Artigo Destaque dos editores

Globalização e Direito no Brasil

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

A globalização surpreende, encanta, assusta. Surpreende-nos com a velocidade com a qual a globalização rearticula nossas vidas, encanta-nos com as promessas que faz, assusta-nos ao evidenciar nossa falibilidade.

A globalização surpreende, encanta, assusta [1], realizando várias formas de alienação, percebidas como naturais no processo civilizatório [2]. Surpreende-nos com a velocidade com a qual rearticula nossas vidas, encanta-nos com as promessas que faz, assusta-nos ao evidenciar nossa falibilidade. Percebe-se uma globalização fábula, cuja crença nos é imposta; uma globalização perversa, que matiza a realidade vivente; uma globalização utópica, que anuncia um mundo panglossianamente melhor [3]. Ângulo pessimista (e realista) indica-nos que a globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e , como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada [4]. Segundo Anthony Giddens, a propósito da expressão globalização, trata-se de (...) palavra que não estava em parte alguma [mas que] passou a estar em toda parte [5].

Global tornou-se adjetivo de uso freqüente nas escolas norte-americanas de administração de empresas no início da década de 1980, quando consultores de estratégia e marketing, a exemplo de K. Ohmae e M. E. Porter, conduziram seminários em Harvard, Columbia e Stanford, orientados para projetos internacionais [6]. Falava-se naquele tempo de um mundo sem fronteiras, a mercê de um poder triádico [7], representado pelos Estados Unidos da América, pelas nações européias que então processavam um movimento unificador de economias e pelo Japão. Modelos políticos foram definitivamente cooptados por interesses financeiros. Trata-se da história do capitalismo em permanente expansão imperialista [8], centrado oportunisticamente em plano supra-nacional [9], em momento de expansão e de reorientação [10].

O imaginário ligado à globalização remete-nos a várias nuances também metafóricas [11]. Tem-se o globo enquanto figura astronômica, e de difícil aceitação por parte do catolicismo dominante no medievo, período de formação de uma tradição jurídica ocidental instruída pela vertente romanística [12] e oxigenada pelo desenvolvimento do capitalismo [13]. Pensa-se um mundo protagonista de uma história que avança [14] na realização de projeto de civilização libertadora [15] . Trata-se de uma nova onda que redimensiona o espaço [16], explicitando o geomorfismo de uma aldeia global. Na base de todo esse movimento está o desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo no mundo [17]. Alavanca-se a politização das relações, dado que aos empresários é facultado o pleno domínio do poder de negociação; as empresas detém papel central na configuração da economia e da própria sociedade [18].

Percebe-se uma globalização em termos tecnológicos, na medida em que a cibernética delineia fluxo de informações [19] que altera regimes de produção e de consumo. Do ponto de vista político a globalização recontextualiza a soberania, acenando com modelos democráticos que prenunciam novo equilíbrio de forças e que é marcadamente muito sutil [20]. Culturalmente, intercâmbios modelam o paradoxo de uma destruição criativa [21], prenhe de sonhos, pesadelos e ceticismo [22], identificando um imperialismo de instrução que é característico do nicho cultural capitalista [23].

Economicamente, opõe-se à miséria do hemisfério sul o desconforto da riqueza do hemisfério norte, circunstância administrada sob forte pressão ideológica e que nos promove a desconfiança, uma vez que a globalização é um mito conveniente a um mundo sem ilusões, mas é também um mito que rouba a esperança [24]. O reflexo social disso tudo redunda na cesura entre possuidores (haves) e despossuídos (have-nots), esses últimos, os protagonistas das horrendas imagens apresentadas na mídia com a destruição do trabalho e dos postos de trabalho [25].

É o triunfo do mercado, suposta explicitação pragmática de um sutil racionalismo, enquanto veículo do progresso [26]. De tal modo, (...) nesses espaços de racionalidade, o mercado torna-se tirânico e o Estado tende a ser impotente. Tudo é disposto para que os fluxos hegemônicos corram livremente, destruindo e subordinando os demais fluxos [27] .

Assim como não há autoridade sem democracia, também não há direitos sem responsabilidades [28], pelo que o custo da periferização decorrente do imperialismo [29] volta-se um dia contra os próprios agentes do capitalismo global. Não se percebe aumento de parcela da população com acesso a novos padrões de consumo [30].

A globalização é prática discursiva e nesse sentido os seus defensores apropriam-se da história, usando a disciplina de Clio para justificarem suas suspeitas verdades. Trata-se de presenteísmo, de visão historiográfica radicalmente subjetivista [31]. A globalização seria o resultado de uma evolução, que remontaria às primeiras movimentações do homem na terra [32], na percepção de seus maiores entusiastas, que o presente estudo vai mais a frente reproduzir, jocosamente.

Isso é particularmente complexo em âmbito de historiografia jurídica, uma vez que se tem amplo repertório para justificativas da normatividade globalizada; é que o presente olha para o passado e encontra lá sua imagem, como quem se vê ao espelho [33]. O historiador simpático à globalização vale-se do pretérito em relação ao qual dá um salto de tigre, apropriando-se do que lhe interessa, na deliciosa imagem de Walter Benjamin, em sua XIV tese da filosofia da história [34]. Uma poética histórica de sabor hegeliano [35] plasma um historicismo do progresso [36] que suscita críticas marcadas por questões epistemológicas que duvidam da objetividade das narrativas [37].

É nesse ambiente historiográfico que parece triunfar a tese de Francis Fukuyama, para quem vivemos o fim da história e o tempo do último homem [38]. Com a vitória da democracia e do neoliberalismo, especialmente após a queda do muro de Berlim, estariam sepultadas todas as utopias. A história estaria realizada definitivamente na vituperação e na derrota do socialismo. Não haveria mais espaço para soluções exógenas à liberal-democracia [39] e por isso escusadas e supérfluas todas as lutas políticas. Fukuyama torna-se o alvissareiro da vitória do liberalismo. Com base na tradição hegeliana que preconizava o fim da história, de uma certa maneira apropriada pelo pensamento marxista, para quem a história agonizaria com a ditatura do proletariado, Fukuyama tomou um conceito de Marx para sepultar o marxismo.

Formaliza-se o avanço da direita norte-americana [40], agora justificada na luta contra o terrorismo internacional [41], epicentro da doutrina Bush [42], que se presta a realizar todo o ideário conservador norte-americano [43]. Uma suposta prosperidade global pressagiaria um mundo diferente, moldado por novas orientações hegemônicas, desconhecendo os valores firmados na forma jurídica internacional da paz de Westphalia, com cartografia invisível, sem fronteiras [44]: além da história, morre também a geografia...

O crescimento do neoconservadorismo norte-americano faz-se simultaneamente a uma nova concepção emergente nas hostes democratas. O partido republicano de George W. Bush, herdeiro dos programas de minimalismo estatal de Ronald Reagan e de intervencionismo de Richard Nixon, apoia-se na luta contra o terrorismo internacional, em favor da otimização da chamada segurança doméstica (home security). Nos Estados Unidos o partido republicano nascera radical, com tom reformista, forte nas causas democráticas sulistas, a exemplo da fixação de Lincoln com a questão escravocrata. O partido republicano norte-americano transformou-se com o tempo. Albergou as políticas não intervencionistas de Herbert Hoover, a conduta de Eisenhower durante a bipolaridade do mundo da guerra fria, a era Nixon, Ford, promovendo a revolução econômica liberal de Reagan, orientado por Greenspan, atingindo seu cume com o militarismo absoluto dos Bush, pai e filho, no Iraque e no Afeganistão. Trata-se, no entanto, de uma anarquia internacional que os Estados Unidos já não conseguem controlar [45]. E a par disso, há ainda a oposição internacional ao concerto econômico orquestrado pelos Estados Unidos, a exemplo dos protestos dos grupos de Seattle, contrários à globalização [46].

