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A Constituição e os requisitos para a investidura do chefe do Ministério Público nos Estados

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5. O PAPEL DO CHEFE DO EXECUTIVO

Divergências ideológicas a parte, o Governador do Estado tem assegurada constitucionalmente a prerrogativa de escolher um entre três candidatos indicados pelos membros da instituição ministerial para o cargo de Procurador-Geral de Justiça. Eventual tentativa de compressão ou limitação da extensão do ato decisório pode implicar atentado a (ou expropriação de) competência constitucionalmente deferida.

O eventual mau uso da competência pelo Executivo constitui, é certo, um risco inerente ao dinâmico processo democrático por ser este construído por seres humanos falíveis, integrantes de uma sociedade plural, mas não é suficiente para servir de argumento para a inobservância da construção normativa residente na Constituição.

Assim como os membros da instituição ministerial podem, legitimamente, compor a lista tríplice, o Governador do Estado está autorizado a escolher um dentre eles, não necessariamente o mais votado. Compõe, este último, ato discricionário [22] juridicamente legitimado que só se realiza à vista da manufatura da lista (com seu conseqüente encaminhamento), lista obrigatoriamente tríplice, reitere-se.

Em julgamento de Embargos Infringentes opostos contra Acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn 1289-DF em que se discutia a inclusão de membros do Ministério Público que não preencheram o requisito da antigüidade na lista sêxtupla para formação do quinto constitucional, foi a seguinte manifestação da Procuradoria-Geral da República:

"A Constituição exige, de fato, para a formação do quinto constitucional, a elaboração de lista sêxtupla com os membros do Ministério Público que possuam mais de dez anos de carreira. Porém, nada dispõe a Carta da República na hipótese de faltarem membros do Ministério Público que possuam aquele requisito temporal de dez anos de carreira para compor a necessária lista sêxtupla.

Assim sendo, se não há vedação constitucional expressa, afigura-se legítima a complementação da lista sêxtupla com membros do Ministério Público que, embora tenham sido submetidos ao processo de escolha comum a todos os candidatos, não tenham completado, ainda, o período de dez anos a que se refere o art. 94 da Constituição da República.

Ademais, como afirmado nos embargos, "a lista sêxtupla" visa a permitir a possibilidade de escolha pelo Poder Judiciário de três nomes entre os seis candidatos, bem assim, posteriormente, a escolha pelo Poder Executivo de um único nome entre aqueles constantes da lista tríplice elaborada pelo Poder Judiciário. Portanto, a formação, pelo órgão de classe, de uma lista em número inferior a seis representaria cerceamento tanto no dever-poder atribuído ao Poder Judiciário de, dentre seis nomes, escolher três, como também no dever-poder do Poder Executivo de escolher apenas um. (g. n.)

Com efeito, veja-se que, na hipótese de haver apenas um candidato com mais de dez anos de carreira, teria ele verdadeiro direito subjetivo à sua nomeação, restando tolhida a necessária participação dos Poderes Judiciário e Executivo no processo de preenchimento do quinto constitucional, contrariando, dessa forma, a Constituição Federal."

A situação relatada guarda pertinência com o objeto do presente artigo, calhando a citação de importante parte do voto do Min. GILMAR FERREIRA MENDES:

"Ademais, cumpre observar que, ao consagrar o critério da lista sêxtupla composta por procuradores que ainda não preenchiam o requisito temporal, no caso de falta de membros habilitados, a resolução referida atendeu a um outro valor, igualmente importante para o texto constitucional: o respeito à liberdade de escolha por parte do Tribunal e do próprio Poder Executivo. Do contrário, restaria prejudicado o equilíbrio que o texto constitucional pretendeu formular para o sistema de escolha: participação da classe na formação da lista sêxtupla; participação do Tribunal na escolha da lista tríplice e participação do Executivo na escolha de um dos nomes. A formação incompleta da lista sêxtupla ou até mesmo o envio de um ou dois nomes que preenchessem todos os requisitos constitucionais acabaria por afetar o modelo original concebido pelo constituinte, reduzindo ou eliminando a participação do Tribunal e do Executivo no processo de escolha. (g. n.)

(...)

Muito mais distante da vontade constitucional seria a composição do Tribunal sem a participação dos integrantes do Ministério Público, significa dizer, sem a observância do princípio do quinto constitucional na espécie. Da mesma forma, haveria de revelar-se distante do texto constitucional a composição da lista com número inferior ao estabelecido constitucionalmente, afetando o modelo já restrito de liberdade de escolha." (g. n.) [23]

Ressalte-se que o Ministério Público é uma instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É evidente que a função de defesa do regime democrático haverá de exigir uma interpretação adequada das regras atinentes à escolha da chefia da instituição ministerial. Interpretação que implica a manifestação da ação necessária para a composição da lista. A autonomia da instituição, conferida pela Constituição, trouxe consigo o ônus da composição da lista tríplice. Qualquer desconforto interno quanto à participação do Poder Executivo no processo de escolha do Procurador Geral deve, por isso mesmo, ser resolvido dentro do marco constitucional e sem expedientes voltados ao enfraquecimento da competência conferida ao Executivo. Está-se, aqui, a falar, portanto, em colaboração necessária entre órgãos constitucionais (Executivo e Ministério Público) para a nomeação do Chefe da instituição ministerial.

