoa.

Estando definidas as premissas básicas do presente estudo, passaremos a analisar, mais pormenorizadamente, a carência de ação, a coisa julgada e, posteriormente, a relação que existe entre ambos os institutos.


2. Carência de ação

"Carência" significa "ausência, falta" [4]. Para Liebman, por ser o direito processual de ação o direito de provocar a jurisdição, sempre que houvesse ação, deveria haver, como na lei de Newton, uma reação. Tal reação seria a tutela jurisdicional. Entretanto, para o professor italiano, só há verdadeira tutela jurisdicional quando do julgamento de mérito. Assim, quando não houvesse extinção do processo por julgamento de mérito, haveria "carência", inexistência de ação. Embora o autor, nesse caso, tivesse exercido a ação incondicionada, ou seu também chamado "direito de petição", haveria por não ter exercido seu direito processual de ação. O exercício do direito processual presume o exercício do direito de petição, embora a recíproca não seja necessariamente verdadeira.

Dá-se a carência de ação quando o Autor deduzir pedido que seja, jurídica ou faticamente, impossível, quando for parte ilegítima, ou quando não houver, por sua parte, interesse processual. Passemos a explicar, assim, cada uma destas condições da ação.

2.1 Possibilidade jurídica do pedido (demanda)

Consiste a possibilidade jurídica do pedido, segundo o douto Arruda Alvim, na "verificação se o pedido é, abstrata ou idealmente, contemplado pelo ordenamento, senão vedado pelo mesmo" [5]. Dessa forma, sempre que o autor fizer um pedido que não se encontra vedado, implícita ou explicitamente, pela ordem jurídica, estará preenchida a referida condição da ação. Tal requisito se mostra extremamente polêmico. Liebman, o formulador da teoria eclética da ação, considerava pedido possível como aquele pleito sobre o qual o juiz poderia emitir um julgamento meritório, uma vez que permitido pelo mesmo ordenamento que o investe na função de órgão jurisdicional. Dava ele os seguintes exemplos [6] de pedidos juridicamente impossíveis: divórcio dos cônjuges, prisão por dívidas, anulação de ato administrativo [7].

Entretanto, em 1973, quando da 3.ª edição de seu Manuale, Liebman excluiu a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação. Tal se deve à superveniência, na Itália, de lei que autorizava o divórcio. O mestre italiano, então, passou a considerar todas as outras hipóteses de provimento jurisdicional vedado pela lei como ausência de interesse processual [8].

Apesar disso, a doutrina, por expressa disposição do CPC, continua a adotar a exigência de possibilidade no pedido como uma das condições da ação. Prevalece, então, a visão de Liebman acerca do próprio direito positivo brasileiro, com as peculiaridades que a ele são inerentes.

A nosso ver, a denominação da condição da ação em tela como "possibilidade jurídica do pedido" carece de maior rigor lingüístico. Corroboramos com doutrinadores como Cândido Dinamarco [9] e Nelson Nery Jr. [10], que entendem que o termo "pedido" deve ser entendido de forma mais abrangente possível, no sentido de se englobar, também, os outros elementos identificadores da ação, como a causa de pedir e as partes.

Notadamente, a impossibilidade jurídica pode decorrer, diretamente, de qualquer dos elementos identificadores da demanda: das partes (execução contra pessoa jurídica de direito público), do pedido (ação declaratória de existência de mero fato) e da causa de pedir (ação de cobrança de dívida de jogo). Mais apropriado seria, então, denominar tal condição da ação como possibilidade jurídica da demanda.

Tomemos o exemplo mais corriqueiro de impossibilidade jurídica do pedido no ordenamento jurídico: a dívida de jogo. Se X, credor da dívida, demanda Y, devedor, tal demanda não poderá prosperar, por ser impossível. Entretanto, analisando o pedido, nota-se que X pediu, tão somente, a condenação de Y a pagar uma certa quantia em dinheiro. O pedido é perfeitamente possível. Entretanto, nesta demanda específica, a impossibilidade reside na causa de pedir, qual seja, existência de dívida ilícita.

Outros exemplos de demandas juridicamente impossíveis, encontrados na doutrina: ação de mandado de segurança contra ato de particular [11], mandado de segurança contra lei em tese (a lesão deve ser a direito líquido e certo individual, não geral), ação de usucapião de imóvel urbano, havendo a posse por mais de oito anos [12], ação que tenha por objetivo a anulação do ato administrativo com a análise de seu mérito [13], etc.