Já os democratas carregam tradição de intervencionismo e de regulamentação, heranças do programa New Deal de Franklyn Delano Roosevelt. Mais tendente a causas populares, a base democrata é recorrente nos programas de Kennedy e de Lyndon Johnson, nas grandes questões da igualdade e dos direitos civis, no planisfério de direitos humanos de Jimmy Carter e na relativa estabilidade econômica dos dois mandatos de Bill Clinton. A ascenção de John Kerry escora-se nesse ideário, dado que o democrata de Massachussets apresenta-se favorável à ações afirmativas, ao aborto, contrário à pena de morte, à privatização do sistema previdenciário, a uma Alca que despreze aspectos ambientalistas e juslaborialistas. O otimismo com a globalização, todavia, contamina republicanos e democratas.

Porém, este otimismo para com a globalização fundamenta-se em bases conceituais muito frágeis [47]. A globalização seria uma conseqüência da modernidade [48], atribulada com as relações com a construção do eu [49], ambiguamente marcado pela própria destruição [50]. Molda-se uma identidade que não se reconhece, acelerando-se um processo de estranhamento com o mundo. Na medida em que se diminuem distâncias e trajetos, aumentam-se preconceitos e ambivalências.

O pós-moderno [51] seria o equivalente filosófico que se presta a teorizar o núcleo do entorno da globalização. Enquanto a modernidade estaria assentada na admiração por uma cultura elevada [52], na arte sofisticada [53], na originalidade [54], no apego a forma, ao clássico [55], no hermetismo, na oposição ao público, a pós-modernidade seria determinada pela aceitação de uma cultura banal, pela aporia da anti-arte, pelo pastiche [56], pelo conteúdo, pela simplificação, pelo minimalismo [57], pela fácil compreensão, pela participação do público. Uma vigorosa denúncia da razão abstrata [58] choca-se com a idéia da ordem como uma tarefa a cumprir [59] e a crítica radical da razão paga um alto preço pela despedida da modernidade [60].

A deslegitimização do conhecimento [61] confunde-se com a crise de legitimação do modelo avançado de capitalismo [62], que peleja em sufragar ambiente político de conotação mais pública [63], enfrentando a dicotomia entre verdade e moral [64]. Opera-se situação epistêmica de desconstrução das fronteiras disciplinares [65], amalgamada maliciosamente por circunstância discursiva de horror ao consenso, como remanescente de odioso totalitarismo [66].

Aceitando-se premissa marxista que nos dá conta de que certo determinismo tecnológico acompanha o avanço do capitalismo [67], tem-se que práticas contemporâneas que afeiçoam a globalização decorrem da direção tomada pela pragmática imperialista, bem entendido, com as ressalvas historiográficas já anotadas.

Radicaria a globalização num vetusto sistema colonial [68] que se desenvolveu do século XV ao século XVIII no contexto do capitalismo comercial, e que oxigenou uma forma de domínio político [69] pela qual os europeus subjugaram a América [70], na busca de metais preciosos e de gêneros tropicais exóticos [71].

No século XIX, no entrecho do capitalismo industrial [72], financeiro, monopolista, concorrencial e belicoso, desdobrou-se modelo de domínio político e econômico, formal e informal, que genufletiu povos africanos [73], asiáticos [74] e americanos [75], na busca de mercados consumidores, matérias-primas de fácil acesso e de campos para investimento seguro.

A partir do ocaso da guerra fria percebe-se capitalismo de molde global, que desconhece fronteiras, que percebe a pobreza como privação das capacidades [76] e que persegue mão-de-obra barata, reservas ambientais, pólos de investimento e de exportação de problemas.

Intrigante estudo de Antonio Negri e de Michael Hardt [77] aponta para um Império como forma de poder do mundo globalizado. Império seria diferente de imperialismo na medida em que nesse último há guerra entre as potências; no Império uma estrutura hierárquica que alcança os Estados Unidos, os países ricos da União Européia, o Japão, os grandes bancos e corporações internacionais exercem o poder por meio de atores globais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio.

Segundo Negri e Hardt, Império é o poder soberano que governa o mundo [78]. Os Estados Unidos ocupariam uma posição de destaque [79], o poder de polícia, e disso as guerras contemporâneas são inequívoca prova, na medida em que tomam o sentido de guerras justas [80] . Recentes conflitos havidos no Afeganistão e no Iraque confirmam a plausibilidade da assertiva. Ideologicamente, desenha-se o Império como permanente, eterno e necessário [81]. Negri e Hardt evidenciam a falência do projeto de Hans Kelsen, realizado na formação da Organização das Nações Unidas, como poder que transcende ao Estado-Nação [82].

A uma suposta hegemonia dos Estados Unidos, marcada por um enorme vazio de representação para posturas pacifistas [83], pelo controle de mecanismos de manipulação à moda das invectivas de Althusser [84], restam não muitas alternativas de resistência, a exemplo dos rizomas propostos por Deleuze e Guattari [85].

Realizando o sentido de rizoma, como resistência, cabe que se discuta permanentemente a questão desse capitalismo global. É que a globalização funda-se em falsos mitos, como a idéia de que o mercado exige, totalmente fora de sentido, dado que o mercado é ser inanimado, formado por pessoas específicas organizadas em classes, como a dos executivos [86].

Porém o foco mais expressivo de resistência conceitual ao processo de globalização fundamenta-se no projeto de Roberto Mangabeira Unger, brasileiro radicado nos Estados Unidos, onde leciona em Harvard. Intelecutal brasileiro certamente mais admirado e comentado no exterior, Mangabeira, (...) tal como Edward Said e Salman Rushdie (...) é parte da constelação de intelectuais do Terceiro Mundo ativa e respeitada no Primeiro, sem ter sido assimilada por ele, cujo número e influência estão destinados a crescer [87]. Ainda segundo Perry Anderson, Mangabeira é um crítico agudo de nossa constituição de 1988, por oferecer direitos fictícios e por ampliar, simultaneamente, a legalização de partes da legislação militar [88] .

Mangabeira fez nome como figura de proa no movimento critical legal studies, associado à contra cultura e à política da nova esquerda norte-americana, desenhado a partir da década de 1960 nos Estados Unidos [89]. Redigiu o texto que é reputado como manifesto do movimento, anotando que o mesmo solapou as idéias centrais do moderno pensamento jurídico, promovendo uma outra concepção de direito (...) que implica numa visão de sociedade e que informa uma prática política [90]. Crítico do liberalismo, Mangabeira escrevera que o aludido liberalismo é o guarda que nos vigia numa prisão [91]. Protestou por um aparato conceitual que nos permita diferenciar o direito enquanto fenômeno universal das formas enquanto se manifesta em distintos tipos de sociedade [92].

Na introdução de seu trabalho False Necessity, Unger alinhava um projeto alternativo e radical ao marxismo, à social democracia e ao neoliberalismo. Para Unger, não se trata de uma terceira via nos moldes de Giddens-Blair; trata-se de uma segunda via, dado que apenas um caminho, abrandado ou não, é agora oferecido no mundo [93]. Defende uma postura criativa, o fortalecimento da democracia, a radicalização de uma concreta e construtiva participação, combatendo todos os modelos deterministas, que nos acorrentam e que nos fazem prisioneiros das supostas regras que articulam a abstrata idéia de mercado, e de forças determinantes dos vários modelos sociais que há.

A globalização centra-se teoricamente no neoliberalismo, arauto do domínio irrestrito do mercado [94], aqui denunciado. Críticas há de setores medularmente vinculados ao processo de globalização. Por exemplo, Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001, que exercera posições de destaque no Banco Mundial, dardejou que o neoliberalismo quebrou promessas e que fundamentalmente não garante liberdade de escolha [95].