Nomeado pelo Governador do Estado, nem por isso o Procurador Geral haverá de desenvolver comprometimento com a cosmovisão de quem o nomeou. Afinal,

"A lealdade dos agentes das procuraturas constitucionais não se dirige aos Governos mas à ordem jurídica a que todos devem servir com elevação e independência: por isso têm o poder de impulso, do qual não se devem demitir, nem mesmo por receio de desagradar aos agentes de quaisquer dos Poderes, ainda que o Chefe do Poder Executivo, que nomeia os Chefes institucionais das procuraturas constitucionais". [24]


6. DEFESA DA CONSTITUIÇÃO E DEVIDA COMPOSIÇÃO DA LISTA TRÍPLICE

Neste ponto, não seria demais considerar algumas hipóteses dotadas de relevância prática. Entre elas, o caso de ser encaminhado ao Governador apenas o nome do mais votado dentre os candidatos a Procurador-Geral de Justiça, e o caso de haver menos de três candidatos no processo eleitoral interno promovido pela instituição ministerial.

O encaminhamento de expediente abrigando apenas o nome do mais votado em eleição com ao menos três candidatos não parece guardar sintonia com o modelo de investidura do Chefe do Ministério Público adotado pelo Constituinte. Afinal, como antes referido, cabe ao Governador do Estado escolher um dentre os três nomes encaminhados pelo Ministério Público Estadual, seja ele o mais votado, ou não. Este é o arranjo constitucional atualmente em vigor. Daí porque não está, por outro lado, o Governador (do ponto de vista jurídico) vinculado ao nome mais prestigiado, do ponto de vista do sucesso eleitoral, da lista tríplice. Pode constituir gesto de sabedoria política o indicar o nome mais votado. Mas incumbe à instituição compor a lista tríplice, constituindo atribuição do Chefe do Executivo escolher, livremente, o novo Procurador Geral de Justiça. Ficasse o Governador vinculado ao nome mais votado, e estaríamos em verdade desenhando outro modelo, no qual os eleitores da instituição escolhem o novo Chefe que o Governador, com poder decisório equivalente ao decorrente do exercício de função meramente protocolar, nomeia. Semelhante interpretação, do ponto de vista jurídico, não se concilia com as conseqüências do modelo presidencial adotado pela Constituição de l988.

A segunda hipótese requer certa dose de cuidado. Se, numa situação extraordinária, dentre os inúmeros membros da carreira, somente dois concorrem à formação da lista, manifesta-se impossibilidade fática de apresentação da lista tal como exigida pela normativa constitucional. Diante de um quadro assim, poder-se-ia adotar, a fim de se cumprir o ditame legal e enquanto medida extrema, uma lista dúplice a ser encaminhada ao Governador do Estado. Primeiro cumpre ressaltar ser indispensável a realização do processo eleitoral no seio da instituição ministerial, respeitando-se as diretivas legais para sua devida realização. Quanto a esta questão não deve haver divergência, pois a eleição pelos membros da carreira tem sido a bandeira levantada, inclusive, por aqueles que discordam da participação de órgãos externos no procedimento de investidura do Procurador Geral. Efetivando-se a eleição e daí resultando apenas dois nomes para a lista, a solução para esta situação incomum exigirá certa dose de cuidado.

Constitui dever indeclinável da instituição o desenvolvimento dos esforços indispensáveis para a satisfação da exigência constitucional, estimulando, inclusive, a pluralidade de postulações no processo eleitoral interno. É o que, em princípio, haverá de ocorrer. Até porque não é crível que, numa instituição composta, em geral, por centenas de membros, não se manifeste disputa para um cargo de singular importância. Certamente, salvo a hipótese de compressão das possibilidades de apresentação de candidaturas ou do ambiente favorável ao exercício da democracia interna, mais de três candidatos apresentar-se-iam. De qualquer forma, há que se considerar a hipótese outra. Neste caso, a diretiva constitucional de formação de lista tríplice esbarra na excepcionalidade da situação.

Ora, não havendo possibilidade fática de formação de lista tríplice, o encaminhamento de lista menor poderia atender, em determinada circunstâcia, a exigência constitucional por permitir que o Chefe do Executivo exerça minimamente seu poder decisório. Poder-se-ia, eventualmente, cogitar da complementação da lista com candidato alheio ao pleito promovido pela instituição. Tal medida seria descabida por ferir a prerrogativa dos membros do Ministério Público participarem da eleição do Procurador-Geral. Poder-se-ia, também, propor a prorrogação do tempo de investidura do Procurador-Geral em exercício, mas semelhante medida igualmente seria inaceitável por ferir norma constitucional definidora do tempo exercício do cargo. Tais hipóteses agridem com maior gravidade a Constituição que a admissão, em circunstância absolutamente singular, lista composta por dois nomes. Por exclusão, é de admitir-se, então, a excepcional possibilidade de apresentação de lista dúplice ao Governador como medida suscetível de ser tolerada. A uma por atender minimamente a finalidade da formação de uma lista tríplice; a duas por ter conseqüências menos danosas que outras medidas possíveis; a três por distribuir o ônus do não cumprimento integral do procedimento positivado entre aqueles diretamente relacionados a ele. A situação, entretanto, exigirá negociação entre os órgãos constitucionais. Mais do que isso, apresentação de lista não satisfatória deve vir acompanhada das razões que justificam-na. Razões suficientemente graves para autorizar a excepcionalidade da medida.

É preciso ter em mente que, ainda que a candidatura configure, desde um ponto de vista pessoal, direito do promotor ou procurador, trata-se, por outro lado, de manifestação democrática cara à instituição e, portanto, de um direito cujo exercício deve ser suficientemente fomentado. Daí porque, constituindo direito para o membro do parquet, substancia dever indeclinável para a instituição em função do arranjo constitucional.

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Para melhor ilustrar a necessidade de adoção de medida incomum, mas razoável, diante da impossibilidade de cumprimento integral do programa normativo positivado, calha citar a célebre manifestação do Procurador-Geral Terlinden por ocasião do julgamento, na Corte de Cassação da Bélgica, de caso que envolvia o exercício solitário, pelo Rei, da função legislativa, contrariando diretiva constitucional, durante a ocupação alemã, por ocasião do último conflito mundial:

"Uma lei - constituição ou lei ordinária - nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode prever.

Obra do homem, ela está sujeita, como todas as coisas humanas, à força dos acontecimentos, à força maior, à necessidade.

Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situações que não pôde levar em consideração e nas quais, tornando-se inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro, afastando-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente às brutais necessidades do momento e opor meios provisórios à força invencível dos acontecimentos." [25]

O sistema de freios e contrapesos, importa realçar, exige a apresentação de lista composta por três nomes. A relação entre os poderes deve ser presidida pelo dever de colaboração, cooperação e boa fé, que decorrem da idéia constitucional de harmonia entre os órgãos integrantes do sistema de freio e contrapesos. O não estimular a formação de lista tríplice ou o apresentar lista sem o número constitucionalmente exigido de nomes, pode sugerir afronta não apenas à competência do Chefe do Executivo, como também ao princípio da separação de poderes. Reitere-se, portanto, que a apresentação de lista insatisfatória somente pode ser aceita em situação de extremada singularidade, em hipótese de excepcionalidade absoluta, que deve ser justificada pelas circunstâncias e, mais do que isso, suficientemente motivada. Neste caso, como o direito não pode disciplinar o impossível nem exigir o que não se pode dar, os órgãos constitucionais haverão de chegar a uma situação de solução particularizada. Fora daqui, entretanto, eventual lista insuficiente haverá de ser tida como eivada de vício, inválida mesmo, podendo até, no limite, ser devolvida ao Ministério Público pelo Governador para que este a complete, inclusive, se for o caso, promovendo nova eleição.

Interesses tocados pela lógica interna da instituição, ainda que orientados pela boa intenção e voltados à defesa da "democracia corporativa" não podem contrariar interesses maiores, dentre os quais o de concretização da Constituição, este sim, especialmente no caso brasileiro, alinhado com um histórico processo de democratização republicana. Vale lembrar que, após a alternância de regimes ditatoriais e incipientes movimentos democráticos, a Constituição brasileira de 1988 bem definiu em seu artigo 127, caput, o Ministério Público como instituição permanente à qual, dentre outras relevantes atribuições, insere-se a defesa do regime democrático [26]. Não seria sábio, por isso, fechar a instituição em si mesma, distanciando-a dos jogos políticos existentes no inacabado projeto de democratização do país, já que eles servem de provação para a demonstração da verdadeira vocação que aos seus membros acomete.

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Sobre os autores
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Alessandra Ferreira Martins

advogada, pesquisadora do escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, Mestranda em Direito do Estado pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin ; MARTINS, Alessandra Ferreira. A Constituição e os requisitos para a investidura do chefe do Ministério Público nos Estados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 454, 4 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5762. Acesso em: 25 abr. 2024.

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