Questão interessante é a idéia propalada pela doutrina, segundo a qual a vedação do pedido deve ser expressa. Ora, nada mais incorreto. Concordamos que a vedação deva ser expressa somente no sentido de claramente vedada pelo sistema normativo, e não expressa literalmente na norma jurídica. Tome-se o exemplo da Ação Rescisória, cuja causa de pedir deve-se limitar somente aos incisos do artigo 496. Tal artigo, de uma forma lógica, contém duas significações: uma segundo a qual aquelas causas podem ensejar a rescisória, e outra segundo a qual outras causas não preenchem os requisitos legais. Não há regra expressa dizendo isso, mas trata-se de uma interpretação puramente lógica.

2.2 Legitimidade ad causam

Consiste a legitimidade ad causam, ou legitimidade material, na correspondência entre os partícipes da relação jurídica processual e da relação jurídica material. Em outras palavras, sempre se fará presente a legitimidade quando os titulares da relação jurídica discutida em juízo estiverem presentes no transcorrer do processo. Em uma ação revisional de contrato, por exemplo, as partes legitimadas para discutir em juízo aquele ato serão aqueles que a ele aderiram (relação material).

Acerca desta condição da ação, faz-se mister lembrar dos ensinamentos de Francesco Carnelutti [14], o qual faz a diferenciação entre a legitimidade na relação jurídica de direito material (entre credor e devedor, por exemplo) e a legitimidade processual (legitimidade para estar em juízo). Não menciona, porém, a legitimidade para agir em juízo, (ad causam), que difere da legitimidade ad processum. Entretanto, tal omissão se vê corrigida pelas palavras escorreitas de Liebman:

A legitimação para agir é pois, em resumo, a pertinência subjetiva da ação, isto é, a identidade entre quem a propôs e aquele que, relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente), poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi chamado em juízo. [15]

Explicitemos, agora, o conceito de legitimidade. Diferentemente da capacidade, a legitimidade é uma qualidade relacional. Um bom exemplo para ilustrar tal assertiva é a ação de investigação de paternidade, proposta por filho havido fora da relação conjugal. A doutrina de direito de família anterior à CF/88 denominava o filho tido fora do casamento como "filho ilegítimo". Nota-se que ele é qualificado como ilegítimo justamente por não dizer respeito àquela relação jurídica de direito material que é o casamento.

A legitimidade, assim, decorre da posição de uma pessoa em relação à outra. Dessa forma, um professor de direito processual civil é legitimado para dar aula de tal matéria para alunos do curso de direito de uma faculdade. Caso, por exemplo, vá a uma sala de alunos do curso de administração da mesma instituição, para dar aula de economia, notadamente não possuirá legitimidade para fazê-lo [16], uma vez que seu contrato de prestação de serviços para a faculdade (relação jurídica de direito material) lhe dá legitimidade para dar aulas de processo civil (e não de economia) aos alunos de direito (e não de administração), e nada mais além das práticas normais de um professor daquela disciplina.

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Conclui-se, pois, que haverá legitimidade para agir sempre que a pessoa que propuser a demanda e a pessoa que nela for indicada como réu (ou ré) forem os sujeitos que participam da relação jurídico-material deduzida em juízo, objeto da controvérsia. Justifica-se a legitimidade como condição da ação, uma vez que somente quem pratica um ato (ou deixa de praticá-lo), ou sofre uma lesão em seu direito pode demandar ou ser demandado. Caótico seria que o Direito admitisse, como regra, que pessoas completamente estranhas à relação de direito material pudessem dispor sobre direito alheio. Seria o fim do princípio da segurança jurídica. Por isso, salutar é a redação do artigo 6º. do CPC: "Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei"

2.3 Interesse processual

Costuma-se dizer que o interesse processual, ou interesse de agir, é aquele que nasce no momento em que se demonstra impossível realizar, pelas vias extrajudiciais, uma pretensão primária. Deve pressupor, pois, uma lesão de direito.

Tal assertiva, porém, remete a conceitos da teoria civilista da ação, imortalizada no artigo 75 do Código Civil. Na verdade, ao se afirmar que o interesse processual só existe quando da lesão de direito, está sendo afirmado, em outras palavras, que a jurisdição é uma atividade secundária, ou seja, só pode se provocada por quem possui uma pretensão secundária, resistida, ou seja, uma lide. Para aclarar ainda mais a questão, deve-se levar em conta a lição de Dinamarco: "o famoso caráter secundário da jurisdição só constitui realidade quando se trata de seu exercício com relação a pretensões que poderiam ter sido satisfeitas por ato do obrigado (prestação)" [17].

Partindo para uma análise mais condizente com o Ordenamento Jurídico moderno, nota-se que pelo CPC de 1973 e pela Constituição de 1988 a ação é considerada como um direito abstrato de provocar a jurisdição. Assim, sob uma ótica abstratista, ou, segundo a nomenclatura de Liebman, eclética, o interesse processual pode ser considerado como a utilidade da tutela jurisdicional pretendida pela parte.

Costuma-se dividir o interesse processual em interesse-necessidade e interesse-adequação.

O interesse necessidade é o interesse que decorre da própria imprescindibilidade de utilização do aparato estatal da jurisdição. Desde que o estado chamou para si a responsabilidade de resolução dos conflitos sociais, por meio da jurisdição, subtraindo do particular a utilização do manus militari, a jurisdição se mostrou imprescindível para aqueles que não conseguiram ver sua pretensão realizada pela mera observância das normas de direito material.

Explicitando um pouco a assertiva, caso o resultado pleiteado no pedido inicial não venha a trazer alguma utilidade ao Autor, não existe a condição da ação em epígrafe. Tomemos como exemplo uma relação jurídica contratual que origina uma dívida pecuniária, a ser paga, conforme o acordo de vontades, em 10 prestações. Caso a primeira prestação venha a vencer em um ano, e mesmo assim o credor (agora autor) ajuíze demanda de cobrança, não haverá, por sua parte, interesse processual, pela única razão de que eventual sentença condenatória lhe será inútil.

O interesse-adequação consiste na exigência de que a tutela pretendida possa gerar efeitos de forma que resolva o conflito. Tutela inadequada é tutela inócua, e como tal, só tende a desmoralizar o Estado Democrático de Direito. Tome-se por exemplo o caso de X, credor, e Y, devedor. Caso Y tenha dado um cheque a X, no valor de R$ 1.000,00, e X venha a propor uma demanda de conhecimento, com fins de obtenção de um título executivo judicial, X será, sem dúvida, carecedor de ação, por não possuir interesse processual-adequação.

Por não haver distinção de qualidade entre os títulos executivos extra-judiciais (cheque) e judiciais (sentença), seria completamente inútil, por inadequação, para X uma tutela que lhe dê um segundo título executivo, por já possuir um. Deve ele, logo, propor demanda com fins de execução do patrimônio de Y, sendo este o procedimento adequado. No mesmo exemplo, consideremos que Y deva a X a importância de R$ 1.000,00, dívida reconhecida por um contrato de confissão, assinado tão somente pelas partes. Caso X proponha demanda executiva, será carecedor de ação, uma vez que não há execução válida sem título.

Para tal se realizar, deveria o contrato estar assinado por duas testemunhas. Robustecendo o segundo caso, inexiste interesse processual, por inadequação procedimental, quando uma pessoa que mantenha contrato de seguro de automóvel proponha ação de execução em face do ente segurador, tendo em vista que os únicos contratos de seguro "executáveis" são os de seguro de vida e de acidentes pessoais.


3. Coisa julgada material

Para que possamos adquirir um conhecimento satisfatório acerca da coisa julgada, se demonstra imprescindível sua delimitação. Tanto o Código de Processo Civil quanto a Lei de Introdução ao Código Civil incidiram no erro de positivar o conceito do instituto em debate.

A LICC já prescrevia, em seu artigo 6.º parágrafo 3.º que "chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso". Tal definição não se demonstra muito apropriada, pois uma decisão interlocutória, por exemplo, é decisão judicial, igualmente à sentença. Caso tal conceito fosse o correto, não haveria necessidade da existência da ação declaratória incidental, uma vez que todas as decisões de questões prejudiciais se acobertariam sobre o manto da imutabilidade.

Já o Código de Processo Civil, em seu artigo 467, define a coisa julgada material: "Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário". O CPC incide em erro mais grave que a LICC, uma vez que atribui como sendo qualificadores da coisa julgada material característica próprias da coisa julgada formal. Ainda, demonstra-se equivocado o referido artigo por confundir a eficácia da sentença com a sua imutabilidade, atributos completamente distintos.

Cumpre aqui coroarmos a sábia lição do douto magistrado e processualista capixaba Cleanto Guimarães Siqueira: "No processo civil, enquanto realidade social dinâmica, e por isso mutável, deve prevalecer, em caso de confronto, a concepção teórica sobre a legislativa" [18].

Assim, dada a imprecisão do legislador, coube à doutrina elaborar um conceito que servisse de guia para os operadores do Direito. A respeito do tema, formaram-se duas correntes majoritárias de pensamento. Uma delas considera a coisa julgada como um efeito da sentença, que a torna efetiva e imutável. A outra considera a coisa julgada como uma qualidade de tais efeitos (ou uma qualidade do próprio ato jurisdicional) que lhe confere o dom da imutabilidade [19]. Credita-se a segunda posição, a dominante na doutrina processual brasileira, às análises precisas de Enrico Tullio Liebman, na obra Eficácia e autoridade da sentença.