A globalização suscita um ambiente pragmático que fomenta um movimento de internacionalização das reformas econômicas [96], em prol dos interesses do Império, a adotar-se a imagem de Negri e Hardt. O Império vale-se dos global players, dos atores globais, como o Fundo Monetário Nacional e o Banco Mundial, para garantir condições propícias para o desenvolvimento do capitalismo que defende, centrado em premissas de liberdade [97] , de críticas ao totalitarismo [98], de dicotomias entre capitalismo e socialismo [99], momentos que plasmam um sociedade humana supostamente fruto de uma associação de pessoas que buscam a cooperação [100].

Vive então o mundo um ambiente perene de instabilidade financeira. A competitividade internacional pressiona as relações entre capital e trabalho no desiderato de garantir-se mão-de-obra barata. Pressionados pelo FMI os Estados vinculados a empréstimos internacionais aumentam suas bases de imposição tributária sem a consequente elevação dos serviços que podem prestar e das funções que podem desenvolver : é a maldição da crise fiscal.

Verifica-se uma crise do Estado, que é estrutural. Decorre disso uma crise de governabilidade, marcada por uma ingovernabilidade sistêmica. Promessas de campanha não se realizam e particularmente no Brasil é nítida a fragilidade ideológica e programática dos partidos políticos. Tem-se a impressão que a oposição ao assumir o poder troca de programas com a situação, que passa a criticar o que ontem defendia, enquanto a oposição no poder passa a praticar o que ontem criticava. E a situação não configura mero jogo de palavras.

Temas de atualidade vociferante, como reforma fiscal, transgênicos e exercício do direito de greve bem ilustram essas reflexões, fomentadas pela análise das atuações dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva, aquele acadêmico e de pose intelectual, este último sindicalista e de postura mais realista. Impressionante inflação legislativa, marcada pela proliferação de emendas constitucionais, de medidas provisórias e de leis ordinárias marca o momento, promovendo o desencanto do administrado para com o administrador.

A agenda política neoliberal realiza uma ruptura entre Estado e cidadão. Uma indiferença recíproca matiza as relações entre indivíduo e poder, circunstância de fácil percepção e constatada com os baixíssimos níveis de interesse popular no voto e na participação no debate político. Tem-se a impressão de que o Estado deixou de preocupar-se com as pessoas e de que os indivíduos evitam qualquer contato não obrigatório com as fontes de poder.

Opera-se uma inversão das premissas weberianas em torno da burocracia. Se esta fora criada para racionalizar a dominação [101], exemplo mais típico de domínio legal [102], manifestação da sociedade moderna [103], verifica-se o não cumprimento de outra promessa, na medida em que o ambiente burocrático parece acolitar os efeitos perversos da globalização, impessoalizando os moldes de dominação.

O neoliberalismo é o substrato conceitual que caracteriza o modelo econômico da globalização. De acordo com Perry Anderson,

O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem estar [104].

Com o término do conflito mundial em 1945 o modelo capitalista vitorioso suscita a presença de um Estado ainda intervencionista, marcado por uma ampla extensão de atividades na vida econômica [105]. No entanto, a guerra demonstrara o perigo dos regimes totalitários, que haviam exagerado na intervenção econômica e no dirigismo estatal.

O núcleo do pensamento neoliberal radicava então na sistemática denúncia dos males causados pelos países de altíssimo nível de intervenção. Consequentemente, a par dos elogios feitos ao capitalismo e ao regime de livre concorrência, a vertente teórica do neoliberalismo criticou e hostilizou qualquer ordem de pensamento comprometida com as aventuras ditatoriais.

É nesse ambiente que Karl Popper denunciou os chamados inimigos da democracia, que lista, enumerando Platão, Hegel e Marx. Popper vincula os três pensadores ao que reputa como plano conceitual historicista, no sentido que esses filósofos teriam concebido sociedades que marchavam para um fim. O rei filósofo de Platão [106] seria o protótipo de déspotas que se dissimulavam esclarecidos. O historicismo de Hegel [107], fundado na concepção de que a história desdobra-se no espírito, que a realiza, justificaria percepção de que há significado na própria história, que carece do líder que a conduza. O preceito marxista, de que a história marcha rumo à vitória do proletariado, síntese da sociologia determinista [108] do autor do Capital, recebe de Popper as mais violentas críticas, por fomentar toda a movimentação concreta do proletariado internacional.

A virulência do pensamento neoliberal dirige-se especificamente a todo modelo de superplanificação econômica e nesse sentido Friedrich Hayek é o mais importante teórico e articulador do movimento [109]. Brilhante representante da segunda geração da Escola Austríaca [110], Hayek criticou implacavelmente o Estado de bem-estar social e o modelo de Keynes, economista inglês nascido em 1883 que concebera alternativas para o Estado de laissez-faire [111], durante os anos de depressão econômica, mais dramaticamente sofrida pelos Estados Unidos da América.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O texto seminal de Hayek, vertido em português para O Caminho da Servidão, ainda de acordo com Perry Anderson,

Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política. O alvo imediato de Hayek, naquele momento, era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral de 1945 na Inglaterra, que este partido efetivamente venceria [112].

Hayek afirmou que o fato de que grande parte de pensadores progressistas terem aderido ao ideário socialista, não significava que tivessem esquecido o que os pensadores liberais disseram a respeito das conseqüências do coletivismo [113]. Com base no significado mais profundo e representativo da idéia de liberdade [114], Hayek obtemperou que a adesão dos progressistas ao socialismo decorria tão somente de uma falsa idéia e expectativa de liberdade [115] , de uma grande utopia (the great utopia).

A ânsia pelo planejamento estatal suscitaria um inusitado desejo por um ditador, o que de fato ocorrera na Alemanha [116]. A presença do Estado no modelo econômico promove a criação de regimes de monopólio, determinante de privilégios [117], que devem ser combatidos, uma vez que determinam disfunções que resultam no empobrecimento e na ruína econômica dos Estados que admitem a proliferação desses odiosos esquemas.

A liberdade negocial é ponto principal no pensamento de Hayek, que defendia um Estado-mínimo como condição para o desenvolvimento. Ao homem, ao ser humano, deve ser garantido o direito de escolha, de optar pela profissão, pela atividade econômica, elegendo dentre as várias formas de vida, a que melhor lhe parece [118].

Esta liberdade, fomentada por um Estado garantidor do exercício de atividades econômicas, formata os exatos contornos de uma organização política desejável. Ao Estado exige-se apenas que não interrompa, não incomode e não limite. O Estado, na perspectiva de Hayek, apenas assiste ao livre jogo do mercado, olimpicamente, promovendo a livre concorrência e garantindo aos mais aptos a vitória no jogo do capitalismo.

Logo no fim da segunda guerra mundial, F. Hayek convocou e realizou uma reunião em Mont Pèlerin, na Suíça, da qual participaram Miltom Friedman e Karl Popper, entre outros, fundando uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos [119]. Segundo Perry Anderson, ao referir-se sobre a sociedade de Mont Pèlerin,

Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. As condições para esse trabalho não eram de todo favoráveis, uma vez que o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge sem precedentes- sua idade de ouro- apresentando o crescimento mais rápido da história (...) (120).

Segundo um autor de direito, comentando a obra de Hayek e o papel do grupo intelectual da sociedade de Mont Pèlerin,

(...) Friedrich August von Hayek (...) tinha como objetivo o combate ao totalitarismo ínsito ao socialismo, ao nazismo e ao fascismo(...) Sob o fundamento de que a igualdade proporcionada pelo Estado de bem-estar social minava a liberdade e a concorrência, os integrantes da sociedade [ de Mont Pèlerin ] passaram a destacar a desigualdade como valor positivo ao Ocidente (121).

