O crime de obstrução de Justiça existe no Brasil?

18/05/2017 às 12:18
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Se mostra importantíssimo saber a correta tipificação do que a imprensa vem chamando de crime de "obstrução de Justiça". Será que esse crime realmente existe e é punido pelo ordenamento jurídico brasileiro? Este e outros aspectos são tratados neste artigo.

Em 2016 foi bastante noticiado o fato de o ex-presidente Luis Inácio Lula ter se tornado réu em razão da Justiça ter aceitado denúncia postulada pelo do Ministério Público contra ele, pelo suposto cometimento do crime de obstrução de Justiça, segundo o site G1. Lula e outros réus “são acusados pelo Ministério Público de tentarem calar Nestor Cerveró com a oferta de R$ 250 mil.”.[i]

Em meados do mês de novembro de 2015, foi notícia corrente na mídia nacional (e internacional) a prisão do então Senador da República Delcídio do Amaral, primeiro Senador preso no exercício do mandato após a redemocratização do pais, também por tentar obstruir as investigações da Operação Lava-Jato.

Após ser solto, em entrevista ao Programa televisivo “Roda Viva”[ii] o ex-senador foi categórico em afirmar que o único processo que respondia era pelo crime de “obstrução de Justiça”.

Recentemente, o assunto voltou à tona quando da divulgação do envolvimento de políticos do mais alto escalão do país em circustância possivelmente criminosa, ocasião em que foi dada determinada quantia em dinheiro para que presos permanecessem em silêncio, não delatando seus comparsas.

Entretanto, surgiu uma curiosidade no meio jurídico, afinal, o crime de obstrução de Justiça existe mesmo no nosso ordenamento jurídico? Se existe, em qual artigo da legislação penal está tipificado?

Bem, a intenção desse artigo é esclarecer o assunto, de forma técnica e jurídica, delineando os principais tipos penais que têm relação com a conduta de obstruir a Justiça.

Pelo senso comum, o que poderia se caracterizar como obstrução da Justiça seriam as condutas de atrapalhar ou tentar atrapalhar uma investigação ou processo em andamento, influenciando testemunhas ou vítimas, ou ainda intimidar as autoridades responsáveis pela condução da persecução penal, a exemplo do Delegado de Polícia, Promotores de Justiça ou mesmo o juiz do caso.

Vislumbra-se também obstrução da Justiça na conduta de destruir ou tentar destruir provas. Enfim, qualquer tipo de interferência indevida contra o bom andamento tanto do inquérito policial quanto da própria ação penal.

Perscrutando toda a legislação penal brasileira, seja a constante no Código Penal sejam as leis extravagantes (que não são poucas), é certo que não se encontra nenhum tipo penal com o nomen iuris “Obstrução da Justiça”.

O Código Penal Brasileiro – CPB, no Titulo XI, Capítulo III, a partir do art. 338 até o art. 358 trata dos Crimes contra a Administração da Justiça, contendo os seguintes tipos penais: Reingresso de estrangeiro expulso, Denunciação caluniosa, Comunicação falsa de crime ou de contravenção, Auto-acusação falsa, Falso testemunho ou falsa perícia, Coação no curso do processo, Fraude processual, Favorecimento pessoal, Favorecimento real, Exercício arbitrário ou abuso de poder, Fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança, Evasão mediante violência contra a pessoa, Arrebatamento de preso, Patrocínio infiel, Motim de presos, Patrocínio simultâneo ou tergiversação, Sonegação de papel ou objeto de valor probatório, Exploração de prestígio, Violência ou fraude em arrematação judicial e Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito.

Dentre os crimes elencados acima, relevante aludir os crimes de Coação no curso do Processo, Fraude Processual e Exploração de Prestígio, confira:

Art. 344 - Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

(…)

Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.

Art. 357 - Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra utilidade, a pretexto de influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça, perito, tradutor, intérprete ou testemunha:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

Parágrafo único - As penas aumentam-se de um terço, se o agente alega ou insinua que o dinheiro ou utilidade também se destina a qualquer das pessoas referidas neste artigo.

Ainda merecem destaque outros tipos penais, sobretudo no Capítulo II do mesmo título do CPB, onde se encontram tipos considerados atentatórios ao bom andamento da persecução penal, a exemplo da Desobediência (330), Resistência (329), entre outros.


