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Liberdade de expressão: o direito de dizer o que as pessoas não querem ouvir

19/06/2017 às 14:38
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Em que pese o significativo aumento de condutas intolerantes, no Brasil atual, o direito à liberdade de expressão vem sendo, de maneira geral, respeitado pelo Estado.

Após um longo período de autoritarismo, censura e intolerância, compreendido entre os anos de 1964 e 1985[1], e intitulado, por muitos historiadores, de Regime Militar, eis que, no dia 05 de outubro de 1988, finalmente, adveio um novo texto constitucional, que, em contraste com a então Constituição Federal de 1967 e com a Emenda Constitucional n. 01 de 1969, colocou-se, verdadeiramente, preocupado em assegurar direitos e garantias fundamentais ao cidadão brasileiro.

Apelidada de Constituição Cidadã, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi, de fato, capaz de estabelecer um regime político democrático e  inaugurar o maior período de estabilidade institucional da história republicana brasileira – já alcançando, hoje, 28 anos. Nas palavras de Luís Roberto Barroso, “a Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito”[2].

Considerando, sobretudo, o contexto em que esta Constituição foi criada, a liberdade de expressão, tão renegada ao longo daquele regime de exceção de caráter ditatorial, porquanto não era possível sequer manifestar uma opinião contrária ao governo vigente – ainda que em forma de música ou poesia –, naturalmente, foi muito defendida pela Assembléia Nacional Constituinte, que buscou conferir uma ampla proteção a esse precioso direito fundamental.

Conforme ensina Paulo Gustavo Gonet Branco, a Constituição Cidadã trata da liberdade de expressão, de modo direto, em seu art. 5o, incisos IV e XIV, ao tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos, assim como, em seu artigo 220, caput e §§ 1o e 2o, ao tratar da comunicação social[3].

No art. 5o, da Constituição Federal de 1988, tem-se, no inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e, no inciso XIV, que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

Para Ingo Sarlet, o inciso IV, do art. 5o, coloca-se, no ordenamento jurídico brasileiro, como uma espécie de cláusula geral, guardando “relação direta com uma série de outros dispositivos da Constituição, os quais, no seu conjunto, formam o arcabouço jurídico-constitucional que reconhece e protege a liberdade de expressão nas suas diversas manifestações”[4], quais sejam: “liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de opinião); liberdade de expressão artística; liberdade de ensino e pesquisa; liberdade de comunicação e de informação (liberdade de ‘imprensa’); e liberdade de expressão religiosa” [5].

No art. 220, da Constituição Cidadã, por sua vez, extrai-se, de seu caput, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, e de seus §§ 1o e 2o, que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, e que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Como se verifica, a Constituição Federal de 1988 veda a censura, isto é, “a atividade governamental, de ordem prévia, centrada sobre o conteúdo de uma mensagem”[6]. Desse modo, não cabe ao Estado estipular quais as opiniões que merecem ser tidas como proveitosas e quais as opiniões que merecem ser descartadas[7]. Não se pode olvidar, contudo, que este freio estabelecido ao Estado não afasta a responsabilidade civil e criminal daquele que manifestar determinada opinião.

Na qualidade de um direito típico de abstenção do Estado[8], a liberdade de expressão tem como titular, isto é, como sujeito ativo, a pessoa natural, que a exercerá, em regra, em face do próprio poder público[9]. Conforme leciona Ingo Sarlet, entretanto, “verifica-se a possibilidade, para além da vinculação (direta) de todos os poderes públicos, de uma eficácia (direta ou indireta, a depender do caso) nas relações entre particulares”[10].

O âmbito de proteção desse precioso direito – como exposto, habitualmente violado no período que antecedeu a Constituição Federal de 1988 –, deve ser interpretado da forma mais ampla possível, abrangendo “toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não”[11] – com ressalva àqueles atos violentos com a finalidade de difundir alguma mensagem.

Ressalte-se, ainda, que a liberdade de expressão tutela tanto a palavra falada, quanto a palavra escrita[12], abrangendo, desse modo, declarações, livros, artigos, jornais, revistas, gestos, peças teatrais, quadros, charges, enfim, as mais diversas formas de expressão de um pensamento.

Quanto aos modos de expressão, não se pode ignorar recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, acerca das “marchas da maconha”, que levaram milhares de cidadãos às ruas, pleiteando a descriminalização da droga. Ao tratar do assunto, na ADPF 187 e na ADI 4.274, a Suprema Corte interpretou tais manifestações como exercício da liberdade de expressão, e não como apologia ao uso indevido de drogas (art. 286 do Código Penal e art. 33, § 2º, da Lei 11.343/06).

Ainda no que diz respeito à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, merece igual destaque o caso do diretor de teatro Gerald Thomas, que, após receber inúmeras vaias, ao término de uma apresentação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, voltou-se ao público, simulando um ato de masturbação e exibindo suas nádegas. Em virtude deste episódio, foi proposta uma ação penal, fundada na prática de ato obsceno (art. 233 do Código Penal), contra o diretor, todavia, a Suprema Corte, ao julgar o HC 83.996, determinou o seu trancamento, justamente por entender que o ato praticado por Gerald Thomas – em que pese deselegante – tinha amparo na liberdade de expressão.

Importa destacar, contudo, que, como todo direito, a liberdade de expressão não é absoluta. Assim, poderá sofrer eventuais limitações, quando colidir com outros direitos fundamentais e/ou com outros valores estabelecidos na Constituição Federal. Conforme ensina Daniel Sarmento, “tais conflitos devem ser equacionados mediante uma ponderação de interesses, informada pelo princípio da proporcionalidade, e atenta às peculiaridades de cada caso concreto”[13].

Não obstante, não se pode ignorar, também, que o próprio poder constituinte permitiu a interferência legislativa, ainda que em casos excepcionais. A título de exemplo, Paulo Gustavo Gonet Branco destaca, com base no art. 220 – já mencionado acima –, a “restrição legal à publicidade de bebidas alcoólicas, tabaco, medicamentos e terapias (art. 220, § 4º)”[14]. Do mesmo modo, não se pode ignorar as limitações impostas diretamente na Constituição, como exemplo, a vedação ao anonimato, constante no art. 5o, IV – igualmente já mencionado.

Revelados os principais aspectos da liberdade de expressão – previsão constitucional, características, âmbito de proteção, sujeito ativo, sujeito passivo, limitações etc. –, o grande questionamento que se faz é: a liberdade de expressão tem sido, de fato, respeitada no Brasil atual?

A bem da verdade, o que vem se observando, nos dias de hoje, é um significativo aumento da intolerância, nos mais diversos segmentos da sociedade. Nesse sentido, pode-se destacar, por exemplo, a elevação das denúncias de intolerância religiosa, em 3,706% (três vírgula setecentos e seis por cento), que se configurou nos últimos cinco anos – elevação esta constatada pela própria Secretaria Nacional de Direitos Humanos[15].

Ora, a intolerância certamente caminha em sentido contrário à liberdade de expressão, porquanto, a par de tudo quanto foi dito no presente artigo, a liberdade de expressão – cuja função precípua é a de “não é apenas assegurar um âmbito de liberdade moral para a livre expressão do pensamento, ideologia ou religião, mas também de criar uma sociedade efetivamente pluralista”[16] –, possa ser resumida como o simples direito de “dizer” aquilo que o outro não quer ouvir. Assim, quando há intolerância, há, do outro lado, violação à liberdade de expressão.

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Não se pode ignorar, contudo, que, em que pese o significativo aumento de condutas intolerantes, no Brasil atual, o direito à liberdade de expressão vem sendo, de maneira geral, respeitado pelo Estado, na condição de sujeito passivo (destinatário), e garantido e efetivado, constantemente, pelos Tribunais pátrios, a exemplo dos julgados acima apresentados, referentes às “marchas da maconha” (ADPF 187 e na ADI 4.274).

Desse modo, por mais que se verifique um aumento de condutas de intolerância religiosa ou política, por exemplo, certo é que o Poder Judiciário encontra-se pronto para garantir a liberdade de expressão, direito este tão reivindicado, há anos, não apenas no Brasil, mas mundo inteiro.

Por todo o exposto, não se pode falar em um total descaso à liberdade de expressão, que se coloca como um direito, não apenas no texto constitucional, mas presente no dia-a-dia do povo brasileiro. Contudo, certamente, as condutas de intolerância devem ser combatidas e contidas, pois afrontam, sobretudo, a pluralidade da sociedade, algo de extrema importância, que deve ser defendido.


Notas

[1] KOSHIBA, Luiz; PEREIRA, Denise Manzi Frayze. História Geral e do Brasil. 1. ed. São Paulo: Atual, 2004, p. 394 e 395.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 492.

[3] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 263.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang et alii. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 489 e 490.

[5] Ibid., p. 492.

[6] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 265.

[7] Ibid., p. 265.

[8] Ibid., p. 265.

[9] Ibid., p. 265.

[10] SARLET, Ingo Wolfgang et alii. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 496.

[11] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 263.

[12] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 331.

[13] CANOTILHO, José Joaquim Gomes et alii. Comentários à Constituição do Brasil. 1. ed. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 257.

[14] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 270.

[15] ISTO É. Denúncias de intolerância religiosa crescem 3.706% nos últimos 5 anos. Disponível em: <http://istoe.com.br/denuncias-de-intolerancia-religiosa-crescem-3-706-nos-ultimos-5-anos/>. Acesso em: 09 nov. 2016.

[16] SANKIEVICZ, Alexandre. Liberdade de expressão e pluralismo: perspectivas de regulação. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 48.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Felipe Aires Coelho. Liberdade de expressão: o direito de dizer o que as pessoas não querem ouvir. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5101, 19 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58526. Acesso em: 19 abr. 2024.

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