Miltom Friedman também representa significativamente o núcleo do pensamento neoliberal do pós-guerra. Um dos mais importantes expoentes da Escola de Chicago [122] , seu texto mais conhecido é Capitalism and Freedom. Friedman defende insistentemente as relações entre liberdade econômica e política [123]. Segundo ele, a liberdade econômica é um fim em si, assim como meio indispensável para a obtenção e a realização da liberdade política [124]. Sua profissão de fé concentra-se na clássica passagem

O homem livre não perguntará o que seu país pode fazer por ele nem o que ele pode fazer por seu país. Ele perguntará ‘ o que eu e meus compatriotas podemos fazer por meio de nosso governo’ para nos ajudar diminuir nossas responsabilidades pessoais, para conquistarmos nossos objetivos e propósitos, e acima de tudo, para proteger nossa liberdade ? (125)

Liberdade é expressão que mais caracteriza o movimento neoliberal em seu início, em detrimento da própria igualdade, pelo que a desigualdade passa a ser um valor positivo. Combatem-se as idéias intervencionistas de Keynes, o Estado do bem-estar social, acusado de destruir a liberdade dos cidadãos e a força viva da concorrência, colocando em perigo a prosperidade geral [126]. Posteriormente, o neoliberalismo pôde renunciar a liberdade política em prol da liberdade econômica, que passou a ser valor máximo, de modo mesmo a justificar a aproximação do neoliberalismo com modelos ditatoriais.

Durante duas décadas o pensamento neoliberal hibernou enquanto as condições de desenvolvimento do capitalismo durante a guerra fria se otimizaram. Foram vinte anos de progresso espetacular para os Estados Unidos e para os países capitalistas da Europa Ocidental.

Eventuais avanços do modelo soviético (a exemplo do que ocorria nas corridas nuclear e espacial) eram menoscabados pelas denúncias do que ocorria no lado oriental da cortina de ferro, e os acontecimentos de Praga, em 1968, são muito sugestivos, nesse aspecto.

A crise do petróleo, em 1973, abalou o que se acreditava como o sólido alicerce do modelo capitalista. A recessão advinda, o desemprego e o desaquecimento das atividades negociais acenaram para uma presunção que vislumbrava a incompetência do Estado do bem-estar social. O aumento dos gastos sociais por parte do Estado passou a ser uma quimera. O engessamento desses mesmos gastos, subordinados a orçamentos comprometidos com estratégias de combate à crise energética, abriram espaço para uma retomada do ideário neoliberal, que parecia apresentar opções concretas para que se fizesse frente à violenta crise.

Reformas fiscais subordinadas a disciplinas orçamentárias [127] passaram a ser cogitadas nos termos das propostas de Hayek e de Friedman, defensores de um processo de enxugamento do Estado. O proselitismo em torno da onda neoliberal da época ganhou o republicanismo conservador norte-americano, cristalizado na revolução de Reagan [128] e epitomizado numa nova direita que exigia menos impostos para os mais ricos [129]. O direito de ser quadrado (hip to be square) passou a configurar um novo modo de ação, que qualificava um conservadorismo que traduzia um certo desconforto com os avanços de setores mais progressistas da sociedade norte-americana.

E o avanço do conservadorismo consolidou-se,

(...) em 1979, surgiu a oportunidade. Na Inglaterra, foi eleito o governo Thatcher, o primeiro regime de um país de capitalismo avançado publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal. Um ano depois, em 1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos. Em 1982, Khol derrotou o regime social liberal de Helmut Schimidt, na Alemanha. Em 1983, a Dinamarca, Estado modelo do bem-estar escandinavo, caiu sob o controle de uma coalizão clara de direita(...) (130).

A busca da estabilidade monetária passou a ser o objetivo mais perseguido por essas forças conservadoras, agora no poder. Simultaneamente, desmontava-se o modelo de proteção trabalhista de alguns Estados, propiciando-se a restauração de uma saudável taxa de desemprego (sic), vista como natural, fomentadora de um exército laboral de reserva, responsável pela diminuição de salários e conseqüente ampliação de margens de lucro. Procedimentos de assepsia fiscal fulminavam germes patogênicos limitadores do avanço dos agentes econômicos, sufocados pelo Estado de bem-estar social.

Evidentemente, as condições internas nos Estados Unidos da América eram diferentes do ambiente que a Europa Ocidental vivia. A tradição socialista norte-americana era anêmica e inofensiva. O espectro da guerra fria ainda rondava o país, que elegeu o conflito com o mundo socialista como uma cruzada que deveria ser vencida a qualquer preço. Circunstancialmente dois republicanos, Nixon e Reagan, protagonizaram duas e importantes cartadas naquele jogo. O primeiro aproximando-se da China e este último liquidando as esperanças soviéticas, que se abalavam desde a invasão do Afeganistão, em 1978.

Preparava-se o cenário que presenciaria o ocaso da guerra fria, potencializando-se inevitáveis tensões a serem desdobradas no Báltico, na Sérvia, na Croácia, na reunificação da Alemanha, no papel do Japão e dos tigres asiáticos, na primeira guerra do golfo, no Líbano, na perene tribalização da África, entregue à sorte da manipulação norte-americana na gestão de conflitos milenares. A América Latina perdeu a importância geopolítica e agora implora para o americano não deixá-la, remodelando o mote, que passa a ser o bizarro Yankee, don’t go home... [131]

Em 2000 a realidade já era muito diferente e os Estados Unidos não haviam consolidado o papel que imaginavam ter a história lhes reservado. A extrema direita representada pelos falcões (hawks) pulveriza-se entre neoconservadores, a direita cristã e os militaristas clássicos de Dick Cheney e Don Rumsfeld [132], festejados por Ann Coulter [133] e ridicularizados por Michael Moore [134]. Os ataques terroristas que os norte-americanos sofreram em setembro de 2001 os instrumentalizaram ideologicamente, fortalecendo-os para a cruzada que seguiu, no Afeganistão e no Iraque, com cooptação de certos espaços políticos na Europa ( especificamente na Inglaterra e na Espanha ), confirmando a incorporação da Europa Ocidental nas redes de poder do Estado norte-americano após a segunda guerra mundial [135].

A direita republicana norte-americana consagra o neoliberalismo, realizando internamente programas que M. Thatcher levara adiante na Inglaterra, a exemplo do controle de fluxos financeiros, de uma legislação anti-socialista, de uma drástica diminuição de gastos com programas sociais, da diminuição de impostos sobre os altos rendimentos. A justificativa para o implemento de tais programas passa por uma política externa agressiva, de tom insuspeitadamente intolerante, centrado na lógica apocalíptica de que há perigo a ser enfrentado a qualquer custo. O terrorismo é refém da propaganda norte-americana.

De qualquer forma, e agora a década de 70 oferece panorama para análise, o projeto neoliberal mostrara-se vitorioso naquela época, logrando êxito, reanimando o capitalismo mundial avançado, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como existiam antes da crise dos anos 70 [136]. E ainda em termos midiáticos e ideológicos, a derrota do socialismo real alimentou a crença nos valores neoliberais. Como se a queda do muro de Berlim, a glasnost e a perestroika confirmassem os supremos ideais da liberdade de mercado, aquele efeito de demonstração apontado por Perry Anderson, como segue

O dinamismo continuado do neoliberalismo como força ideológica em escala mundial está sustentado em grande parte, hoje, por esse efeito de demonstração do mundo pós-soviético. Os neoliberais podem gabar-se de estar à frente de uma transformação sócio-econômica gigantesca, que vai perdurar por décadas (137).

Com um pouco mais de acidez, Óscar Correas percebe que o único êxito do neoliberalismo no fim do século passado não estaria em seus sucessos econômicos, que não se vêem aliás em lugar nenhum. Mas sim na estupidização do mundo, que acredita nos insultos que o neoliberalismo promove, extratos de uma sociedade educada na falta de solidariedade, na mentira e na morte [138].