Crime Organizado

No seio da Legislação penal extravagante, não se poderia deixar de mencionar a Lei de Organização Criminosa – Lei 12.850/13, quando disciplina que:

Art. 2o  Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

1o  Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

Desse modo, nota-se, claramente, que a intenção do legislador foi tipificar a conduta daquele que de qualquer forma (bastante aberto a interpretações), embaraça investigação que tenha como objeto organização criminosa, tipo que tem como preceito secundário uma pena de 3 a 8 anos, além de multa, podendo ainda ser cumulado com outras infrações penais em concurso material ou formal, a depender do caso concreto.

Assim, sem sombra de dúvidas, no que concerne ao que comumente vem se chamando de crime de obstrução da Justiça, esse é o tipo penal mais relevante do ordenamento jurídico pátrio. Isto não só por envolver organizações criminosas, mas também pelo quantum da aplicação da pena.


Direito Comparado e Mandado convencional de criminalização

Em excelente artigo elaborado pelo Procurador de Justiça Ricardo Antonio Andreucci, ele expõe alguns aspectos do direito norte-americano, que é profícuo em tipificar a obstrução da Justiça. Conforme salienta o ilustre articulistaNos Estados Unidos, o crime de obstrução da justiça nas cortes federais é tipificado das mais diversas formas (18 U.S.C.A., Chapter 73, §§ 1501-1517), indo desde a obstrução às ordens da corte (a nossa desobediência – art. 330 do Código Penal) até a retaliação (vingança) contra um juiz federal (muito parecida com a nossa coação no curso do processo – art. 344 do Código Penal).”[iii]

Em razão da forma de organização política americana, com mais independência dos Estados-membros, os quais podem legislar sobre Direito Penal, existem ainda diversas leis que tratam do assunto. Nesse viés, também no direito norte-americano, não existe um único tipo penal que abranja todas as condutas atentatórias à Justiça.

Ressalta-se, ainda, que há previsão na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (que Brasil é signatário - Decreto n.º 5.687/2006), no art. 25, que cada Estado Parte deve adotar medidas legislativas para qualificar o delito de obstrução da justiça, confira:

Artigo 25

Obstrução da justiça

  Cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometidos intencionalmente:

a) O uso da força física, ameaças ou intimidação, ou a promessa, o oferecimento ou a concessão de um benefício indevido para induzir uma pessoa a prestar falso testemunho ou a atrapalhar a prestação de testemunho ou a apartação de provas em processos relacionados com a prática dos delitos qualificados de acordo com essa Convenção;

b) O uso da força física, ameaças ou intimidação para atrapalhar o cumprimento das funções oficiais de um funcionário da justiça ou dos serviços encarregados de fazer cumprir-se a lei em relação com a prática dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção. Nada do previsto no presente Artigo menosprezará a legislação interna dos Estados Partes que disponham de legislação que proteja a outras categorias de funcionários públicos.


Inovação Legislativa

Curiosamente, em uma pesquisa rápida no site da Câmara dos Deputados, encontra-se o Projeto de Lei n. 3.180-A[i], datado do ano de 2004 de autoria do então Deputado Federal Antonio Carlos Biscaia - PT/RJ, em trâmite há mais de 12 anos sem avanço no Congresso Nacional. O citado PL tem como objetivo inserir o art. 329-A no Código Penal, sob a rubrica “Obstrução”, contendo o seguinte teor:

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“Art. 329-A – Impedir, embaraçar, retardar ou de qualquer forma obstruir cumprimento de ordem judicial ou ação de autoridade policial em investigação criminal:

Pena: detenção de 1(um) ano a 3(três) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço se a ordem judicial ou a ação policial não se realizam em razão da obstrução.”

A Justificativa para inclusão do crime, segundo o parlamentar propositor é que:

"Inúmeras são as hipóteses de obstrução à ação da Justiça ou da autoridade policial que poderiam ser citadas. A previsão desse tipo penal é sem dúvida um instrumento que fortalecerá não só o cumprimento das ordens judiciais como também a instrução das investigações criminais.

A pena a ser aplicada para o crime de obstrução deve impedir que este seja considerado um crime de menor potencial ofensivo, devido aos danos que tais ações causam à efetivação da Justiça."


Prisão

Percebe-se, assim,  que aquele que vier a incidir nas condutas tipificadas, conhecidas pela mídia e pelo senso comum como obstrução da Justiça, dificilmente passará incólume.

Nesse sentido, relevante ressaltar a possibilidade de decretação da prisão preventiva por conveniência da instrução criminal, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.

Ensinando sobre o tema, o insigne Doutrinador Guilherme Nucci nos diz que:

“A conveniência de todo processo é que a instrução criminal seja realizada de maneira lisa, equilibrada e imparcial, na busca da verdade real, interesse maior não somente da acusação, mas sobretudo do réu. Diante disso, abalos provocados pela atuação do acusado, visando à perturbação do desenvolvimento da instrução criminal, que compreende a colheita de provas de um modo geral, é motivo a ensejar a prisão preventiva. Configuram condutas inaceitáveis a ameaça a testemunhas, a investida conta provas buscando desaparecer com evidências, ameaças aos órgão acusatório, à vítima ou ao juiz do feito, a fuga deliberada do local do crime, mudando de residência ou de cidade, para não ser reconhecido, nem fornecer sua qualificação, entre outras.”[iv]

Consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal:

“A prática de atos concretos voltados a obstaculizar, de início, a apuração dos fatos mediante inquérito conduz à prisão preventiva de quem nela envolvido como investigado, pouco importando a ausência de atuação direta, incidindo na norma geral e abstrata do art. 312 do Código de Processo Penal.”[v]

Por fim, acrescenta-se ainda que, após a reforma processual realizada pela Lei 12.403/11, somente crimes dolosos cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos autorizam a decretação da prisão preventiva[vi] (art. 313, I). Destarte, entre as condutas mais próximas da dita Obstrução da Justiça, apenas os art. 339 – Denunciação Caluniosa e art. 357 – Exploração de Prestígio, além de, obviamente, o crime tipificado no art. 2º, §1º da Lei de Crime Organizado, autorizariam a decretação da segregação cautelar preventiva.


Conclusão

Em razão de todo o exposto, conquanto não haja no ordenamento jurídico pátrio tipo penal expressamente com o nomen iuris Obstrução da Justiça, nota-se, pelo acervo de crimes já elencados, que o Direito Penal brasileiro considera como típicas diversas condutas atinentes a atrapalhar, embaraçar ou influenciar indevidamente o bom andamento da persecução penal, nela compreendida a fase inquisitorial e processual.

Não deixa de ser manifestação do princípio da boa-fé, agora previsto expressamente no art. 5º do Código de Processo Civil,  aplicado ao Processo Penal, compreendido como o dever de lealdade e confiança entre as partes litigantes, que devem atuar, mesmo de lados opostos, pela solução justa do litígio.

A bem da verdade não existe um tipo único penal de Obstrução da Justiça, mas vários crimes tipificados que, em conjunto, protegem a regularidade e o equilíbrio processual, impedindo condutas tendentes a causar transtorno ao exercício jurisdicional, sem esquecer de mecanismos processuais pertinentes.


Referências:

[i] Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2016/07/lula-se-torna-reu-em-denuncia-de-obstrucao-de-justica-na-lava-jato.html> Acesso em 30.07.2016.

[ii] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h1Aa1K-ky9g> Acesso em 30.07.2016.

[iii] Disponível em: http://emporiododireito.com.br/obstrucao-da-justica/ Acesso em 30.07.2016.

[iv] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Processo Penal Comentado. 13ª edição rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[v] STF - HC 10232-DF, T.P., rel. Marco Aurélio, j. 04.03.2010.

[vi] A doutrina aponta também a possibilidade de decretação da prisão preventiva mesmo em crimes dolosos com penas menores que 4 anos em casos específicos, como descumprimento de medidas protetivas (Lei 11.340/06).

[1] Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=203618&filename=Tramitacao-PL+3180/2004>. Acesso em 30.07.2016.

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Sobre o autor
Paulo Reyner Camargo Mousinho

Delegado de Polícia Civil do Estado no Amapá. instrutor da Academia Integrada de Formação e Aperfeiçoamento do Amapá (AIFA). professor convidado da pós-graduação de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia do Amapá (ESA/AP). Professor de cursos preparatórios para concursos públicos. Administrador do site Justiça & Polícia (juspol.com.br), autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial pela editora Clube de Autores, coautor do livro Tratado Contemporâneo de Polícia Judiciária pela editora Umanos, autor de diversos artigos jurídicos sobre temas correlatos. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública pela Escola de Administração Pública do Amapá (EAP) em parceria com a Universidade Estácio de Sá. Presidente do Conselho Editorial da Revista Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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