Os inúmeros doutrinadores pátrios não discordam muito quando da atribuição de um conceito à coisa julgada. Vicente Greco Filho a considera como "a imutabilidade dos efeitos da sentença, ou da própria sentença que decorre de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis" [20], adotando, visivelmente, posição conciliatória entre as opiniões de Liebman (qualidade dos efeitos da sentença) e Barbosa Moreira [21] (qualidade da própria sentença).

Ovídio Baptista da Silva faz comentário importante, ao lembrar que a coisa julgada é fenômeno exclusivo do Poder Judiciário, já que todos os atos dos demais Poderes da República são passíveis de revisão pelos órgãos jurisdicionais, dado o princípio constitucional da inafastabilidade do Judiciário. Mais adiante, define a coisa julgada como "a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias impedindo que se modifique, ou discuta, num processo subseqüente, aquilo que o juiz tiver declarado como ‘a lei do caso concreto’". [22] Ressalta, o mestre gaúcho, o caráter normativo negativo da coisa julgada, sendo lei entre as partes, indiscutível em processos futuros.

Marcelo Abelha Rodrigues, em obra publicada [23], acolhe totalmente a definição de Liebman. Entretanto, em crítica ao conceito enumerado no artigo 467 do CPC, manifesta-se no sentido de ser a coisa julgada "a qualidade imutável da parte dispositiva da sentença, não mais sujeita a nada, dada a preclusão máxima" [24]. Quando se fala em "nada", entendemos que esteja-se falando sobre "nenhum recurso". Ressaltamos a precisão do conceito proporcionado pelo jovem professor, que dá uma noção exata sobre o instituto, não comportando tal definição, a nosso ver, qualquer reparo.

Acreditamos que a coisa julgada seja, de fato, um atributo do dispositivo da sentença, e não um efeito seu. Os efeitos da sentença são seus resultados, que variam com o tipos de tutela jurisdicional: declaratória, condenatória ou constitutiva. Por outro lado, uma leitura atenta do artigo 469 e incisos [25] do CPC nos leva a, juntamente com Marcelo Abelha Rodrigues, concluir que não é a sentença inteira que possui a qualidade de ser imutável, mas tão somente a sua parte dispositiva.

Vale aqui ressaltar que não significa que somente aquilo que estiver fisicamente enumerado na parte dispositiva da sentença formará coisa julgada, mas sim toda a parte da decisão que disser respeito ao dispositivo. Entretanto, a grande atribuição da coisa julgada é seu efeito negativo, qual seja, o de impossibilitar à parte que não teve sua pretensão reconhecida ajuizar demanda em face da mesma pessoa e com o mesmo objetivo.

Muito se fala, na doutrina, sobre a necessidade da coisa julgada. Na verdade, o tema nos parece de conclusão lógica, motivo pelo qual procuraremos explicá-lo com uma singelo reflexão.

Imagine-se uma relação jurídica representada por uma dívida lícita. O devedor, após transcorrido o prazo de adimplemento, não paga a dívida. O credor, vendo seu direito de crédito abalado, resolve entrar em juízo para garanti-lo. Ora, se a decisão jurisdicional pudesse ser sempre objeto de recurso, não gerando coisa julgada, nunca seria formado um título executivo. Sem tal título, não se poderia ajuizar demanda executiva, com o exato fim de satisfazer seu crédito. Vendo-se no prejuízo, e descobrindo que nunca recuperará seu investimento, o credor não mais realizaria empréstimos, o que, com certeza, seria prejudicial à economia, pois com menos circulação de moeda, menos riquezas e empregos são gerados.

Deste simples exemplo, nota-se a vital necessidade da existência da coisa julgada, não só como forma de garantir o Estado Democrático de Direito, mas também como forma de trazer certeza às relações jurídicas. Como já ensinava Kelsen, um mínimo de eficácia da ordem jurídica é necessária para que esta possa ser considerada válida. Sem a coisa julgada, as decisões judiciais seriam apenas mais um pedaço ineficaz de papel, dado que seria impossível gerar efeitos no mundo real. Os efeitos da jurisdição estariam adstritos ao mundo jurídico, que não existe de fato. E tal situação iria de encontro com a própria finalidade da jurisdição, que é garantir a paz social do mundo real.

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Sobre o autor
Cláudio de Oliveira Santos Colnago

Advogado. Sócio da Bergi Advocacia em Vitória - ES. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT). Professor de Direito Tributário e Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Cursando LLM em Direito Corporativo pelo IBMEC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLNAGO, Cláudio Oliveira Santos. Carência de ação e coisa julgada:: análise da relação direta entre a sentença de carência de ação e o mérito da demanda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 456, 6 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5758. Acesso em: 23 dez. 2024.

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