Tem-se a impressão de que o neoliberalismo sobrevive hegemônico, sacralizado nos Estados Unidos, na Europa Ocidental, permitindo episódicos surtos mais animados ainda, a exemplo do triunfo de Berlusconi, o Reagan italiano. O neoliberalismo assentou-se no Chile de Pinochet, no México de Salinas, na Argentina de Menen, na Venezuela de Perez, no Peru de Fujimori. O surgimento destas figuras insere-se num amplo quadro histórico e geopolítico que se desenvolveu ao longo do século XX [139], especialmente a partir do término da 2ª Guerra Mundial em 1945, mas que remonta a 1776, data em que Adam Smith publicou seu The Wealth of Nations, mesmo ano em que os norte-americanos separaram-se dos ingleses, num amplo quadro de revoluções atlânticas, também sentido em 1789, quando do início da saga revolucionária francesa.

A publicação do Capital de Marx, em 1867, assinalou uma leitura problematizante do modelo capitalista. O modelo de previdência estatal que Bismarck instituiu na Alemanha em 1882 certamente é referência de sistema de intervencionismo absoluto. Guerrou-se também contra uma suposta selvageria capitalista, e disso é prova o Sherman Anti-Trust Act, de 1890, consolidado nos Estados Unidos com a presidência de Theodore Roosevelt, também lembrado pelo exotismo, pelas extravagâncias e por seu espírito aventureiro, qualidades que conduziram o presidente norte-americano à Amazônia. O século XX conhece reformas liberais na Inglaterra em 1906, que configuravam um Estado-ambulância ( ambulance state). Em 1911 a China conheceu uma revolução que já anuncia prematuramente a marcha de Mao, na década de 1930.

A guerra que começou em 1914 deu fim à era de ouro do comércio internacional. Três anos depois, em 1917, a revolução russa dá início à realização de um projeto marxista. No ano seguinte, em 1918, dá-se início ao processo de apaziguamento da primeira guerra, consubstanciado no tratado de Versalhes, pacto que alimentou o revanchismo alemão e que oxigenará a pregação nacional socialista na Alemanha. Também em 1919 o partido trabalhista inglês prega intensivamente a nacionalização dos setores fundamentais da economia britânica. O nacionalismo também insufla aos chineses, que se rebelam na praça da paz celestial, que receberá grande atenção mundial em 1989 com a revolta dos jovens estudantes.

Lênin, a partir de 1921, retifica práticas comunistas mais ortodoxas, na perspectiva de dar-se um passo para trás com o objetivo de dar-se dois passos à frente, permitindo alguma atividade privada, mediante a regulamentação decorrente da chamada NEP- Nova Política Econômica. Na mesma época, Ludwig von Mises publicava sua obra de crítica ao socialismo, divulgando o modelo liberal que nasce em Viena com a chamada escola austríaca, que será posteriormente cooptado e desenvolvido pela escola de Chicago. Em 1927 o planejamento estatal atinge seu ponto máximo com o modelo de Stálin, que naquele ano consolidou seu comando pessoal na União Soviética.

Em 1929, primeiro ano de um plano quinquenal soviético, a bolsa de valores de Nova Iorque vive sua grande debacle, anunciando os anos de depressão, que serão contornados por modelos de dirigismo estatal, posteriormente consolidados na obra de John Maynard Keynes. Em 1933 os democratas ganham as eleições nos Estados Unidos e Franklyn Delano Roosevelt dá início ao seu programa de reconstrução nacional, que atentou contra o liberalismo ortodoxo. Cria-se a U.S. Securities and Exchange Commission e a Tenesse Valley Authority, algumas medidas interventivas, que sofrem com a oposição da Suprema Corte daquele país. Enquanto isto, do outro lado do mundo, a partir de 1934, Mao dá início à grande marcha que culminará com a revolução comunista chinesa. Em 1936 John Maynard Keynes publicou seu The General Theory of Employment, Interest and Money, livro base para a formatação do intervencionismo.

China e Japão entraram em guerra a partir de 1937. No ano seguinte, em 1938, o México nacionalizou a reserva e a prospeção de petróleo, movimento que seria impensável nos dias de hoje. Ainda em 1938, os Estados Unidos passam a exercer intensa fiscalização e regulamentação da aviação comercial, por meio da CBA-Civil Aeronautics Board, organismo que será desfeito quatro décadas depois, em meio à onda de neoliberalismo. Em 1939 os alemães invadiram a Polônia; começa a 2ª guerra mundial. Dois anos depois, após o ataque japonês em Pearl Harbor, os norte-americanos entraram na guerra, episódio que alavancou a economia daquele país, que desde o conflito de 1914, já exercia hegemonia mundial. Também em 1941, Altiero Spinelli, preso pelos fascistas na ilha de Ventonene, escreveu seu famoso manifesto que urgia a necessidade de uma união européia.

Em 1944 Friedrich von Hayek publicou sua obra seminal, O Caminho da Servidão, denúncia implacável do dirigismo estatal, cujos contornos foram já assinalados no presente trabalho. Naquele mesmo ano criou-se o Banco Mundial, em meio à Conferência de Bretton Woods. Os aliados proclamaram-se vencedores da guerra em 1945. Clement Atlee venceu as eleições na Inglaterra, para indignação de Winston Churchill. Com Atlee o partido trabalhista toma o poder, formatando e lançando o mais acabado Estado de bem estar social que se tem notícia, e que perdurará até o retorno dos conservadores com Margaret Thatcher.

Jeann Monnet, antigo negociante de conhaques, articula um plano de restauração para a França, sonhando abertamente com uma Europa unida. Na Índia, Nehru publicava seu A Descoberta da Índia, que importância intelectual exerceria no processo de descolonização afro-asiático. Em 1946 Keynes faleceu, logo depois de ter negociado junto aos Estados Unidos um empréstimo para a Inglaterra. Miltom Friedman, avatar do minimalismo estatal, fora indicado professor na universidade de Chicago. A Europa vive uma crise intensa, e os Estados Unidos administram o processo por intermédio do Plano Marshall, desenhado para a reconstrução do velho continente. A Índia libertou-se da Inglaterra e Nehru será o primeiro-ministro. O modelo intervencionista inglês intensificou-se em 1947, por conta da nacionalização da indústria do carvão.

Em 1948 os soviéticos instituem um bloqueio em Berlim, fato que culmina na divisão da Europa. A Alemanha Ocidental, sob a liderança econômica de Ludwig Erhard, deu fim ao controle de preços, alavancando uma economia de mercado social, que deu os contornos ao milagre econômico alemão. Em 1949 as forças comunistas de Mao triunfaram na China, estabelecendo-se uma república popular, enquanto Chiang-Kai-Tchek fugiu para Taiwan. Em 1950 tem-se início a guerra da Coréia, importante passo no contexto da guerra fria, que enseja a teoria dos dominós, percepção norte-americana que denunciava que a vitória do comunismo em qualquer lugar ensejaria uma reação imediata e em cadeia, em desfavor da democracia, do liberalismo e do capitalismo.

Em 1952 morreu Evita Perón. Seu marido, Juan Domingo, parte para o exílio, após nacionalizar drasticamente a economia argentina. Três anos depois, em 1955, por ocasião da Conferência de Bandung, sob influência da Indonésia, ensaia-se uma base política internacional não alinhada. Em 1956 as tropas soviéticas reprimiram violentamente manifestações na Hungria. Naquele mesmo ano, a crise do canal de Suez semeou a discórdia entre os aliados ocidentais. No ano seguinte criou-se o Banco Alemão, pensado para combater o processo inflacionário que então se desenhava. E também em 1957 o Tratado de Roma deu continuidade a um processo de aproximação entre os países europeus, que remontava a Spinelli e a Monnet. De 1958 a 1960 os comunistas chineses tentaram desenvolver um processo de desenvolvimento forçado, chamado de o grande passo a frente.

