A aplicação da regra da boa-fé objetiva no direito das famílias

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Os diplomas normativos que regulam o Direito de Família, em suas mais variadas matizes, nem sempre acompanham a dinâmica social. Por vezes, a resolução de alguma situação se depara com norma não especificamente entalhada para aquela situação, como sói acontecer. Assim é que desponta a boa-fé objetiva, a iluminar (e flexibilizar) os caminhos da norma, em prol da justiça do caso concreto. Saiba um pouco mais sobre isso.

INTRODUÇÃO

Em meio a uma sociedade aberta, plural e complexa como a nossa, verifica-se que as relações humanas vêm sofrendo constante transformação. Se considerarmos o regramento jurídico disciplinador do Direito de Família, previsto no Código Civil de 1916, e o ordenamento atual em vigor, facilmente verificamos que muita coisa mudou nos últimos tempos.

O Código Civil Brasileiro de 1916, também conhecido como Código Clóvis Beviláqua, teve nítida influência do Código Civil francês napoleônico de 1804. Não que tal diploma pátrio não tivesse inestimável valor jurídico; mas é fato que, ali, se albergou o primado patrimonialista das relações; ou seja, buscou-se sobrepujar o aspecto individualista (e egoísta até) das relações, olvidando-se do elemento existencial inerente a qualquer relação humana, jurídica ou não.

Nesta levada, pode-se dizer que legislação civilista do começo do século XX sacralizou o patrimônio, o contrato e a propriedade, muitas vezes em detrimento da própria pessoa humana.

No entanto, o Código de 1916 foi substituído pelo Código Civil de 2002, o tão esperado e não menos importante Código Miguel Reale. Mas não se modificaram apenas as leis. Mudaram-se também (e principalmente) as relações, as mentalidades e os desejos humanos.

A novel legislação colocou a pessoa humana no centro de todas as coisas, de modo que o homem passou a ser o cerne, o núcleo duro de todas as relações, jurídicas ou não.

Assim é que, aquela família tradicional do começo do século XX, cujas relações estavam disciplinadas pelo velho Código, dentro de uma visão patrimonialista, cuja gênese era tão somente o matrimônio, cedeu lugar a novos arranjos familiares e a novas situações jurídicas, que o Direito não poderia deixar de considerar.

Não bastasse isso, no final do mesmo século, mais precisamente em 05 de outubro de 1988, promulgou-se a Constituição da República Federativa do Brasil, a Constituição Cidadã, assim denominada por Ulysses Guimarães.

O diploma magno de 1988 representa um avanço democrático, pois traz princípios caros e amplamente desejados pela sociedade brasileira, vergastada por um longo período totalitário militar.

Nessa levada, a Lei das Leis, logo em seu átrio, cimentou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, consoante se vê no art. 1º, inciso III, do texto supremo.

Dessa feita, pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana tornou-se o eixo de todo sistema jurídico, na medida em que o homem passa a ser colocado no centro de tudo.

Nesta levada, é imperioso fazer uma leitura do novo Código Civil, à luz da atual ordem constitucional, sempre atentando para os princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade e igualdade substancial, jamais se esquecendo de que hoje vivemos em uma sociedade aberta e plural.

Com efeito, o legislador civilista adotou princípios (ou diretrizes) que serviram de nortes interpretativos a todo Código Civil, quais sejam os princípios da eticidade, da operabilidade e da socialidade.

Neste quadrante, pode-se afirmar que é exatamente dentro do princípio da eticidade que a regra da boa-fé objetiva perpassa todas as searas do Direito Civil, inclusive o Direito de Família, enfoque central deste artigo.


1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CLÁUSULA DA BOA-FÉ OBJETIVA

O legislador civil de 2002 utilizou-se de cláusulas abertas, também chamadas de standarts jurídicos, que consistem em fórmulas legislativas mais abstratas, vagas. E assim o fez propositadamente.

Tais cláusulas abertas permitem que o magistrado preencha-as, na medida em que as relações humanas forem se amadurecendo com o avançar do desenvolvimento social, o que atribui maior discricionariedade e liberdade criativa ao julgador, o que não implica uma arbitrariedade.

