1.A questão vista pela doutrina civilista tradicional.
A hipoteca cria um direito real de garantia sobre a coisa. Confere ao credor hipotecário um direito erga omnes. O objetivo do credor é ter seu crédito garantido. Assim, há dois direitos equivalentes: o direito do propriedade do imóvel por parte do comprador e o direito do credor à satisfação do seu crédito, que está garantido pelo imóvel.
É por ser um direito real que se afirma que a hipoteca adere à coisa, conferindo ao credor o direito de seqüela, onde quer que ela vá, com quem quer que ela esteja. Se inexiste esse direito de seqüela, não há hipoteca. Pode existir outro direito, mas não hipoteca. Hipoteca é erga omnes. Se ela não for erga omnes, não é hipoteca.
Assim, a regra geral, por ocasião da aquisição de imóvel, que está validamente hipotecado, com o gravamente devidamente registrado, é simples: o imóvel continua vinculado ao pagamento da dívida, de modo que o comprador poderá perder o direito à propriedade do bem, caso a dívida não seja paga.
A situação não é tão simples nas hipóteses em que o devedor celebra com alguém um compromisso de compra e venda do imóvel, mas o hipoteca para terceira pessoa, de forma mais ou menos simultânea. Pode ser que exista dolo.
Outra situação que enseja controvérsias ocorre quando a incorporadora hipoteca unidades autônomas do edifício, vendidas ou não, para obtenção de financiamento para a construção do mesmo.
Vejamos, assim, essas questões.
Se o comprador registra a sua escritura de compra e venda ou mesmo o seu compromisso de compra e venda, ele passa a ter direito real sobre o imóvel, de proprietário ou de compromissário comprador, respectivamente. Até aqui, nenhuma novidade. Se não consta nenhum registro de hipoteca, com prenotação anterior, o imóvel não poderá ser hipotecado por terceiro, salvo se o comprador consentir.
Se o compromissário comprador não registrar seu título, ele não terá direito real como tal, mas terá a proteção possessória (Súmula nº 84 do STJ), se na posse estiver, salvo no caso de fraude à execução.
Como se vê, essa matéria tem vários desdobramentos. É o que veremos a seguir.
2.A validade da hipoteca constituída pela incorporadora mediante autorização do adquirente do imóvel.
Bastante comum é (e até diríamos: infelizmente é bastante comum) a expressa concordância do adquirente de imóvel incorporado em ser o seu futuro imóvel hipotecado para garantia de financiamento a ser obtido pela incorporadora.
Isso normalmente ocorre por ocasião da contração da compra do imóvel a ser construído ou já em fase de construção. É uma cláusula contratual.
O adquirente, assim, assume a condição de garante da dívida, o que é, evidentemente, permitido pela legislação e aceito pela jurisprudência:
"EXECUÇÃO - DEBITO GARANTIDO POR HIPOTECA DE BEM DE TERCEIRO. RIGOROSAMENTE, O QUE GARANTE DIVIDA ALHEIA SERÁ CONSIDERADO RESPONSÁVEL, MAS NÃO DEVEDOR. PARA FINS DE EXECUÇÃO, ENTRETANTO, EQUIPARAM-SE, E, CONSTITUINDO O CONTRATO DE HIPOTECA TÍTULO CAPAZ DE ENSEJAR A EXECUÇÃO, QUEM DEU A GARANTIA SERÁ NECESSARIAMENTE EXECUTADO QUANDO SE PRETENDA TORNAR AQUELA EFETIVA, NÃO SE IMPONDO TAMBEM O SEJA O DEVEDOR.(...)".
(STJ, Terceira Turma, REsp nº 36581/CE, Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO, j. em 22/08/95, DJ 25/09/95, p. 31102)
O problema surge quando a incorporadora não paga o banco e não tem mais crédito. Há casos em que a incorporadora vai rolando a sua dívida, mediante aquisição de novos financiamentos, que supostamente seriam usados para um atual empreendimento, mas que, na verdade, destinam-se ao pagamento de dívidas oriundas de incorporações pretéritas. O fato é que o comprador, que pagou todo o preço do imóvel e nada deve à incorporadora, pode ficar com o imóvel hipotecado para o banco ao final do contrato. Casos há, tal como ocorrido com numerosos compradores da Encol, em que o imóvel nem mesmo foi totalmente construído, embora já estivesse hipotecado.
Há notícia de um antigo julgamento, com extratos do voto transcritos no livro Compra de imóveis, aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos, no qual o Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo entendeu que a hipoteca não seria válida, por não ter a instituição financeira avisado os compradores. O mesmo ocorreu recentemente, por ocasião do julgamento, por maioria, vencido o Ministro César Asfor Rocha, do REsp nº 171.421/SP, que comentaremos mais adiante.
No momento histórico atual, talvez em razão da magnitude do episódio Encol, o Judiciário está tendente a prestigiar a boa-fé dos compradores que ficaram sem o dinheiro e sem o imóvel, por não terem tido consciência do risco que corriam ao autorizar a incidência de hipoteca sobre o imóvel adquirido.
A posição da invalidade da hipoteca, apenas pelo fato do comprador ter pago tudo o que comprometeu-se a pagar à incorporadora, porém, não se sustenta a uma análise técnica da questão (salvo na hipótese de ocorrência de vício na constituição da hipoteca, ensejando sua anulabilidade).
Fiquemos, por ora, com a hipótese em que a hipoteca foi constituída de forma isenta de dolo ou simulação. Conforme vimos acima, é possível a um terceiro (ex. comprador do imóvel) a garantir dívida de alguém (ex. incorporadora), desde que ele tenha manifestado sua concordância.
É de se ressaltar que, atualmente, inexiste lei proibindo compradores de autorizar a hipoteca dos seus imóveis. O ato de garantia, a princípio, é válido.
Esse ponto é, assim, fundamental. Está de boa-fé o banco que, expressamente, aceitou em hipoteca um imóvel de terceiro ou comprometido a venda, com expressa autorização do proprietário ou compromissário comprador, para que a incoporadora obtivesse financiamento?
É evidente que, a princípio, não há de se falar em má-fé do banco ou da incorporadora, se existente a autorização do adquirente do imóvel. Com efeito, não há nada de ilícito em alguém garantir dívida de terceiro. É algo até bastante comum.
Quem concorda em garantir uma dívida de terceiro, mediante hipoteca do imóvel, deve estar preparado para, eventualmente, responder por essa obrigação. Há uma expressa assunção desse risco.
A recusa em cumprir o avençado, consistente na garantia hipotecária oferecida pelo comprador, na hipótese da incoporadora não pagar o que deve ao banco, configura descumprimento contratual. É princípio elementar do direito civil que contratos devem ser cumpridos.
Costuma-se alegar que o comprador "não tinha consciência do risco que corria". Na verdade, a ninguém é possível deixar de sujeitar-se aos efeitos da lei alegando seu descumprimento.
A desídia do comprador, no tocante ao deixar de ler um instrumento de contrato ou deixar de contratar um profissional especializado para fazê-lo, não pode ter o condão de eximir o comprador incauto dos efeitos danosos que possam do contrato advir.
Importante lembrar, assim, que quem não deseja correr os riscos de comprar algo que não existe (e talvez nem venha a existir) deve comprar algo que já está pronto. Quem não deseja correr o risco de ter o imóvel penhorado não deve concordar em dar em hipoteca o seu imóvel para garantia do débito da incorporadora.
Por outro lado, o que deve o agente financeiro fazer, para preservar seu direito, é tão somente registrar seu contrato de mútuo com garantia hipotecária na matrícula do imóvel, de modo que os futuros compradores desse imóvel poderão saber, mediante simples pedido de certidão, que o imóvel está hipotecado. Ficam, assim, protegidos os terceiros de boa-fé, que não comprarão ou imóvel hipotecado ou, se quiserem, saberão do risco que estão correndo.
Ademais, não há necessidade alguma do credor hipotecário avisar pessoalmente compradores ou quem quer que seja, exatamente porque inexiste qualquer norma nesse sentido. Se há anterior e expressa concordância dos compradores em admitir hipoteca sobre seus imóveis, não há de se falar, a princípio, em má-fé do agente financeiro.
É de se lembrar que as instituições financeiras somente irão financiar imóveis se tiverem garantia bastante de receberem seu crédito. Dentro do contexto liberal em que vivemos, os serviços bancários não são serviço público, mas sim atividade econômica. Com efeito, o que os bancos (empresas como quaisquer outras) querem é lucro: o financiamento da produção é apenas um meio e não um fim. Se não há perspectiva de lucro, não haverá financiamento. É o preço que se paga no capitalismo.
É de se notar, ademais, que o financiamento da construção civil, a despeito da ausência de intenção de filantropia por parte dos bancos, é benéfica para a sociedade, que precisa de imóveis.
2.1.A validade da hipoteca licitamente constituída, segundo o STJ. A divergência entre a Terceira e a Quarta Turma. O precedente criado pelo julgamento do REsp nº 171.421 em 06/10/98.
Não é de se estranhar que a jurisprudência predominante sempre acolheu a posição da validade da hipoteca, na hipótese de inocorrência de vício de vontade, acompanhando uma orientação pacífica da doutrina.
Essa é, inclusive, a orientação da Terceira Turma do C. STJ, como se vê do seguinte julgado:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - AGRAVO REGIMENTAL - CONTRATO MÚTUO E HIPOTECA- COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA EMBARGOS DE TERCEIROS.
I - Se a credora hipotecária não participou da avença, nem liberou os agravantes do vínculo hipotecário, sendo este real e não pessoal, qualquer negócio entre a Incorporadora e os promitentes compradores é inoponível à ora agravada e exequente que, titular do direito de sequela, pode exercer o seu direito de excutir o bem objeto da hipoteca para pagamento do seu crédito.
II - O contrato de mútuo e hipoteca previa a transferência do referido débito hipotecário proporcionalmente aos adquirentes das unidades imobiliárias bem como, a responsabilidade da construtora pela liquidação do débito. Sendo esta disposição, tinham conhecimento do risco do negócio.
III - Agravo Regimental improvido."
(STJ, Terceira Turma, Agravo nº 161052/SP, Relator Ministro WALDEMAR ZVEITER, j. em 15/10/1998, DJ de 07/12/98, p.81)
Contudo, também recentemente, por ocasião do julgamento, em 06/10/98, do Recurso Especial nº 171.421, por maioria (vencido o Min. César Asfor Rocha), a Quarta Turma criou um precedente que rompe com a tradição do Direito Civil, no tocante aos financiamentos de imóveis celebrados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação.
Em linhas gerais, esse julgamento afirmou que, nos contratos celebrados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, a disciplina jurídica da hipoteca seria distinta.
Afirmou expressamente o Min. Ruy Rosado de Aguiar, relator designado para o acórdão em questão:
"A hipoteca que o financiador da construtora instituiu sobre o imóvel garantia a dívida dela enquanto o bem permanecesse na propriedade da devedora: havendo transferência, por escritura pública de compra e venda ou de promessa de compra e venda, o crédito da sociedade de crédito imobiliário passou a incidir sobre ´os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado´ (art. 22 da Lei nº 4.864/65) sendo ineficaz em relação ao terceiro adquirente a garantia hipotecária instituída pela construtora em favor do agente imobiliário que financiou o projeto."
A análise dessa orientação passa pela interpretação do caput do art. 22, da Lei nº 4.864/65, que assim dispõe:
"Art. 22. Os créditos abertos nos termos do artigo anterior pelas Caixas Econômicas, bem como pelas sociedades de crédito imobiliário, poderão ser garantidos pela caução, a cessão parcial ou a cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado."
Como se pode bem notar, em nenhum momento, ao contrário do que conclui o trecho do voto supra transcrito, o art. 22, da Lei nº 4.864/65, determina que o direito de hipoteca da instituição financeira seja convertido em direito de crédito contra o comprador. Apenas diz que a cessão pode existir. Não afirma que se existir a cessão a hipoteca irá desaparecer ou não será válida contra o comprador.
Com a devida venia, hipoteca é direito real. É de sua natureza a validade e eficácia contra o adquirente. Se não for assim, não é direito real, não é hipoteca.
O que o julgamento em questão fez foi afirmar que a hipoteca de imóveis, ocorrida no âmbito do SFH, não é eficaz contra os compradores. Ou seja, afirmou o julgado que essa "hipoteca" não é erga omnes, mas sim direito pessoal contra a incorporadora, por ser apenas válida enquanto o imóvel permanecer na propriedade da incorporadora.
O comprador do imóvel pode não ter tido ciência do risco que corria ao celebrar um contrato que autorizava a incorporadora a hipotecar a unidade imobiliária adquirida, por não ter lido o contrato ou por não ter contratado um profissional especializado na matéria para assessorá-lo.
Interessante notar, a esse respeito, o que afirmou o voto vencedor o Min. Bueno de Souza, por ocasião do julgamento em análise:
"Vejamos o caso da hipoteca outorgada como pacto adjeto de contrato de mútuo para financiamento de construção de edifício residencial. Vamos, como juízes - proponho eu -, encarar a realidade que está diante de nós. Qual de nós mesmos, julgadores, ao adquirir um apartamento financiado - parece que devamos ter incorrido nessa emergência - foi ao registro de imóveis para verificar se toda a documentação necessária para a regularização legal da incorporação está realmente depositada? O depósito no registro de imóveis não exclui litigiosidade em torno do tema. Verificar, por meio de advogado competente, a regularidade dessa documentação, é algo que raramente ocorre. O princípio da boa-fé leva o público a crer que certas empresas incorporadoras e construtoras que tanto investem na publicidade são confiáveis. É impossível negar a realidade das grandes cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, em que até os advogados têm a maior dificuldade para obter acesso aos livros do registro de imóveis."
Com a devida venia do ilustre julgador, é preciso estimular a utilização da advocacia preventiva. É necessário dizer à sociedade que os advogados e demais profissionais devem ser contratados também para cuidar para que problemas não surjam (até porque é muito mais barato) e não apenas para agir corretivamente, depois que os problemas tiverem surgido.
O princípio da proteção da boa-fé não pode ter o alcance que propõe esse voto: não é possível premiar o comprador incauto, em detrimento do credor zeloso; a ninguém é lícito alegar a própria torpeza em seu benefício.
Por outro lado, para saber se um imóvel está hipotecado, basta telefonar para um despachante e receber em casa a certidão do imóvel: se não constar lá registro de hipoteca, hipoteca não há, pois não há hipoteca sem registro. Para saber se o imóvel adquirido poderá ser hipotecado, basta ler o instrumento do contrato de compra: se não estiver escrito nele que a incorporadora poderá hipotecar o imóvel, a hipoteca não poderá será válida contra o comprador que registrou seu título ou já ingressou na posse do imóvel.
A aquisição de um imóvel é algo extremamente importante e não deve ser tratada de forma leviana. Não é possível, assim, infirmar uma hipoteca, só porque o comprador deixou de tomar as mínimas cautelas devidas, tal como ler o instrumento de contrato que se assina, e foi prejudicado em decorrência dessa falta de cuidado.
Além disso, após o episódio Encol, não é mais possível afirmar (antes já não era...) que as pessoas tenham plena confiança nas incorporadoras, só porque elas investem em publicidade...
Assim, com a devida venia, s. m. j., a razão está com o voto vencido do Ministro César Asfor Rocha e com a orientação da Terceira Turma. Deve ser reputada como válida a hipoteca, devidamente registrada, na hipótese em que o comprador do imóvel autorizou validamente a sua instituição, mesmo no âmbito do SFH, por ausência de norma a dispor em sentido contrário, conforme vimos acima.
Resta saber, contudo, qual será a posição a ser tomada pela Segunda Seção, quando a questão for por ela apreciada em sede de embargos de divergência, uma vez que esse órgão é o competente para dirimir divergência entre julgamentos da Terceira e Quarta turmas.
3. A validade ou invalidade da hipoteca constituída pela incorporadora, se autorização do adquirente do imóvel. A anulabilidade da hipoteca.
Imaginemos, por outro lado, a hipótese em que uma incorporadora, de forma mais ou menos simultânea, celebra um contrato de compra e venda ou de compromisso de compra e venda com alguém e, sem avisá-lo e sem obter sua concordância, celebra também um contrato de mútuo com garantia hipotecária incidente sobre o mesmo imóvel.
Há de se ressaltar, inicialmente, que a nossa ordem jurídica repele, de forma veemente e expressa, que o compromissário vendedor proceda à hipoteca do imóvel sem avisar o comprador. É o que dispõe o art. 171, II, do Código Penal, que tipifica como crime essa conduta.
Percebe-se claramente que, nessa hipótese, o comprador não tem condições de aferir, objetivamente, se o imóvel a ser adquirido está ou será onerado, se não há registro da hipoteca da matrícula do imóvel.
Ao mesmo tempo, o credor não tem condições de presumir a existência do compromisso de compra e venda, caso ele não esteja registrado e o comprador não esteja na posse do imóvel (hipótese, ademais, em que não será aplicável a Súmula nº 84 do STJ).
A toda evidência, incumbe ao adquirente do imóvel a proteção do seu direito. Se ele age com negligência, no tocante a deixar de registrar seu título quando possível fazê-lo, deve suportar os ônus de sua desídia. Não seria razoável proteger um desidioso comprador em detrimento de um diligente credor, que emprestou dinheiro mediante garantia hipotecária em um negócio que, em princípio, deve ser reputado como lícito.
O mesmo se diga na hipótese do credor deixar de registrar a sua hipoteca ou aceitar essa garantia incidente sobre bem na posse de terceiro não anuente.
Assim, a princípio, a questão da validade da hipoteca na hipótese de ausência de autorização do adquirente, pode ser facilmente solucionada com observância da boa-fé das partes, aferida de forma objetiva.
Por aferição objetiva da existência da boa-fé da parte devemos entender um modo de verificação, por parte do magistrado, quanto a sua existência.
É elemento preponderante para essa aferição o fato de ter se constado se a parte adotou previamente as cautelas necessárias para saber se a eficácia do seu negócio (ato jurídico) era juridicamente segura ou não. Por cautelas necessárias devemos entender as que são possíveis e acessíveis a todos, sendo hábeis a descobrir os riscos jurídicos do negócio.
Não estão, objetivamente, de boa-fé, os incautos (comprador ou banco) que não tomam cautelas mínimas para proteção do seu direito, tal como na exposto nas hipóteses mencionadas, em que o compromissário comprador deixa de registrar seu contrato, sendo-lhe juridicamente possível fazê-lo, ou que o banco aceita a hipoteca de um bem que está na posse ou com registro de compromisso de venda a pessoa que não anuiu com a instituição do gravame.
Há uma presunção de ciência da existência do risco, em razão da possibilidade prática de seu conhecimento previamente à celebração do negócio.
Porém, se ambas as partes estiverem, objetivamente, de boa-fé (isto é, se não havia a possibilidade de ciência do risco para nenhuma das partes), a questão se soluciona pela aplicação seca da prioridade registral e da Súmula nº 84, do STJ.
A hipoteca constituída dessa forma (isto é, sem autorização do adquirente do imóvel) será considerada válida, caso o adquirente que ainda não está na posse do imóvel não tenha providenciado o registro do seu contrato antes de ter sido a hipoteca registrada.
Se o comprador registrar o seu título primeiro, a hipoteca não será eficaz contra ele, mesmo que o cartório imobiliário a registre. O mesmo se diga na hipótese de o comprador ingressar na posse do imóvel antes do registro da hipoteca, a teor do disposto na Súmula nº 84, do STJ.
Diante de dois direitos equivalentes (de propriedade e de garantia, ambos reais e passíveis de registro) a prioridade é dada àquele que registra primeiro, até mesmo como forma de incentivar o registro do título. A questão é solucionada mediante aplicação do princípio da prioridade registral, exceção feita na hipótese da Súmula nº 84, do STJ, que privilegiou a proteção da posse, por política judiciária - em oposição à orientação contrária que havia sido estabelecida pelo STF na época em que julgava matéria de lei federal em detrimento da aplicação do princípio da prioridade registral.
A manutenção do direito real será concedida ao mais zeloso, devendo ficar o menos zeloso com um simples direito pessoal contra o vendedor.
Contudo, restará ao que foi menos zeloso ou menos diligente a possibilidade de, desincumbindo-se do ônus da prova de eventual dolo ou simulação da parte contrária, desconstituir a hipoteca do credor ou fazê-la eficaz contra o comprador, invertendo a situação.
Assim, se o compromissário comprador, que não registrou seu título, conseguir fazer a prova da ocorrência de dolo ou simulação, a hipoteca será anulada, pois os negócios jurídicos assim viciados são anuláveis, nos termos do art. 147, II, do Código Civil. Até que isso ocorra ela é eficaz.
O mesmo se diga do credor que não registrou a hipoteca ou o fez após o registro do título ou da imissão na posse por parte do comprador.
4.As vantagens da adoção do princípio da boa-fé objetiva.
Como se pode claramente observar, o melhor critério de justiça é o da aferição objetiva da boa-fé dos interessados. A ordem jurídica fica inteiramente preservada.
Os julgamentos que não levam isso em consideração, embora possam até ter o nobre propósito de fazer "justiça" em um caso concreto, ao dar um julgamento a beneficiar uma parte economicamente mais franca, podem acarretar uma grave situação de incerteza jurídica, transformando o direito em uma imprevisível "loteria", o que abala e prejudica toda a sociedade.
Com a admissão do princípio da boa-fé objetiva, é sempre protegido o interesse da pessoa zelosa, que deve, por esta sua característica, ser premiada. Já o interesse do incauto deve ser sacrificado, se oposto ao da pessoa zelosa. A justiça será feita no caso concreto sim e, o que é melhor: sem violar qualquer norma jurídica e contribuindo para a certeza e previsibilidade do direito.
Além disso, a segurança das relações jurídicas será maior, beneficiando toda a sociedade. Saberá a parte que, tomando as cautelas devidas, seu negócio não será juridicamente prejudicado. Poderá, sim, ser prejudicado por razões econômicas, mas não por razões jurídicas. O risco econômico é inerente à atividade empresarial. Já o risco jurídico deve ser eliminado.
O princípio da boa-fé objetiva, portanto, tem um caráter de segurança jurídica e de pacificação das relações sociais. Embora não elimine, reduz sensivelmente o subjetivismo do julgador, diminuindo enormemente o grau de incerteza do Direito e até mesmo a imprevisibilidade do resultado do processo judicial, contribuindo para a certeza e o prestígio da função jurisdicional.