Em 1961 tem-se início ao processo de industrialização da Coréia do Sul, sob liderança do general Park Chung Hee. Em 1962 Miltom Friedman publica um clássico do pensamento neoliberal, Capitalismo e Liberdade. No ano seguinte, 1963, Kennedy foi assassinado no Texas. Seu sucessor, Lyndon Jonhson, lançou um plano de combate à pobreza. Na China, divulga-se o livro vermelho de Mao, premonindo a revolução cultural que será lançada em 1966. Em 1968 Richard Nixon foi eleito presidente dos Estados Unidos. Naquele mesmo ano os tanques soviéticos sitiaram Praga, centro de um movimento a favor de um socialismo com face humana. Em 1970 o socialista Salvador Allende chega ao poder no Chile, lançando um programa de nacionalização intensiva da economia.

Em 1971 Nixon se declara keynesiano, promove o controle de preços e salários, dá fim ao padrão ouro vinculado ao dólar norte-americano, encerrando o modelo de Bretton Woods. Trata-se de um dos maiores calotes da história. Em 1973 a Inglaterra aderiu à comunidade econômica européia. O mundo vive o primeiro grande choque do petróleo. No Chile, o general Pinochet lidera um golpe de estado que dá início a um rápido processo de reformas de cunho neoliberal, sob um pano de fundo matizado por rígida ditadura. Em 1974 a Índia anuncia que domina a energia nuclear. Os ingleses conhecem uma greve dos mineiros de carvão. Friederich von Hayek divide o prêmio Nobel com Gunnar Myrdal, reconhecido e assumido keynesiano. Em 1975 Margaret Thatcher vence Edward Heath e torna-se líder do partido conservador britânico. Naquele mesmo ano, companhias de petróleo são nacionalizadas na Arábia Saudita, Kwait e Venezuela. Em 1976 morreu Mao. Ainda neste mesmo ano, Miltom Friedman foi laureado com o premio Nobel de economia. Em 1977, sob a liderança de Alfred Kahn desata-se o processo de desregulamentação da aviação civil norte-americana.

Em 1978 o cardeal polonês Karol Wojtyla tornou-se o Papa João Paulo II. Deng Xiaoping torna-se o principal líder chinês, promovendo um processo de reformas estruturais orientadas para o livre mercado e para a livre iniciativa. Em 1979 Margaret Thatcher torna-se chanceler na Inglaterra. A revolução fundamentalista iraniana desata uma segunda crise do petróleo. Em 1980 o ultraconservador Ronald Reagan é eleito presidente nos Estados Unidos. No mesmo ano, o sindicato solidariedade levanta-se em Gdansky e mesmeriza a Polônia. Em 1981 François Mitterrand torna-se o primeiro presidente socialista da república francesa. Em 1982 Margaret Thatcher recebe forte apoio popular após bater os argentinos nas Malvinas. Entre aquele ano e 1985 faleceram três líderes soviéticos da velha guarda: Brezhnev, Adropov e Chernenko.

Em 1984 Indira Gandhi foi assassinada. Na Inglaterra privatizou-se a telefonia. Em 1985 Gorbachev dá início à perestroika e a glasnost, levando adiante reformas na Rússia. Margaret Thatcher sufoca a greve dos mineiros e consolida seu projeto neoliberal. Em 1989 os jovens reformistas chineses protestaram na praça da paz celestial. Naquele mesmo ano derrubou-se o muro de Berlim, dando-se fim à odiosa divisão da Europa. Ainda, Carlos Menem venceu as eleições na Argentina e dá início a um intenso programa de reformas neoliberais. As eleições de 1990 conduziram Lech Walesa ao poder na Polônia; no Chile, os vitoriosos mantiveram o passo das reformas neoliberais, encetadas intransigentemente por Pinochet. Ainda em 1990 o Iraque invadiu o Kwait. No ano seguinte, o mundo presenciou a guerra do golfo, transmitida pela CNN, que levou ao ar cobertura inusitada.

Em 1991 a União Soviética se desintegra. Boris Yeltsin tornou-se o presidente de uma federação russa independente. O Tratado de Maastricht foi assinado, prevendo a união monetária na Europa. Naquele mesmo ano, Alberto Fujimori derrotou o escritor Mario Vargas Llosa nas eleições do Peru. Em 1992 a Rússia dá início a intensos programas de privatização. Estados Unidos, Canadá e México formam o Nafta, North American Free Trade Agreement. Em 1993 o democrata Bill Clinton alcançou a presidência do Estados Unidos, encetando um programa que tomou emprestado idéias de seus adversários republicanos, a exemplo da pregação em torno do fim do grande governo. No ano seguinte, Fernando Henrique Cardoso lançou o plano real no Brasil, o que fortaleceu e garantiu sua trajetória rumo à presidência do país. Também em 1994 formula-se a Organização Internacional do Comércio.

Em 1997 Hong Kong retornou ao controle chinês. Tony Blair vence as eleições na Inglaterra, liderando um partido trabalhista com feição muito modificada, acicatando aspectos do programa do partido conservador, a exemplo das privatizações e do modelo de livre mercado. Uma violenta crise no sudeste da Ásia abala a admiração internacional pelos tigres asiáticos. Em 1999 o euro passa a ser a moeda de transição na Europa continental. Em 2000 Vicent Fox vence as eleições no México, formulando uma política de neoliberalismo intensivo. George W. Bush, com apoio da Suprema Corte norte-americana, vence as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Em 2001 os norte-americanos sofrem os ataques terroristas, em Nova Iorque e em Washington. O euro passa a ser a moeda corrente no mundo europeu. Três divisas consagram a vitória do neoliberalismo: o euro, o dólar e o iene.

A versão acima intencionalmente desenhada aponta para a apoteose do pensamento neoliberal. Tais idéias foram dissemidas entre nós, primeiramente com certa resistência do dirigismo militar e da esquerda, posteriormente assimiladas no mandato Fernando Henrique Cardoso e mais tarde na presidência Lula. Sob uma leitura de recomposição, no Brasil o neoliberalismo contou com Roberto Campos como um de seus mais animados e bem educados defensores. De sólida formação humanística, educado em seminário, latinista e helenista, Roberto Campos definiu-se quando chegou ao Rio de Janeiro como um analfabeto erudito [140] . Por concurso entrou no Itamaraty e viveu em Washington nos últimos dias da guerra mundial. Como terceiro secretário da embaixada brasileira participou da Conferência de Bretton Woods, de 1º a 22 de julho de 1944, conhecendo então o representante inglês, o Lord Keynes [141] . Roberto Campos estudou economia na Universidade George Washington, dedicando-se a intermináveis serões na biblioteca do Congresso. Segundo ele,

Washington durante a guerra era excitante, pois se havia tornado capital do mundo, dada a extraordinária proeminência dos Estados Unidos na condução das operações militares, na pujança de sua produção bélica e na capacidade de abastecimento dois aliados (142).

Roberto Campos participou da criação da ONU [143], retornou ao Brasil, acompanhou a instalação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos [144], participou da criação do BNDE- Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico [145], conviveu intelectualmente com Eugênio Gudin [146], colaborou no governo Castello Branco [147], foi senador constituinte [148].

Roberto Campos criticou o ambiente da Assembléia Nacional Constituinte de 1986, que qualificou como a vitória do nacional-obscurantismo [149] . Adiantou-se nas críticas ao novo modelo tributário da Constituição de 1988, reputando-o como hiperfiscalista [150], premonindo perda de receitas da União, que mais tarde seriam recuperadas com ampliação de bases tributárias [151], especialmente mediante a proliferação das contribuições.