As cláusulas abertas representam uma margem de liberdade de aplicação da lei ao magistrado, que deve se movimentar dentro dos limites da própria lei, sempre almejando a aplicação da justiça ao caso concreto e a estrita observância dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade substancial e razoabilidade.

Desse modo, força convir que a adoção de cláusulas abertas pelo legislador hodierno também importou em salutar avanço à ciência jurídica, pois buscou desvencilhar a doutrina e a jurisprudência do dogma da completude que vigorou na vigência do Código Beviláqua, que consistia no apego excessivo ao loquaz modelo oitocentista até então vigente. Nesse passo, entende-se como o dogma da completude a criação de diplomas legais deveras extensos, que buscam disciplinar todas as situações possíveis, criando a falsa impressão de segurança jurídica, ante a prolixidade legislativa.

Portanto, a adoção de cláusulas abertas pela novel legislação veio em muito boa hora. Aliás, já era tempo.

Nesta baila, esclarecem os juristas Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias:

As cláusulas gerais são normas intencionalmente editadas de forma aberta pelo legislador. Possuem conteúdo vago e impreciso, com multiplicidade semântica. A amplitude das cláusulas gerais permite que os valores sedimentados na sociedade possam penetrar no Direito Privado, de forma que o ordenamento jurídico mantenha a sua eficácia social e possa solucionar problemas inexistentes ao tempo da edição do Código Civil. [1]

Dentro de tal contexto é que se desenvolve a regra da boa-fé objetiva, que, em última análise, representa uma das facetas da constitucionalização do Direito Privado. Ou seja, princípios de estatura constitucional, como igualdade substancial, solidariedade, passaram a ter maior incidência nas relações entre particulares.

Nesta seara, os autores Luciano de Araujo Migliavacca e Iuri Bolesina, em seu artigo “Harmonização do direito privado aos valores constitucionais”, sintetizam: “Preconiza-se uma visão vinculativa da constituição e do direito privado vinculada e não dissociada, de modo a harmonizar o direito civil com os valores constitucionais, bem como, por via reflexa, com os direitos fundamentais”.[2]

Contudo, há que se distinguir o que se entende por boa-fé objetiva daquilo que se denomina boa-fé subjetiva.

Em palavras simples, a boa-fé subjetiva consiste na crença de que a pessoa tem de estar agindo conforme os ditames da lei. Trata-se, portanto, de um elemento subjetivo, psicológico, interno do agente.

Por outro giro, boa-fé objetiva é um padrão de conduta que se impõe a toda e qualquer pessoa, que deve agir de forma leal e honesta com outrem.  

Nesta seara, Nelson Rosenvald sintetiza que a boa-fé objetiva é:

(...) um modelo de conduta social, verdadeiro standart jurídico ou regra de conduta, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte. Em sentido diverso, a boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado psicológico em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito, que na verdade só existe na aparência.[3]

A importância da regra da boa-fé objetiva se agiganta quando se verifica o seu caráter multifacetário, sobretudo no que toca ao seu aspecto limitativo, interpretativo e integrativo das demais normas jurídicas.

O aspecto limitativo da boa-fé objetiva fica evidente quando se coloca como elemento inibidor à prática do abuso do direito, caracterizado pelo seu exercício com espírito emulativo ou então divorciado de seus fins sociais ou econômicos. Neste sentido, é o que prevê o art.187, do Código Reale.

Sob outra ótica, o caráter interpretativo da boa-fé objetiva impõe a todas as pessoas a observância de determinadas regras ou padrões de condutas escorreitos, justos. Ou seja, deve-se agir com os outros da mesma forma como gostaríamos que os outros agissem conosco. Aliás, mais do que uma regra jurídica, tal postulado se coloca como verdadeiro imperativo de convivência social que já era ensinado desde o início da era Cristã. Na Bíblia Sagrada, o evangelho de São Marcos ensina que o próprio Jesus Cristo já vaticinava com um dos maiores mandamentos da lei de Deus: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.[4]

Por outro turno, a função integrativa da regra da boa-fé objetiva consiste na criação de deveres laterais ou anexos às partes, isto é, impõe-se a elas os deveres de probidade, honestidade, informação, lealdade, cooperação entre si.

