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A função social dos contratos em uma perspectiva civil-constitucional

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25/10/2004 às 00:00
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2. AUTONOMIA DA VONTADE E "CRISE" DO CONTRATO

O surgimento do contrato não se apresenta de uma forma nítida na História, confundindo-se com o surgimento da própria sociedade humana, desde os grupos sociais mais primitivos.

Tão velho como a sociedade humana e tão necessário como a própria lei, o contrato se confunde com as origens do Direito.

Superado o estágio primitivo da barbárie, em que os bens da vida eram apropriados pela força ou violência, e implantada a convivência pacífica em face dos bens utilizáveis na sobrevivência e desenvolvimento do homem, o contrato se fez presente, de maneira intensa, nas relações intersubjetivas, como projeção natural da vontade e do consenso. E quanto mais se ampliaram os grupamentos civilizados e mais volumoso se tornaram os negócios de circulação de riquezas, mais constante e decisivo se mostrou o recurso ao contrato, em todos os níveis da sociedade.

Hoje pode-se dizer que nenhum cidadão consegue sobreviver no meio social sem praticar diariamente uma série de contratos.

Para os romanos, o vínculo que se estabelecia na relação contratual possuía uma origem estritamente objetiva, que correspondia à possibilidade de recorrer-se a actio, para se fazer cumprir o no contrato estipulado. Desta forma, o negotium contractus não continha uma conotação subjetiva, no sentido de rejeitar-se à vontade acordada, e sim, exclusivamente, representava uma garantia de recurso à autoridade estatal.

O direito romano não conheceu o contrato como categoria geral, até porque inexistia o direito subjetivo como os modernos desenvolveram. A tipicidade romana das actiones não comportava uma figura genérica a que se conduzissem, por subsunção, as espécies contratuais. Se o pretor não admitia a actio para determinadas convenções, elas simplesmente não existiam como contratos; eram pactos nus (pacta nuda).

A partir da Idade Média, com a significativa influência do direito canônico e da moral cristã, modifica-se profundamente a conceituação do contrato, que assume o papel de instituto de conotação subjetiva, derivado da vontade livre do indivíduo que tivesse capacidade para contrair obrigações, deixando-se de lado o aspecto do formalismo exacerbado.

Cláudia Lima MARQUES, em sua obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor, quando analisa as mudanças ocorridas na teoria do direito contratual, conclui que as principais origens da doutrina da autonomia da vontade encontram-se no Direito Canônico, ao defender a validade e a força obrigatória da promessa por si própria; na teoria do Direito Natural, que fornece a base filosófica da ética da liberdade e do dever de Kant; na

Revolução Francesa, através dos princípios da Teoria do Contrato Social; e, por fim, no liberalismo econômico, que encontrava no contrato um instrumento de circulação de riquezas.

Autonomia de vontade, liberdade individual e propriedade privada, transmigraram dos fundamentos teóricos e ideológicos do Estado Liberal para os princípios de direito, com pretensão a universalidade e intemporalidade.

Considere-se o mais brilhante dos pensadores da época, Kant, especialmente na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde distingue o que entende por autonomia de heteronomia. A autonomia é o campo da liberdade, porque os seres humanos podem exercer suas escolhas e estabelecer regras para si mesmos, coletivamente ou interindividualmente. A heteronomia, por seu turno, é o campo da natureza cujas regras o homem não pode modificar e está sujeito a elas.

Assim, o mundo ético, em que se encartaria o direito, seria o reino da liberdade dos indivíduos, enquanto tais, porque a eles se dirige o princípio estruturante do imperativo categórico kantiano. Na fundamentação filosófica kantiana, a autonomia envolve a criação e aplicação de todo o direito.

O Voluntarismo Jurídico, surgido na Baixa Idade Média por influência dos filósofos do século XVIII, tem seu apogeu no século XIX, devendo sua formulação científica aos juristas da pandectista alemã. Ao contrário de muitos institutos jurídicos, o contrato não veio de Roma; o voluntarismo, o objetivismo romano restou invertido, pois, agora, se o mero consenso obriga e o descumprimento constitui pecado, as palavras, expressão do subjetivismo, não podem ser quebradas.

Conforme a concepção desenvolvida pelos alemães, dentre eles Savigny, a vontade humana apresenta-se como um fator essencial na criação, modificação e extinção dos direitos e obrigações, representando o discurso de Rousseau, no Senado Francês, síntese perfeita do princípio voluntarista da intangibilidade do conteúdo dos contratos, ao afirmar que a lei nada mais pode acrescentar, nem subtrair de um contrato em curso.

Neste mesmo sentido, são pertinentes as palavras de Franscisco dos Santos AMARAL NETO, quando afirma que o individualismo apresenta-se como um sistema segundo o qual as normas jurídicas são obras dos indivíduos e não da sociedade, que um sistema jurídico resulta da atividade individual.

Para Fernando NORONHA, no terreno contratual, o voluntarismo apresenta-se como manifestação jurídica do individualismo burguês, apresentando como seus princípios fundamentais a liberdade contratual e a obrigatoriedade ou vinculatividade do contrato.

Afirma-se que, no voluntarismo jurídico contratual, o princípio basilar, absorvendo os acima citados, "foi o pacta sunt servanda, elevado às suas conseqüências máximas, nada obstante, pode significar, em alguns casos, descompasso entre o conteúdo do contrato e a realidade fática e circunstancial que envolve a relação jurídica entre os contratantes".

Neste contexto, tem-se como princípio basilar o da igualdade (correspondente à isonomia perante a lei), que se afigurou indispensável para a construção de um mercado em busca da livre contratação, "em que os indivíduos não estivessem subordinados a limitações de disposição, foi respondida pela técnica do sujeito de direito único: era-se proprietário, contratante, pai de família", sem quaisquer outros atributos diferenciadores.

O contrato era tido como instrumento de circulação de riquezas, constituindo-se em adequado e legítimo mecanismo para que a classe em ascensão (burguesia) tivesse, à sua disposição, um meio legal para obter da classe aristocrática em decadência a tradição do bem jurídico mais importante para aquele sistema jurídico que era o real imobiliário.

[...]

Vale frisar que a concepção moderna de justiça contratual encontrava seu ápice no livre exercício da vontade individual, única fonte legítima, conforme se viu, de produção de justiça.

[...]

A exploração desacerbada, pelo liberalismo clássico, do exercício da autonomia da vontade (liberdade contratual), entra em processo autofágico. O homem contratante acabou no final do século passado e início do presente, por se deparar com uma situação inusitada, qual seja, a da despatrimonialização das relações contratuais, em função de uma preponderante massificação, voltada ao escoamento em larga escala, do que se produzia nas recém-criadas indústrias.

Este modelo liberal do contrato não resiste ao novo paradigma que surge, desenvolveu no futuro imediato, e se desenvolve na atualidade, principalmente por força de dois macrofatores: o surgimento do Estado social e de uma sociedade de massas.

Acontecimentos decorrentes, principalmente, da Revolução Industrial, alteram bastante este quadro do direito contratual. A urbanização, conseqüência do crescimento exponencial da população, da migração do campo para as cidades em busca de melhores condições de vida que o desenvolvimento econômico de base industrial propiciou, e a progressiva concentração capitalista decorrente essencialmente da concorrência econômica e da luta pela competitividade, pela racionalização, por melhores condições de produção e distribuição.

A sociedade de massa, neste final de século XX, multiplicou a imputação de efeitos negociais a um sem número de condutas, independentemente da manifestação de vontade dos obrigados.

O contrato é, pois, fenômeno onipresente na vida de cada um. Até mesmo quando se está dormindo, consome-se bens ou serviços fornecidos em massa.

O resultado de tudo isso encontra-se na massificação da sociedade, ou seja, nas cidades transformadas em gigantescas colméias; nas fábricas, com produção em série; no ramos das comunicações, rádio, televisão; nas relações de trabalho, com o advento das Convenções Coletivas, enfim, nas relações de consumo, com contratos padronizados e de adesão.

Com efeito, o princípio da autonomia da vontade parte do pressuposto de que os contratantes se encontram em pé de igualdade, e que, portanto, são livres de aceitar ou rejeitar os termos do contrato. Mas, isso, nem sempre é verdadeiro. Pois a igualdade que reina no contrato é puramente teórica (cf. Ripert, ob. e loc. cits.) e, via de regra, enquanto o contratante mais fraco no mais das vezes não pode fugir à necessidade de contratar, o contratante mais forte leva uma sensível vantagem no negócio, pois é ele quem dita as condições do ajuste.

Conseqüentemente, os contratos que antes eram realizados apenas por determinadas pessoas, estipulando cada uma delas as cláusulas que desejassem, passam a ser realizados em grandes quantidades, devido à crescente demanda, como, por exemplo, dos contratos de locação, compra e venda à prazo etc.

Diante desta massificação dos contratos há a necessidade de agilização dos negócios jurídicos. Surge, então, uma técnica de realização desses contratos denominada por Sailleles de contratos de adesão, cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo contratante mais forte, cabendo a parte mais fraca a opção de aceitar ou não.

Nesse novo contexto contratual, a moldura descrita pelo Code e códigos, perde o contrato, em definitivo, com os fatos da vida; a tão festejada liberdade contratual não dava mais conta de explicar o fenômeno da falta de liberdade material, mas não jurídica, daquele que contratava por adesão. E por liberdade contratual na época clássica do contrato, entendia-se a possibilidade de se contratar ou não, a escolha do outro contratante e, sobretudo, a eleição do conteúdo do contrato.

Nas palavras de Ricardo ARONNE

Advém, nesse contexto, a Revolução Industrial com a política liberalista vindo esmagar massas arrastadas ao proletariado,fermentando a inquietação destas contra o individualismo, de modo a questionar o mundo de então sobre a questão social, promovendo, conseqüentemente, uma reviravolta no sistema de então.

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A padronização contratual foi uma alternativa que teve uma explicação razoável, ante a nova situação na qual se encontrava a sociedade (representada pelas figuras do fabricante-empregador e dos empregados-consumidores), porém, a elaboração de contratos de adesão deu margem a vários abusos, inclusive pelo fato de que vigorava o princípio da igualdade das partes, apesar da completa disparidade com a realidade.

Arnoldo WALD estabeleceu uma interessante relação entre o contrato no passado e no presente, ao afirmar que, no passado, o contrato era uma espécie de ilha, independente e alheia aos acontecimentos, sempre a prevalecer sobre eventuais modificações fáticas e legislativas, já na atualidade, porém, o contrato transforma-se em um bloco de direitos e obrigações para ambas as partes.

Diante deste quadro, nota-se que a era da estabilidade e segurança é fortemente atingida pelos movimentos sociais e pelo processo de industrialização, no século XIX, aliados às vicissitudes do fornecimento de mercadorias e à agitação popular, intensificados pela Primeira Guerra Mundial, que atingiram profundamente o direito, tornando-se inevitável a necessidade de intervenção estatal cada vez mais acentuada na economia.

O poder público, impulsionado por pressões pela massa empregados, que se uniram em associações de defesa de seus interesses, que deram origem aos sindicatos e partidos populares hodiernos, assim como pela coletividade de consumidores, acabou por elaborar normas jurídicas de ordem pública econômica, buscando o restabelecimento do equilíbrio da relação contratual.

O contrato que tem modelo liberal como seu paradigma, cujo princípio máximo é a autonomia da vontade, reflete, na verdade, um momento histórico que não corresponde mais à realidade atual.

Essa concepção tradicional do contrato, que tem na vontade a única fonte criadora de direitos e obrigações, formando lei entre as partes, sobrepondo-se à própria lei, bem como a visão do Estado ausente, apenas garantidor das regras do jogo, estipuladas pela vontade dos contratantes, já há muito vêm tendo seus pilares contestados e secundados pela nova realidade social que se impõe.

Dessa forma, o contrato se transforma para se adequar às exigências da nova realidade, passando, no dizer da Professora Cláudia Lima Marques, ‘de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas’.

Na verdade, as transformações sociais sempre influenciaram sobremaneira o mundo jurídico. Assim, o contrato vem sofrendo mudanças significativas, que iniciaram, de maneira mais intensa, no período do pós-guerra. Inicialmente, temos a primeira guerra mundial, época em que, realmente, se deu a passagem para o século XX no que diz respeito ao mundo de idéias e concepções. A partir de então, a sociedade começou a passar por processos como o aumento da população mundial, o que deu margem a novas relações jurídicas, massificadas ou coletivas; acarretando, também, um grande desequilíbrio social.

Posteriormente, com a segunda grande guerra, foram aprofundadas as transformações, levando o Estado social, onde a preocupação, no âmbito do direito dos contratos, passou a ser mais com o coletivo, com o interesse da sociedade, deixando de lado a concepção do contrato como instrumento de realização meramente individual. O contrato passou, então, a ter função social, num fenômeno semelhante ao ocorrido com a propriedade. Essa mudança, onde a noção de eqüidade, de boa-fé e de segurança, enfim, de justiça, passaram a ser o centro de gravidade da teoria dos contratos, levou à chamada socialização da teoria contratual.

Ocorre, então, uma completa alteração do eixo interpretativo do contrato, que ao invés de ser visto como resultado da intenção das partes e da satisfação de seus interesses, passa a representar um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade. Logo, os particulares não têm a capacidade, como acreditavam os clássicos, de autodeterminação, mas que o Estado, através de lei, é que pode aceitar a livre organização privada.

Desta forma, a autonomia privada funciona como um poder jurídico particular, traduzindo-se na possibilidade do sujeito agir com intenção de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas próprias ou de outrem, mas não se apresenta como um poder originário.

Já a autonomia da vontade é o princípio pelo qual o querer do indivíduo produz efeitos de lei, quando não for contrário à ordem pública, às normas positivas de Direito e ao interesse social.

O princípio da autonomia da vontade consiste na prerrogativa conferida aos indivíduos a de criarem relações na órbita do direito, desde que submetam às regras impostas pela lei, e seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam. Desse modo, qualquer pessoa capaz pode, através de livre manifestação de vontade, tendo objeto lícito, criar relações a que a lei empresta validade.

O poder conferido aos indivíduos de exercitarem seus interesses através da autonomia da vontade não se expressa como um poder ilimitado. A liberdade de manifestação de sua vontade jurídica sofre limitações que foram expressa ou implicitamente estabelecidas pelo Direito em defesa da organização do Estado, de suas instituições, dos interesses da coletividade.

Segundo o princípio da autonomia da vontade, o contrato aperfeiçoa-se pela convergência de duas ou mais manifestações de vontades, portanto, se os sujeitos as externaram livre e conscientemente e se observadas todas as disposições legais, a lei as faz obrigatórias, impondo a reparação de perdas e danos na hipótese de inadimplemento contratual.

Dirige-se no sentido de uma reconstrução do próprio sistema contratual orientada no sentido de libertar o conceito de contrato da idéia de autonomia privada e admitir que, além da vontade das partes, outras fontes integram o seu conteúdo. A nova concepção atenta para o dado novo de que, em virtude da política interventiva do Estado hodierno, o contrato, quando instrumenta relações entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagônicas, ajusta-se a parâmetros que levam em conta a dimensão coletiva dos conflitos sociais subjacentes.

O significado e o alcance do contrato reflete-se nas relações econômicas e sociais de cada momento histórico. O modelo clássico (liberal e tradicional) apresenta-se inadequado aos atos praticados na atualidade, porque são distintos os seus fundamentos, configurando-se uma barreira às mudanças sociais. O conteúdo conceitual e material e a função do contrato mudaram, para adequá-lo às exigências da concretização de uma justiça social, que não é só dele, mas de todo o Direito.

Quais são as críticas que se podem fazer à autonomia privada? Sob o ponto de vista filosófico, alega-se que é a expressão do mais puro individualismo, e que a esse individualismo se contrapõe tendências sociais da Idade Contemporânea. O homem é um ser social que vive, necessariamente, em grupo, o que lhe impõe inevitáveis restrições e condicionamentos na sua capacidade de agir. Também, sob o ponto de vista moral, demonstra-se que os princípios da liberdade e da igualdade não se realizam harmonicamente. A igualdade perante a lei é meramente formal; no campo material, as desigualdades são profundas.

A autonomia privada é derivada do ordenamento jurídico estatal, devendo ser exercida nos limites fixados. Com o propósito de dar ao equilíbrio social sentido mais humano, conduziu-se a política legislativa, primeiramente nos países europeus e posteriormente no Brasil, que representa uma limitação da autonomia privada, o que acabou resultando na criação de novas figuras jurídicas, que excederam o modelo clássico de contrato e impulsionaram à necessidade de revisão do seu próprio conceito.

Por último, a idéia do Direito Privado, o seu princípio fundamental, que é autonomia privada, tem por objeto basicamente as relações patrimoniais, aquilo que se chama ‘a lógica proprietária’. Essa idéia cede espaço à noção de que o Direito Privado constitui também, e fundamentalmente, o lugar de tutela de valores existenciais e não apenas de patrimoniais.

Dessa forma, a jurisprudência mais recente dos tribunais alemães e portugueses legitima o princípio da autonomia privada pelo princípio do livre desenvolvimento da personalidade, que tanto impulsionou a civilística alemã desde o início do século, e que se vincula estreitamente a um princípio constitucional, que é o princípio da dignidade da pessoa.

Isso denota um Direito Privado diverso daquele da época liberal, eis que eleva-se ao mesmo patamar do interesse particular a defesa dos mais fracos, "passa a ser um direito tutelador, delimitador, coibindo abusos".

No contexto de todas estas mudanças sociais, Paulo Luiz Neto LÔBO esclarece

O Estado liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais do que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais.

Todavia, o maior golpe, contra o modelo liberal do contrato foi desferido quando surgem os chamados direitos de terceira geração, que possuem natureza transindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassam as figuras das partes que figuram na relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

Quando se trata de crise do contrato ou mesmo de crise do Direito Civil, isso se refere a crise dos conceitos arcaicos da doutrina conservadora e comprometida com um sistema que não mais é o vigente, pois se abordada cientificamente a questão, com espeque na metodologia, o que se observa é uma evolução do Direito Civil, inserido em um sistema móvel e aberto, que evolui junto com a sociedade para o qual existe, na medida em que é móvel.

Há uma desvalorização do princípio da autonomia privada, uma vez que se esvazia o papel da vontade, enquanto elemento nuclear, "[...] para ceder lugar a comportamentos automáticos ou socialmente típicos que ocupam o posto da manifestação volitiva. É o que basta para, mais uma vez, confirmar a crise pela qual passa a clássica definição do contrato."

O contrato, portanto, transforma-se para adequar-se ao tipo de mercado, ao tipo de organização económica em cada época prevalecente. Mas, justamente, transformando-se e adequando-se do modo que se disse, o contrato pode continuar a desempenhar aquela que é – e continua a ser – a sua função fundamental na âmbito das economias capitalistas de mercado: isto é, a função de instrumento da liberdade de iniciativa económica. Está agora claro que as transformações do instituto contratual, que designámos em termos da sua objectivação, não contrariam, mas antes secundam, o princípio da autonomia privada, desde que se queira ter deste princípio uma noção realista e correcta [...].

Cabe salientar que o Estado Social não excluiu o princípio da autonomia da vontade. Em verdade, "o que houve foi a redução de sua importância, já que o mesmo era considerado um dogma inafastável na teoria contratual clássica e que tal visão não se coaduna mais com o momento histórico em que vivemos."

A suavização do princípio da autonomia privada, no entanto, não significa o seu desaparecimento, pois permanece sendo imprescindível que exista segurança nas relações jurídicas criadas pelo contrato. Não há mais a obrigatoriedade quando as partes se encontram em patamares diversos e dessa disparidade ocorra proveito injustificado de uma parte em detrimento da outra..

Indiscutivelmente, o contrato é um dos principais instrumentos de circulação de riquezas. Todavia, ao regular os interesses das partes, não pode ser considerado um elemento de outra dimensão, desvinculado do contexto social do qual é constituído. Afinal, o contrato é relação jurídica que, por excelência, mais contribui para a distribuição de bens suscetíveis de valoração econômica.

Como instrumento hábil à circulação de riquezas, o contrato deve também se notabilizar, na sociedade pós moderna, como instrumento de proteção aos interesses socialmente relevantes.

Segundo Mônica Yoshizato BIERWAGEN, a desigualdade material entre as partes contratantes não passou despercebida pelo atual Código Civil, ao estabelecer novos limites à autonomia da vontade, impondo que

[...] seu exercício deverá objetivar e se dar em razão da função social do contrato; proibindo e tornando anuláveis determinados conteúdos que representem uma desigualdade substancial entre as partes (enriquecimento sem causa, lesão nos contratos bilaterais, contrato estabelecido em estado de perigo); exigindo transparência, lealdade e correção nos negócios (princípio da boa-fé).

O Código Civil de 2002, atento a essa tendência de amenização do rigor do princípio da autonomia da vontade, incorporou em seu texto a cláusula rebus sic standibus aos contratos de execução continuada e diferida (art.478 a 480), bem como os institutos da lesão (art.157) e do estado de perigo (art.156), que possibilitam a intervenção do Estado, seja para resolver, seja para revisar as cláusulas contratuais as quais se vincularam as partes contratantes.

Desta forma, o Estado Social, que tem na dignidade da pessoa humana o seu maior fundamento, colocando ao lado da autonomia da vontade e da liberdade princípios como os da boa-fé objetiva e da tutela do hipossuficiente, em busca da justiça substancial, com o deslocamento da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, visando sempre o interesse social.

A boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletiva", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.

O princípio da boa-fé objetiva reflete uma verdadeira socialização da teoria contratual, decorrente das mudanças sociais ocorridas, concretizando os deveres de igualdade e dignidade constitucionalmente tutelados.

Com efeito, o princípio da boa-fé representa, no modelo atual de contrato, o valor da ética: lealdade, correção e veracidade compõe o seu substrato, o que explica a sua irradiação difusa, o seu sentido e alcance alargados, conformando todo o sistema contratual e, assim, repercutindo sobre os demais princípios, na medida em que a todos eles assoma o repúdio ao abuso da liberdade contratual e que tem dado lugar à ênfase excessiva no individualismo e no voluntarismo jurídicos.

O mesmo se pode dizer dos princípios do equilíbrio econômico do contrato, da eqüidade e da proporcionalidade que podem ser concretizados através da incidência dos institutos da lesão e da onerosidade excessiva superveniente.

Segundo Clotilde Bernadete ZANZI, ocorre a lesão quando inexiste a comutatividade da prestação, ou seja, quando uma das partes contratantes se aproveita da outra, dada a sua inexperiência ou estado de necessidade.

Para que se possa configurar a ocorrência da lesão é necessária convivência de dois aspectos: um objetivo e um subjetivo. Do ponto de vista objetivo, a lesão requer a presença de prestação desproporcional a que uma das partes se vincula. O subjetivo apresenta-se como o aspecto deficitário de uma das partes, o que requer inexperiência para que o ato seja considerado como praticado em estado de lesão.

Em sentido parecido, temos a aplicação da teoria da imprevisão (onerosidade excessiva superveniente), decorrente da antiga cláusula rebus sic standibus, através da qual "quando acontecimentos extraordinários provocam radical modificação no estado de fato contemporâneo à formação do contrato, acarretando efeitos imprevisíveis, dos quais decorre onerosidade excessiva no cumprimento da obrigação".

De acordo com este princípio, a justiça contratual torna-se um dado relativo não somente ao processo de formação e manifestação da vontade dos declarantes, mas sobretudo relativo ao conteúdo e aos efeitos do contrato, que devem resguardar um patamar mínimo de equilíbrio entre as posições econômicas de ambos os contratantes.

Diante destas assertivas, denota-se que "valor jurídico maior a ser tutelado, conforme atual noção da justiça contratual, é o equilíbrio, ante o cânone constitucional da solidariedade. Frustrado o equilíbrio, no início ou no curso da execução das recíprocas obrigações, violada a solidariedade (o primeiro implica a segunda) deverá o Judiciário recepcionar a pretensão revisionista [...]".

Todos estes institutos registrados a título exemplificativo, na disciplina dos contratos, objetivam realizar e garantir à pessoa a efetiva dignidade tutelada pela Carta Maior, através da busca da igualdade substancial entre as partes contratantes e da proporcionalidade entre os direitos e as obrigações estabelecidos no contrato.

Como aponta Michele GIORGIANNI, o texto constitucional se refere à iniciativa e à atividade economicamente privada está se referindo aos instrumentos, não com relação aos fins, haja vista que determina expressamente, em seu art. 41, parágrafo primeiro, que a iniciativa não pode jamais ser contrastante com a atividade social, e, no parágrafo segundo, que a atividade econômica privada deve ser voltada ao atendimento dos fins sociais.

Conclui-se, que o contrato de hoje necessita ser visto e compreendido sob um "[...] novo enfoque, direta ou indiretamente tutelar dos interesses difusos e coletivos, e não como um negócio jurídico unicamente dirigido à satisfação dos interesses privados dos contratantes".

Portanto, o negócio jurídico pode ser fixado em seu conteúdo, segundo a vontade das partes. Contudo, esta vontade "[...] apresenta-se auto-regrada em razão e nos limites da função social, princípio determinante e fundamental que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art.1° da CF), deve prescrever a ordem econômica e jurídica".

[...] Neste contexto traçado pela Constituição, não restam dúvidas de que estamos muitos distantes daquele Estado abstencionista, fundado no pressuposto ideológico de que a garantia do interesse individual pelo próprio interessado através do exercício de sua autonomia privada é a força motriz do bem-estar social. Ao contrário, no atual quadro constitucional, a atividade econômica privada por excelência, está condicionada à realização de finalidades que importam à coletividade (e não à soma, repartida, dos indivíduos), como seja a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I), que assegure "a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput). São os princípios acima identificados que conferem à intervenção do Estado nas relações econômicas, intersubjetivas "um sentido de unificação e de coerência [...].

Da leitura da Constituição Federal de 1988, se pode verificar a coexistência dos princípios da liberdade e da igualdade em idêntica hierarquia dentro do ordenamento jurídico, devendo ambos ser interpretados e aplicados levando em consideração última a dignidade da pessoa humana.

Atualmente se observa a liberdade em patamar de concreticidade isonômico ao da igualdade. Ambos os princípios advém para a concretização da dignidade da pessoa humana, ganhando sentido naquele e conseqüente valoração diferida no caso concreto, alinhando-se por relativização mútua, em concordância prática. Neste mesmo prisma tanto a igualdade como a liberdade têm apreensão material no sistema, implicando tratamento desigual para os desiguais, ou restrição de liberdade para sua própria realização, no sentido da garantia humana, na acepção intersubjetivada".

Assim, afigura-se imprescindível que qualquer regra ou estipulação contratual se coadune e exprima a vontade descrita na normativa constitucional, colaborando para o desenvolvimento da pessoa humana e tutelando a sua dignidade.

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Sobre o autor
Haina Eguia Guimarães

advogada militante em Porto Alegre/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Haina Eguia. A função social dos contratos em uma perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 481, 25 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5814. Acesso em: 23 dez. 2024.

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