O interessante é que boa parte das profecias de Roberto Campos teria se confirmado. Criticando a carta de 1988, ele afirmou que a cultura antiempresarial de que se impregnou a Constituição em breve fará o Brasil o país ideal onde não investir [152]. Durante a preparação daquele documento, Roberto Campos já vociferava e vaticinava

Tenho lido e relido o texto constituinte, um dicionário de utopias de 321 artigos. Pouco ou nada se parece com as constituições civilizadas que conheço. Seu teor socializante cheira muito à infecta Constituição portuguesa de 1976, da qual Portugal procura agora desembaraçar-se a fim de embarcar na economia de mercado da Comunidade Econômica Européia. O voto aos dezesseis anos dizem copiado da Constituição da Nicarágua. A definição de empresa nacional parece só existir na Constituição de Guiné-Bissau. Em ambos os casos, nem o mais remoto odor de civilização... (153)

Roberto Campos admitia subordinar a liberdade política ao desenvolvimento econômico e nesse sentido ao comparar a Argentina como o Chile observou que

A realidade não é tão simples. Alfonsín é um presidente inquestionavelmente legítimo e a Argentina experimenta inflação e estagnação. Pinochet é ilegítimo e conseguiu desinflação e desenvolvimento. Donde se conclui que a legitimidade presidencial pelo voto direto, altamente desejável para a consolidação democrática, não é fórmula mágica para garantir êxito na luta antiinflacionária, nem na restauração do desenvolvimento. Tudo depende do senso de prioridade e da coragem cívica do governante (154).

Roberto Campos divulgou constantemente os pensadores neoliberais, no espaço que ocupou na imprensa. O diplomata brasileiro pranteava Hayek, que segundo ele

Foi o homem de idéias que mais bravamente lutou, ao longo de duas gerações atormentadas, pela liberdade do indivíduo contra todas as modas totalitárias, do socialismo soviético ao nazismo. E contra outras formas de opressão resultantes da sobreposição do Estado burocrático à pessoa humana, a pretexto de interesses sociais que ele próprio, Estado, reserve para si o poder de determinar (155).

Com língua ferina, condenou toda forma indevida de interferência do Estado (o mais frio dos monstros, segundo Nietzsche, por Roberto Campos citado [156]). A propósito de decisão do Supremo Tribunal Federal que afastou o antigo IPMF, hoje CPMF, escreveu

Recente decisão do Supremo Tribunal, rejeitando o IPMF, na preliminar de inconstitucionalidade, foi economicamente sensata. O imposto fora concebido como uma heróica simplificação- substituir o atual manicômio fiscal por um imposto único sobre a moeda eletrônica. Eliminar-se-iam a burocracia da declaração, a corrupção do fiscal e a engenhosidade do sonegador. A idéia foi distorcida pelo governo, piorada no Congresso e tornou-se 59º tributo. Uma espécie de O bebê de Rosemary, do filme de Roman Polansky, oriundo de uma transa inconsciente de Mia Farrow com Belzebu. Aliás, durante as discussões da Constituição de 1988, profetizei que estávamos criando um bebê de Rosemary: o diabo íncubo era o nacional populismo, que o Brasil somente começou a exorciar depois da queda do Muro de Berlim (157).

A participação de Roberto Campos na preparação da Constituição de 1988 ilustra efusivamente essa interface entre o neoliberalismo e o direito brasileiro na medida em que boa parte das críticas do diplomata realizou-se no futuro. As emendas constitucionais que vêm alterando o texto original de 1988 comprovam que a utopia e o romantismo daquele documento político não resistiram ao sopro efetivo do pensamento neoliberal, marcado pela globalização. Deve-se reconhecer nossa condição periférica, em relação ao capitalismo internacional.

Os espaços periféricos do sistema são açoitados com o que Michel Chossudovsky nomina de o cardápio do FMI [158]. Impõe-se austeridade orçamentária, imperturbável agravante da crise fiscal. As moedas nacionais são desvalorizadas, em favor do dólar e do euro. Obriga-se a uma inusitada liberalização do comércio.

Degradam-se as funções tradicionais sócioeconômicas dos Estados [159], alterando-se também identidades nacionais [160]. Formulam-se programas relâmpago de privatizações. Reorganizam-se ministérios das fazendas e bancos centrais, esses últimos muitas vezes sob a batuta de empregados das forças componentes do Império, conceito de Antonio Negri e Michael Hardt, que ensaiam em explicar a hegemonia norte-americana no mundo.

As instituições financeiras internacionais exercem governos paralelos aos poderes oficialmente constituídos. Os países que não aceitam esses planos de ajustes estruturais são elencados em lista negra. Empréstimos são condicionados a programas e desempenhos políticos e econômicos. Documentos de prioridades políticas vinculam dominantes e dominados. Atônitos, passamos a questionar projetos ilibados de organizações internacionais não governamentais, como o de grupos como Médicos sem Fronteiras, Greenpeace, Anistia Internacional, Sierra Club e Human Rights Watch, entre tantos outros. Por outro lado, pensamento mais utópico e mais comprometido com a real emancipação do ser humano, o que deveria ser a tônica de qualquer processo globalizante, imagina alternativas de tributação do capital financeiro internacional, como instrumento gerador de recursos para combate à pobreza [161].

Uma sociedade neoliberal baseada em organizações complexas, em atores múltiplos, como empresas, bancos e entidades de classe dominante protagonizam um sistema de domínio ditado pelo mercado. Ainda segundo Michel Chossudovsky [162] os projetos de estabilização econômica passam por duas fases. Primeiro momento verifica um programa anti-inflacionário, marcado pela retração da demanda, pela maxidesvalorização e destruição da moeda nacional, pela dolarização dos preços domésticos, pela desindexação dos salários. Segundo momento percebe o implemento de reformas estruturais.

Realiza-se o projeto autoritário e neoliberal do Consenso de Washington. As medidas propostas e impostas por essa nova ordem são : 1) Acabar com a inflação, 2) privatizar e 3) deixar o mercado regular a sociedade, através da redução do papel do Estado, sendo os seus principais protagonistas as grandes corporações internacionais, sobretudo as norte-americanas [163].

Força-se a liberação unilateral do comércio. Privatizam-se as estatais. Levam-se a termo reformas fiscais, previdenciárias e trabalhistas. Desregulamenta-se o sistema bancário. Criam-se fundos sociais de emergência para a administração da pobreza mais ostensiva. A falência na reestruturação de sistemas de saúde implica na indesejável volta de doenças como o cólera, a febre-amarela e a malária.

A globalização das manufaturas faz-se a custa de mecanismos garantidores de mão-de-obra barata. Modelos de submissão ideológica realizam o colonialismo cultural. A generalização de problemas em locais como Somália, Ruanda, Moçambique, México, Peru, Bolívia, Argentina e Brasil confirmam os desajustes que decorrem de políticas de globalização.

O avanço do capitalismo, enquanto suposto progresso econômico e acúmulo de capital eficiente [164] é causa e consequência da globalização, de apreensão imediata. Consubstancia-se o reino dos maiores bancos do mundo [165] que controlam os atores globais em questões como dívida externa de países periféricos [166]. As mercadorias colonizam as formas de vida, implementando-se a fetichização prevista pelo ideário marxista [167].

Promove-se uma mercadização do estético, o que já fora denúncia dos frankfurtianos no exílio [168], especialmente por parte de Theodor Adorno [169], concepções que ensejam um neomarxismo crítico [170]. Nosso tempo globalizado confirma que a sociedade administrada produz uma massa acrítica e manipulável (...) nela ocorre a extinção do sujeito cognoscente, do sujeito responsável [171].

Duvida-se da razão iluminista, instrumental, que passa a perfilar um sentido cínico [172] e manipulador [173]. A razão propiciara a violência, suscitando poder, força, autoridade [174], aproximando ideologia e terror [175]. Vivemos num mundo prioritariamente composto de deserdados, marcado pela angústia e pela insegurança, tudo potencializado pela massificação do desemprego.

Boaventura de Souza Santos percebe movimentos hegemônicos e contra-hegemônicos no processo de globalização [176]. Um localismo globalizado identifica a hegemonia de fragmentos culturais particularizados; é a língua inglesa que de meio de comunicação de uma ilha torna-se língua franca do mundo. Um globalismo localizado assinala o impacto do global sobre o local.