Desse modo, a regra da boa-fé objetiva e suas implicações se espraiam por todas as searas do Direito Civil. Como não poderia deixar de ser, tal regra também deita raízes na senda do Direito das Famílias.


2. A CLÁUSULA DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO DE FAMÍLIA

É sabido que, nas relações familiares, o aspecto existencial do ser humano avulta de importância, máxime se comparado com as outras searas do Direito Civil, nas quais o aspecto patrimonial ganha maiores relevos (verbi gratia, Direito das Coisas).

Não significa dizer que no campo do Direito das Obrigações, dos Direitos Reais, Direitos das Sucessões, a regra da boa-fé objetiva não tenha espaço. Muito pelo contrário. É cediço que a regra da boa-fé objetiva tem plena incidência também nas searas patrimoniais do Direito Civil.

Todavia, no Direito das Famílias, ante a sua conotação existencial e estando umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana, com muito maior razão, a proteção ao aspecto ético das relações torna-se evidente.

Neste ínterim, Rosenvald e Cristiano Chaves prelecionam:

Nas relações de família exige-se dos sujeitos um comportamento ético, coerente, não criando indevidas expectativas e esperanças no (s) outro (s). É um verdadeiro dever jurídico de não se comportar contrariamente às expectativas produzidas, obrigação que alcança não apenas as relações patrimoniais de família, mas também aqueloutras de conteúdo pessoal, existencial.[5]

Assim é que a doutrina e a jurisprudência dão fartos exemplos de situações em que se torna de rigor a incidência da regra da boa-fé objetiva nas relações familiaristas.

Há algumas décadas, tem-se verificado uma despatrimonialização do Direito das Famílias. Assim, as relações familiares deixaram de ter como ponto centralizador o patrimônio familiar construído em torno do casamento. Ou seja, o aspecto financeiro das relações cedeu passo aos arranjos calcados no afeto, no respeito e consideração entre os integrantes do núcleo familiar, realçando assim o princípio da solidariedade, como um dos objetivos fundamentais da República (art.3, inciso I, da CF).

Dessa feita, fica claro que a união estável, consistente na união entre o homem e a mulher, de forma contínua, pública e duradoura, com o objetivo de constituição de família, ao ser guindada pela Constituição Cidadã ao status de entidade familiar (art. 226, parágrafo 3º, CF), representou inexoravelmente uma materialização da regra da boa-fé objetiva, pois era muito comum a mulher que vivia em união estável, após longos anos de convivência, se vir despojada de qualquer proteção com o término da relação convivencial.

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Tais situações acabavam por gerar injustiças, uma vez que a mulher, comumente parte hipossuficiente na relação convivencial com o homem, dedicava-se aos afazeres domésticos, enquanto o seu companheiro projetava-se na vida negocial, celebrando contratos e exercendo profissão remunerada. Com o término da relação, era muito comum a companheira ficar à mercê da própria sorte, pois o ordenamento jurídico recalcitrava em reconhecer arranjos familiares desse jaez como verdadeira entidade familiar.

E mais. Quando a mulher tinha algum direito reconhecido, a jurisprudência assim o fazia levando em consideração a natureza obrigacional dos serviços domésticos e sexuais por ela prestados ao longo da relação convivencial, o que evidenciava um tratamento preconceituoso e discriminatório em detrimento daquela pessoa que dedicou sua vida ao seu companheiro, muitas vezes abdicando de sua própria realização pessoal.

A título ilustrativo, a jurista Maria Helena Diniz anota:

Dever de prestar alimentos a concubino poderá inserir-se em obrigação moral e não legal (1ª Câm. Civ. Do TJRJ, AC 668/92, j. 23-06-1992), pois a Constituição Federal (art. 226, parágrafo 3º) não nivelou o concubinato ao casamento (Ciência Jurídica, 55:138), visto não considerá-lo como entidade familiar.[6]

Diante de tal contexto, sobrepujar a boa-fé objetiva das pessoas que se aninham numa relação familiar com base no afeto e no amor, a fim de protegê-las contra a frustação de suas legítimas expectativas, passou a ser medida de rigor.

No entanto, a proteção à boa-fé objetiva nas relações familiaristas não se descortinou apenas na união entre pessoas de sexos distintos, porquanto o próprio reconhecimento da união homoafetiva, elevada ao status de entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277/DF, representou uma salvaguarda aos direitos, pessoais e patrimoniais, daquelas pessoas do mesmo sexo, que se unem com base no afeto e amor, travando uma relação de confiança e respeito mútuos entre si.

Em outra seara, a boa-fé objetiva também se realça na observância obrigatória dos deveres conjugais que se coloca àqueles que se unem em matrimônio, não se admitindo que os consortes se desobriguem, nem mesmo por meio de pacto antenupcial, de observar os deveres de fidelidade recíproca, respeito e consideração mútuos, ante a natureza personalíssima de tais deveres. Qualquer disposição contrária nesse sentido implicaria violação à dignidade do outro consorte.        

Ocorre que o dever de fidelidade passa a ser estudado pela doutrina pátria com ares de modernidade na sociedade hodierna. Hoje, fala-se em infidelidade virtual, consistente em relações extraconjugais que um dos consortes mantem com terceiros, por meio da rede mundial de computadores, o que pode violar a honra e a dignidade do outro cônjuge.

É sabido que a infidelidade virtual era impensável numa sociedade de antanho, na qual as relações interpessoais eram mais físicas e tangíveis. No entanto, a modernidade da era digital trouxe essa nova realidade, cabendo ao magistrado preencher o conceito aberto de infidelidade, máxime naquelas hipóteses em que um dos cônjuges passar a manter relações extraconjugais pela internet, violando assim os deveres matrimoniais e lesando a dignidade do outro cônjuge.

Neste contexto, é a regra da boa-fé objetiva, desenvolvida aos labores da doutrina e da jurisprudência em suas facetas integrativa e interpretativa, que irá debuxar o que se entende por infidelidade virtual, capaz de servir de supedâneo a eventual pedido de divórcio.

Sob outro quadrante, mas ainda dentro do Direito das Famílias, a regra da boa-fé objetiva também é aquilatada na questão dos bens aquestos, ou seja, aqueles adquiridos na constância da sociedade conjugal, principalmente naquelas hipóteses em que o bem é adquirido apenas por um dos convivas, porém a sua quitação se perfaz com a contribuição e esforço de ambos, ao longo da vida marital.

Isso é muito comum entre aqueles casais que pretendem se casar e, antes do matrimônio, apenas um deles contrai financiamento bancário, unicamente em seu nome, para adquirir a casa própria. Todavia, ao longo da vida conjugal, as parcelas de tal dívida são solvidas com o esforço comum. Ocorre que, as vicissitudes da vida, muitas vezes, leva um deles a ter que honrar tais prestações única e exclusivamente com o fruto de seu trabalho, de per si, principalmente naquelas hipóteses em que o outro cônjuge se vê desempregado ou acometido por uma doença duradoura.

Em tais hipóteses, pode ocorrer de o relacionamento se extinguir, quando então, terá cabida a aplicação da regra da boa-fé objetiva com a presunção de que o bem adquirido na constância da vida matrimonial foi integralizado pelo esforço comum do casal, a despeito de constar nos assentos registrais imobiliários apenas em nome de um dos cônjuges. Tal entendimento também tem o condão de repelir eventual enriquecimento sem causa entre os cônjuges.

De acordo com os autores Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias bem sintetiza tal entendimento:

Outra situação corriqueira e controvertida diz respeito à comunhão, ou não, de imóveis adquiridos pelo sistema financeiro, quando a celebração do contrato é anterior ao casamento. Nessa hipótese, há de se fazer ajuste contábil. O valor pago pelo titular antes de casar será considerado somente seu (bem particular). Todavia, o montante pago durante o casamento tem que ser partilhado, por decorrer de esforço comum, ingressando na comunhão, mesmo considerando que o imóvel tenha sido, originariamente, adquirido por um dos cônjuges sozinho.[7]

Sob outro enfoque, ganha destaque a aquisição de bem imóvel por apenas um dos cônjuges que ainda estão casados perante os assentos registrais, todavia, encontram-se separados de fato de há muito. Em tal hipótese, somente haverá a comunhão dos aquestos se houver prova de colaboração recíproca. Caso contrário, é de todo pertinente afirmar que o término da sociedade conjugal se estende ao regime de bens, cessando a comunicabilidade dos aquestos, independente de qualquer prazo legal.

Neste sentido, tem-se inclinado a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores:

CIVIL E PROCESSUAL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. REQUERIMENTO DE INVENTÁRIO E PARTILHA. AQUISIÇÃO IMOBILIÁRIA POSTERIOR AO ROMPIMENTO DE FATO DA RELAÇÃO CONJUGAL. EFEITOS. TITULAÇÃO DE ÁREA DE TERRAS. CONSIDERAÇÃO, BASEADA EM EXAME DOCUMENTAL, DE AQUISIÇÃO PARCELA.

I. A cônjuge-virago separada de fato do marido há muitos anos não faz jus aos bens por ele adquiridos posteriormente a tal afastamento, ainda que não desfeitos, oficialmente, os laços mediante separação judicial. Precedentes do STJ.

II. Se o Tribunal a quo, soberano na apreciação da matéria de fato, conclui, à vista da titulação dominial constante dos autos, que a gleba de terras também objeto da partilha, foi adquirida em partes distintas, cada qual com uma origem e em épocas específicas, para efeito de fixação do direito à comunhão no tempo, o reexame da matéria encontra o óbice, na via especial, das Súmulas ns. 5 e 7 do STJ.

III. Razoabilidade da sucumbência proporcional fixada no acórdão, em face das circunstâncias dos autos.

IV. Recurso especial não conhecido.[8]

Por outro giro, a doutrina contemporânea e a jurisprudência têm aplicado a famigerada teoria da desconsideração da personalidade jurídica, de forma invertida, nas relações de Direito de Família, como nítido desdobramento da boa-fé objetiva.

É cediço que, algumas vezes, aqueles que exercem atividade empresarial, em vias de romper um relacionamento conjugal, desfalcam o seu patrimônio pessoal, canalizando seus bens em prol da pessoa jurídica, com o escopo de tornar insolvente a pessoa física, a fim de que o outro cônjuge não encontre os bens adquiridos na constância da sociedade conjugal ou até mesmo para saldar eventual dívida alimentícia. É dizer, o sócio utiliza-se desse astuto expediente no afã de se esvaziar seu patrimônio pessoal para não ter que dividir os aquestos com seu consorte, ou – o que é pior – furtar-se do pagamento de verbas alimentares devidas ao ex-cônjuge ou até mesmo aos filhos.

Em tais situações, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, cujo nascedouro encontra-se no direito anglo-saxão, tem cabida no adrede de se repelir possíveis fraudes.

Neste lanço, sintetiza o jurista Rolf Madaleno:

É larga e producente sua aplicação no processo familial, principalmente, frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. É situação rotineira verificar nas relações nupciais e de concubinatos que os bens materiais comprados para uso dos esposos ou concubinos, como carros, telefones, moveis e mormente imóveis, dentre eles a própria alcova nupcial, encontram-se registrados e adquiridos em nome de empresas de que participa um dos consortes ou conviventes.[9]

No mesmo sentido, tem-se curvado a jurisprudência pátria:

Tendo tocado na partilha consensual à mulher/autora o único bem registrado em nome de sociedade comercial, evidente o dano que a impede de exercer seu direito à meação. Aplicação da teoria da ‘disregard’ para determinar a transferência da titularidade do imóvel à autora, conforme acordado na separação consensual, com sentença homologatória.[10]

E mais: “a transferência de quotas sociais, do sócio quase absoluto da empresa, para o nome de sua sogra, em evidente fraude à Lei de Alimentos, é ineficaz em face do credor”.[11]

Outro exemplo notável da aplicação da regra da boa-fé objetiva à seara familiarista se verifica na aplicação do direito real de habitação ao companheiro sobrevivente.

Depreende-se que o artigo 1831 do pergaminho civil garante ao cônjuge sobrevivente, independentemente do regime de bens, o direito de habitar ou ocupar o imóvel residencial conjugal, para fins de moradia. Todavia, certamente por uma lapso do legislador de 2002, tal dispositivo silenciou-se ao conceder tal direito real também ao companheiro supérstite.

Assim é que, a doutrina e jurisprudência pacíficas garantem o direito real de habitação também ao companheiro sobrevivente que convivia em união estável até a morte do seu conviva.

O jurista Francisco Eduardo Loureiro elucida:

Uma interpretação literal e exegética do artigo 1831 0 tão ao gosto do pensamento liberal que orientou o Código de 1916 – levaria à fácil conclusão de que o direito real de habitação é prerrogativa reservada exclusivamente ao cônjuge viúvo, excluindo-se o benefício do companheiro viúvo. (...) Essa conclusão, a nosso ver, não pode prevalecer sob a ótica civil-constitucional. (...), o escopo do direito real de habitação é assegurar ao supérstite a preservação de um ambiente que lhe é caro, permitindo-lhe permanecer no imóvel residencial e entre objetos do casal, assegurando-lhe a manutenção de um bem essencial – a moradia.[12]

A regra da boa-fé objetiva também traz suas implicações nas relações de filiação, principalmente naquelas situações em que se desenvolve a relação de paternidade socioafetiva, calcada no afeto, no amor e respeito mútuo entre pessoas que não possuem qualquer vínculo consanguíneo.

Isso é muito comum naquelas situações em que a criança desenvolve laços de carinho e amor pelo companheiro de sua genitora e esse, da mesma forma retribui, constituindo-se verdadeira paternidade socioafetiva. Tempos depois, o pai afetivo resolve fazer a chamada adoção à brasileira, isto é, registra como seu o filho que sabe ser de outrem.

Ocorre que, a adoção “à brasileira”, muito embora seja um proceder eminentemente altruísta, na medida em que um pai acolhe como seu um filho que geneticamente não o é, representa um expediente contraveniente à lei de adoção, pois implica uma burla ao criterioso rito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90). Nada obstante a isso, em tese, é possível a tipificação do delito previsto no 242, do Código Penal Brasileiro. 

No entanto, o relacionamento amoroso com a genitora vem a desfazer-se e o companheiro tenta demonstrar nos Tribunais que aquele filho geneticamente não é dele, com espeque em provas periciais genéticas. Ou seja, na acepção pura da palavra, aquele companheiro foi pai durante certo tempo, ou seja, aquele quem nutriu laços afetivos com a criança, mas não foi o seu verdadeiro genitor, porquanto ao petiz não emprestou-lhe seu material genético.

Agora, em vista de um relacionamento amoroso com a genitora que não frutificou, o pai afetivo quer, por meio do exame de DNA, demonstrar que não é ele o genitor da criança, para que, dessa forma, se desincumba do dever de prestar alimentos ao filho socioafetivo.

Ora, em demandas dessa natureza, a aplicação da regra da boa-fé objetiva é medida que se impõe. Não se pode admitir que o pai afetivo, que nutriu laços sentimentais que se enraizaram na criança ao longo de anos de convivência, reafirmados ainda perante o Oficial Registrador ao declarar aquela criança como seu verdadeiro filho, possa querer se desobrigar de um dever alimentar, muitas vezes imbuído de um espírito vingativo, a fim de se atingir a mãe, com quem o relacionamento não deu certo.

Nesta quadra, Breno Roberto Amorim Barcelo e Stella Mendes Costa elucidam:

Logo, por mais que a verdade genética seja outra, prepondera a paternidade socioafetiva, além dos argumentos já expostos, pois, são os pais socioafetivos que concedem amparo moral e material bem como suporte afetivo, construindo importante vínculo de amor e respeitos mútuos que nenhuma lei nem tão pouco uma decisão judicial podem apagar.[13]

Depreende-se, portanto, que a relação socioafetiva construída com base na confiança entre pai e filho socioafetivos, por força da amizade, amor e respeito, torna-se inquebrantável. Daí advém a importância da análise da boa-fé objetiva também nas relações paterno-filiais, pois não se pode aceitar que a invocação da inexistência da relação biológica faça demolir a relação de afeto erigida ao longo do tempo.

Sobre os autores
Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga

Professora Assistente-Doutor da Universidade Estadual Paulista, UNESP, Mestre e Doutora em Direito pela FHDSS/UNESP, orientadora de grupo de pesquisas, CNPq.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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