É quando a apropriação turística de valores históricos e de recursos naturais promove a crise ambiental ou quando a conversão da lavoura de subsistência para agricultura de exportação reformata o uso dos solos. Contra-hegemonicamente, um certo cosmopolitismo desenha-se mediante o processo de formação de grupos internacionais interessados na discussão dos problemas decorrentes da globalização, a propósito da preocupação com temas como patrimônio comum da humanidade, Amazônia, Antártida, biodiversidade, fundos marinhos, embora nichos abstratamente possíveis de apropriação hegemônica e indicativos de uma bambificação da natureza, no alerta de Alexander Gillispie [177].

Todos os mencionados elementos referentes ao processo de globalização, identificados com o neoliberalismo e divinizados no Consenso de Washington, forçam alterações profundas nos modelos normativos dos países periféricos. O projeto neoliberal realiza-se localmente e por isso as legislações são alteradas, como condição de realização das ordens que possibilitam a hegemonia do Império, aquela figura política apontada por Antonio Negri e Michael Hardt, plasmada no domínio norte-americano e do capitalismo internacional financeiro. Todavia, no ar a pergunta atinente às possibilidades do capitalismo sobreviver ao sucesso, proporcionando taxas de crescimento econômico global anteriores a 1928 [178], questão que enseja toda sorte de engenharia social, plasmada em novos modelos normativos.

O Estado periférico perde a condição de soberania que inveja do estado europeu clássico de governo direto [179]. Ainda segundo Boaventura de Sousa Santos,

Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado consiste em criar o quadro legal e dar condições de efetivo funcionamento às instituições jurídicas e judiciais que tornarão possível o fluir rotineiro das infinitas interações entre os cidadãos, os agentes econômicos e o próprio Estado (180) .

As recentes transformações verificadas no direito brasileiro identificam essa realidade. A globalização projeta-se em todos os campos da normatividade, assim como da apreensão da arena jurídica, ensaiando novos cânones hermenêuticos. Nota-se um conflito entre economistas e juristas, um antagonismo declarado, uma polaridade entre eficiência econômica e certeza jurídica, entre programas anti-inflacionários e ordem constitucional [181].

Os economistas perseguem uma ética weberiana da convicção, preocupados que estão com os fins. Os juristas encalçam uma ética também weberiana da responsabilidade, desassossegados com os meios. Legisladores e magistrados perambulam por esse tiroteio, que atinge mais duramente o cidadão.

No direito previdenciário, por exemplo, percebe-se uma releitura do princípio da solidariedade e um redimensionamento do sistema, decorrente de um movimento de substituição do direito de feição estatal [182], formatado pela hegemonia dos conceitos neoliberais em matéria de relações econômicas [183]. Certo malthusianismo apocalíptico prende-se numa gerontofobia preventiva, prevendo a dilação de prazos de aposentadorias, proclamando a adequação de planos privados de pensão e menoscabando percepções analíticas de direitos adquiridos.

O direito penal, por sua vez, plasma a internacionalização dos delitos e percebe nos dizeres de Luiz Flávio Gomes e de Alice Bianchini [187] uma progressiva deterioração marcada pelas seguintes características : deliberada política de criminalização, freqüentes e parciais alterações na legislação, aumento dos marcos penais dos delitos clássicos, hipertrofia da proteção penal mediante a proteção institucional ou funcional dos bens jurídicos, ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato, menosprezo patente ao princípio da lesividade ou da ofensividade, erosão do conteúdo da norma de conduta, uso do direito penal como instrumento de política de segurança, pouca preocupação com os princípios de igualdade e de proporcionalidade para se atender a uma exacerbada preocupação prevencionista, transformação funcionalista de clássicas diferenciações dogmáticas ( como autoria, participação, consumação, entre outras ), um crescente movimento de responsabilização da pessoa jurídica, a par da privatização ou terceirização da justiça e, por fim,

Para alcançar a meta da efetividade, profundas alterações estão ocorrendo na área do processo penal, quase sempre orientadas à aceleração do procedimento, agilização da instrução e rapidez da Justiça, com o corte de direitos e garantias fundamentais para facilitar a operatividade da intervenção penal (185).

Já o direito internacional procura disciplinar uma nova ordem mundial que presencia o ocaso do modelo supranacional de Kelsen [186] perspectiva de possível comprovação mediante a avaliação do presente papel protagonizado pela Organização das Nações Unidas. Emergem novos atores internacionais [184] e o Estado-Nação convencional parece perder espaço. Também, e trata-se de idéia de Paul Kennedy, percebe-se uma intensa movimentação entre as potências hegemônicas. Para o teórico inglês, na medida em que os paises ganham consistência econômica e presença na política internacional, aumentam os gastos com o militarismo, o que a longo prazo determina a debilidade destas nações [188]. Os fatos vividos pela recente história econômica da União Soviética parecem comprovar a imagem.

Emerge triunfante a tese de Danilo Zolo. Segundo o autor italiano, a paz da Westphalia foi substituída pelo arranjo da Santa Aliança, que foi alterado pelo modelo da Liga das Nações, que posteriormente ressurge na Organização das Nações Unidas, e que hoje mostra-se inoperante, entre outros, em face do surgimento de novas forças, a exemplo da China. Um pacifismo cosmopolita imaginado por Norberto Bobbio conflitaria com um constitucionalismo global percebido por R. Falk, modelos conceituais anulados pela realidade da legitimação norte-americana por parte do Conselho de Segurança da ONU [189]. Como pano de fundo haveria ainda um conflito entre leste e oeste, entre civilização muçulmana e civilização cristã, que por enquanto pende por um suposto modelo triunfante de ocidentalização compulsória [190].

A velocidade dos meios de comunicação revela problemas do mundo todo, discutem-se direitos humanos num novo plano [191], embora, bem entendido, no ar a pergunta a propósito de que valores referenciam os aludidos direitos, dada a comunicabilidade dos mesmos com o planisfério conceitual dos direitos naturais.

O direito ambiental, também exemplificativamente, equaciona o impacto do modelo capitalista com a preservação da natureza, comprovando que economia e ecologia se completam, suscitando reflexões em torno de desenvolvimento sustentável. Vive-se hoje no mundo da astronave em oposição ao mundo pretérito do cowboy; naquele nada se perde, tudo se reaproveita, nada se dissipa, nesse não havia limites para a presença do homem.

O fechamento dos sistemas exige que se compreenda que as preocupações com a ecologia não são meramente estéticas ou de cunho ético-filosófico [192]. Realisticamente, a questão ecológica é uma questão social, e a questão social só pode ser adequadamente trabalhada hoje como questão ecológica [193].

Modelos tributários poderiam intervir positivamente [194] , via implemento de incentivos e de sanções positivas, mediante exações socio-ambientais [195]. Problemas de soberania também emergem, por conta da internacionalização da Amazônia e de ensaio em se transformar partes de nosso território em reserva ambiental internacional.

Uma estratégia epistemológica para a construção de uma racionalidade ambiental exige abordagem marcadamente interdisciplinar [196], fundada no respeito à vida [197]. Agarra-se em norma constitucional que imputa como direito fundamental o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado [198].

Percebe-se que a globalização e o neoliberalismo projetam grande impacto no direito brasileiro contemporâneo. De tal modo,

O novo paradigma que se afirma no atual horizonte das ciências sociais, inclusive a jurisprudência, é portanto uma dialética desses três vetores, a cibernética, referida ao controle das condutas, a globalização, referida à comunicação e o binômio capitalismo/neoliberalismo referido aos espaços político, econômico e ético da sociedade. Esses fatores repercutem na época atual e interferem na compreensão do direito, como aliás o faz em relação a todos os setores da vida humana (199).

O processo de miniaturização do Estado, em andamento, restringe direitos historicamente conquistados, limita avanços normativos de sabor mais democrático, moldando uma sociedade individualista, centrada na competição e na agressividade do agir, consolidando a ética capitalista.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Globalização e Direito no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 462, 12 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5797. Acesso em: 19 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos