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As Polícias Militares na Constituição Federal de 1988:

polícia de segurança pública ou forças auxiliares e reserva do Exército?

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05/11/2004 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

As Polícias Militares (PMs) foram muito mais uma corporação militar do que uma organização policial, sendo, ao longo de suas histórias particulares, mais empregadas para os fins de segurança interna e de defesa nacional, do que para as funções de segurança pública. Como afirmou Muniz, em quase dois séculos de existência, nem sempre funcionaram as PMs como organizações policiais propriamente ditas, de tal forma que podemos afirmar que foram poucos os períodos em que, de fato, elas puderam atuar como polícias urbanas e ostensivas. (2001: 177).

Sendo criadas como "pequenos exércitos locais", as PMs desenvolveram uma estrutura burocrática semelhante a do Exército Brasileiro, incorporando, forçadamente, a ideologia militar. As PMs, em dissenso completo com a realidade de violência urbana, já se revelaram instituições autoritárias, pessimistas em relação a natureza humana, alarmistas quanto ao combate à criminalidade, nacionalistas e conservadoras a desrespeito de sua função primordial: de realizar policiamento urbano, que exige, necessariamente, o respeito às garantias constitucionais e ao Estado de Democrático de Direito. A constante permanência da mentalidade militarista do Exército Brasileiro, nas PMs, gerou distorções insuportáveis, vez que provocou a aparente separação de dois mundos: a vida de caserna (vida intra-muros dos quartéis) e a rua (vida extra-muro dos quartéis).

Estas distorções, necessariamente, têm sido corrigidas para que as PMs recuperem a identidade que lhe é própria: órgão de segurança responsável pelo policiamento ostensivo e repressivo. Podemos afirmar que as PMs são as polícias que combatem, na linha de frente, a criminalidade urbana, exercendo função eminentemente civil. Não obstante, o tratamento jurídico das PMs nem sempre foi generoso a distinguir as suas funções, mantendo-se uma duplicidade e perplexidade operacional: funcionam as PMs como órgãos de segurança interno e como eventuais órgãos de defesa da soberania nacional. É disto que trataremos neste despretensioso trabalho.


2.AS FUNÇÕES DAS POLÍCIAS MILITARES NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E SUA INSUFICIÊNCIA CONCEITUAL.

As Polícias Militares (PMs) têm mantido uma função dupla ao longo das constituições federais brasileiras. Elas são órgãos de segurança pública dos estados federados e, ao mesmo tempo, forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro.

A princípio, estas funções seriam paradoxais. Não se pode conceber um órgão de segurança pública urbano que, quando convocado pela União, teria que desempenhar a função de forças militares capazes de defender a soberania de um País. Não é possível pensar que uma força urbana, que usa a técnica policial, maneja armamentos leves e tem a função de combater a criminalidade, seja mobilizada para defender a Nação, utilizando estratégias de guerra, manejando armamentos complexos e pesados, lutando contra forças militarizadas, preparadas para destruir e dominar. A identidade de órgão de segurança pública urbano conflita-se com a identidade de força externa militarizada.

Só podemos explicar a convivência mais ou menos harmoniosa desta paradoxal dicotomia se tomarmos em consideração os aspectos ideológicos da sociedade brasileira, externadas através de suas constituições federais. Como advertiu Barroso:

"Uma incursão, ainda que breve, na evolução constitucional do Estado brasileiro conduz à constatação mais acertada da existência, intangida e secular, de males que se podem dizer crônicos. Por trás das aparências, não têm sido nossas vicissitudes produto de situações agudas e decisivas - críticas -, mas de reincidentes disfunções orgânicas, perenizadas pelos beneficiários da falta de amadurecimento e contemporaneidade da vida nacional. É bem de ver que o sucessivo malogro de nossos projetos institucionais não se prende a qualquer deficiência de cunho mais grave na elaboração constitucional, ao ângulo da técnica legislativa. À exceção do Texto de 1937 e dos vícios de má inspiração nas duas Cartas do regime militar instaurado em 1964, todas as Constituições brasileiras, inclusive a do Império, consubstanciaram textos louvavelmente harmonizados com o estágio evolutivo da época" (Barroso, 2003: 8).

Como destacaram Azkoul e Muniz, as PMs originam-se da Divisão da Guarda Real de Polícia, no Rio de Janeiro, pelo Decreto de 1º. de maio de 1809, e, mais concretamente, com a promulgação do Ato Adicional à Constituição de 25 de março de 1824 (1998: 17/18 e 2001: 197, respectivamente). A Divisão da Guarda Real de Polícia foi constituída para garantir a ordem pública da Corte e evoluíram para formar as forças policiais das Províncias, que, após a promulgação da República, deram origem às PMs estaduais. Não há referência, no entanto, das PMs na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891.

Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de Julho de 1934, a União possuía competência privativa para legislar sobre sua organização, instrução, justiça e garantias, tal como condições gerais da sua utilização em caso de mobilização ou de guerra (art. 5º., alínea l). Sendo assim, as PMs foram definidas como reservas do Exército, devendo inclusive gozar das mesmas vantagens àquele atribuído, quando mobilizadas ou a serviço da União (art. 167). No Estado Novo de Getúlio Vargas, a sobrevinda da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de Novembro de 1937 fez desaparecer as PMs como referência constitucional.

Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de Setembro de 1946, as PMs foram criadas para servirem como órgãos de segurança interna e de manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e Distritos Federais. Contudo, as PMs continuaram a ser consideradas como forças auxiliares e reservas do Exército e possuíam as mesmas vantagens atribuídas ao Exército Brasileiro, quando mobilizadas a serviço da União em tempo de guerra externa ou civil (art 183 e parágrafo único). Da mesma forma, foi mantida a prerrogativa privativa à União de legislar sobre organização, instrução, justiça e garantias das PMs e condições gerais da sua utilização pelo Governo federal nos casos de mobilização ou de guerra (art. 5º., alínea f)

Na Constituição do Brasil de 1967, a União manteve a competência privativa de legislar sobre organização, efetivos, instrução, justiça e garantias das policias militares e condições gerais de sua convocação, inclusive mobilização (art. 5º., inciso XVII, alínea v) e instituídas para os fins de manutenção da ordem e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são, novamente, consideradas forças auxiliares, reserva do Exército (art. 13, §4º.).

A preocupação do regime militar pós-64 foi tão intensa que, através do Decreto-lei n.º 317 de 13/03/1967, foi criada a Inspetoria Geral das Polícias Militares - IGPM, um novo órgão fiscalizador do Exército, que atribuiu às Polícias Militares o policiamento ostensivo fardado e determinou às PMs a organização assemelhada do Exército Brasileiro (Muniz, 2001: 197). Como asseverou Zaverucha:

"Quando ocorre um golpe de Estado, as Forças Armadas, invariavelmente, procuram exercer controle sobre as polícias. O Brasil não fugiu à regra. No dia 30 de dezembro de 1969, o general-presidente Emílio Médici editou o Decreto-Lei n0 1.072, extinguindo as corporações policiais civis locais e transformando seus integrantes em policiais militares. Os PMs passaram a ficar sujeitos ao trinômio: instrução militar, regulamento militar e justiça militar." (2000: 42).

Como ensinou Muniz, a Constituição do Brasil de 1969, no tocante às PMs, foi quase uma repetição da constituição anterior, contudo suprimiu a missão de sustentação de segurança interna, permanecendo como forças de manutenção da ordem pública, auxiliares, reserva do Exército. Através dos Decretos-lei n.º 667 e 1.072, o policiamento ostensivo fardado passou a ser tarefa exclusiva das Polícias Militares, bem como proíbem-se que os estados criem outra organização policial uniformizada. (2001: 197).

Por sua vez, na Constituição da República Federativa do Brasil 1988, as PMs pareciam ganhar uma nova dimensão e passaram a figurar entre os órgãos de segurança pública (art. 144). As PMs, juntamente com os demais órgãos de segurança pública foram criadas para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A União perdeu a competência de legislar privativamente sobre a instrução militar das PMs, mas manteve a competência de instituir normas gerais sobre a organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização (art. 5º., inciso XXI).

Em face da "lenta, gradativa e segura distensão", que importava o fim da ditadura, o retorno à democracia foi negociada entre civis e militares. A manutenção das PMs vinculadas ao Exército Brasileiro foi uma das exigências para a redemocratização. Estas "negociações", ao invés de clarificar e distinguir as relações entre civis e militares, geraram uma profunda perplexidade nas PMs. Como destacou Zaverucha:

"Quando se dá a transição para a democracia, há uma preocupação dos novos governantes em tirar a polícia do controle das Forças Armadas. O objetivo é tornar nítida a separação de suas funções: a polícia é responsável pela ordem interna, ou seja, pelos problemas de segurança pública, enquanto os militares federais se encarregam dos problemas externos, leia-se, da guerra. A Constituição de 1988 não procurou fazer essa separação. Ao contrário, dificultou-a." (2000: 42).

Inicialmente houve uma breve separação entre militares federais (que compõe as Forças Armadas) e os militares estaduais (que compõem as PMs dos Estados). Contudo, a redação do art. 42, foi completamente modificada, tal como a redação do título da seção III, do Capítulo VII, através da Emenda Constitucional n0 18/1998. A nova redação evidencia, com clareza solar, que, juridicamente, as PMs e o Exército têm as mesmas prerrogativas e vedações constitucionais, uma vez que vários dispositivos reservados às Forças Armadas também são aplicadas às PMs (arts. 42, §1º., 142, §§2º. e 3º.). Inevitavelmente, as PMs continuaram como forças auxiliares e reserva do Exército, apesar de serem subordinadas, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (art. 144, §6º.).

Sendo assim, percebemos que a existência de um padrão paradoxal, no qual as PMs são consideradas forças de segurança interna, em tempos de paz, e forças de segurança externa, em tempo de guerra. A Constituição Federal de 1988, a exemplo das constituições anteriores, manteve o vinculo institucional das PMs às Forças Armadas. A organização das PMs, inclusive, atende ao Decreto-Lei n0 667, de 2 de julho de 1969 e o Decreto Federal n0 88.777, de 30 de setembro de 1983, que reorganiza as Polícias Militares e, em nada, se confronta com a Constituição.

Segundo a legislação vigente, as PMs são consideradas como forças auxiliares do Exército e são organizadas à semelhança deste, ou seja, com a existência de órgão de direção, de execução e de apoio, sendo subdividas em pelotões, companhias e batalhões ou em esquadrões e regimento, quando se tratar de unidades montadas. A hierarquia nas Polícias Militares acompanha modelo semelhante a do Exército Brasileiro, ou seja, em dois grupos distintos: Oficiais (Coronel, Tenente-Coronel, Major, Capitão, 1º. Tenente, Aspirante-a-Oficial) e Praças (Subtenente, 1º. Sargento, Cabo e Soldado). Às PMs são aplicados o mesmo Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar a que são submetidas as Forças Armadas. O Regulamento Disciplinar das PMs é semelhante ao Regulamento Disciplinar do Exército, apesar de avanços recentes (vide Lei do Estado do Ceará n0 13.407/2003).

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Por outro lado, as PMs são imersas numa cotidianidade de violência urbana, na qual exige da organização policial a dinamicidade necessária para o combate à criminalidade. A estrutura militarizada é incompatível com a necessidade de formação de comandos descentralizados e especializados, voltados a superação de necessidades locais. A manutenção da ordem pública e a preservação da incolumidade das pessoas e do patrimônio impõem aos policiais militares um contato estreito com a comunidade que devem atender, diferentemente dos membros das Forças Armadas que pouca relação possuem com as populações locais. Conseqüentemente, o comportamento do corpo policial será menos rígido e mais flexível a fim de atender os desígnios do combate à criminalidade, que impõe, necessariamente o respeito aos direitos constitucionais da pessoa, inclusive, no ato da prisão. A polícia é serviço público que pode ser requisitado por todo aquele que o necessite e não demanda ordens e comandos de superiores hierárquicos. Assim, a hierarquia policial militar não é tão categórica na ação policial, quando solicitada por qualquer um do povo.

As PMs como órgãos de segurança pública interna não parecem se aproximar da função de auxiliares e reserva do Exército, pois não desempenham, em sua cotidianidade, a mesma tarefa-fim das Forças Armadas. Aliás, na visão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), as PMs não são propriamente forças militares e são tratadas como forças de policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública. Como é destacado no Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil aprovado pela Comissão em 29 de setembro de 1997, durante o 97º período ordinário de sessões:

"As polícias estaduais dividem-se em polícia civil e polícia "militar". Esta última cumpre tarefas próprias das polícias civis típicas, subordina-se diretamente ao Poder Executivo (Governador e Secretário de Segurança Pública de cada estado) e não é uma força interna do aparato militar nacional. Contudo, mantém o nome de polícia "militar" que lhe foi atribuído ao ser criada em 1977 no decorrer do período de governo militar. Insistindo-se em que não se trata propriamente de uma força militar e em que se subordina diretamente ao Poder Executivo de cada estado, figurará neste relatório entre áspas. A "polícia militar" tem a responsabilidade do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública, ou seja, ela se ocupa, primordialmente, das tarefas diárias de patrulhamento e de perseguição de criminosos. Quanto à subordinação, as polícias estaduais, tanto "militares" quanto civis, subordinam-se aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Artigo 144, parágrafo 6 da CF). O chefe das polícias estaduais é o Secretário de Segurança Pública, auxiliar direto do Governador e responsável pelos atos que pratica ou referenda no exercício de seu cargo." (http://www.cidh.org/comissao.htm, acesso em 21 de junho de 2004).

Portanto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA recomenda que as polícias militares, no Brasil, sejam tratadas como órgãos de segurança de policiamento urbano, que, necessariamente possui natureza civil.

De fato, atualmente não se podem classificar as PMs como "força interna do aparato militar nacional", pois suas atividades-fins em nada têm em comum com as funções institucionais das Forças Armadas. Aliás, entre os membros das PMs não existe um sentimento categórico de identidade com os membros do Exército Brasileiro. Durante o exercício da função de policiamento ostensivo, imediatamente, a população reconhece os policiais militares como instrumentos de força física legítima, pois aparecem em viaturas, usam armamento leve e utilizam a técnica policial de combate à criminalidade. O relacionamento entre os membros das PMs e a comunidade é direto. Existe uma preocupação sobre a necessidade de respeito à ordem jurídico-constitucional pelas próprias PMs. Por sua vez, quando os membros do Exército saem dos quartéis para exercícios tácticos, físicos ou para realização de serviços comunitários, a população facilmente os reconhece, por seu fardamento, veículos e armamentos privativos, destacando-se a pouca presença de relacionamento entre as Forças Armadas e a comunidade.

Não obstante as evidentes diferenças, dentro dos quartéis, policiais militares e membros do Exército Brasileiro são submetidos a cotidianidade semelhante, em face da identidade de organizações e divisões hierárquicas. A organização semelhante favorece a repetição dos mesmos trâmites e práticas burocráticas. A hierarquia, nas PMs, segue modelo análogo daquele fixado no Exército Brasileiro (EB). Contundo, a disciplina é exercida conforme suas dimensões existenciais. Ou seja, no Exercito, a disciplina é praticada com mais rigor e as punições são mais gravosas, enquanto que, nas PMs, é exercida com menos rigor e as punições são menos rigorosas, de tal forma que o policial militar não tenha a liberdade restringida como os criminosos que costuma prender diuturnamente.

Os membros das Forças Armadas e os policiais militares dos estados são submetidos a jurisdições penais militares diversas (arts. 122 e 125, §4º., da Constituição Federal), contudo utilizam o mesmo aparato legislativo, notadamente, o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar. Por outro lado, os membros das demais polícias, são submetidos, indistintamente, à jurisdição penal comum. Portanto, a mesma conduta praticada por um policial civil, em concurso com um policial militar, gera, anacronicamente, dois tipos penais distintos, que são apurados, processados e julgados por instâncias executivas e judiciárias completamente diferentes. Mantém-se uma realidade insustentável, sob o ponto do sentido teleológico da jurisdição.

A jurisdição penal militar abrange situações que denotam serem os policiais militares entes "diferenciados", ainda que cometam crimes contra civis, durante o exercício de policiamento ostensivo. Inevitavelmente, a jurisdição militar estadual deve ser abolida, pois, nem mesmo, as infrações relativas a disciplina e a hierarquia deveriam ser tratadas como "crimes militares". As sanções administrativas já seriam mais do que suficientes para correção do comportamento do servidor público militar. Ao policial militar que comete "crime militar" grave contra a hierarquia e a disciplina (cuja pena concreta supera dois anos de reclusão) já bastaria um dos efeitos da pena: a demissão do serviço público. É completamente desnecessária a restrição da liberdade por seu exagero e pela duvidosa eficácia educativa.

Outro aspecto draconiano é a maior reprovabilidade dos crimes contra a disciplina e a hierarquia militares, que fazem parte de regime jurídico diferenciado, pois não admitem vários benefícios legais. Por exemplo, se um policial militar comete crime de deserção, previsto no art. 187, do Código Penal Militar ("Ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias) pode ser punido com detenção, de seis meses a dois anos e se oficial, a pena é agravada. Para este tipo de crime não se aplica a suspensão condicional da pena, sursi (art. 87, inciso II, letra "a", do CPM), ou seja, deverá o policial militar apenado cumprir a pena de restrição de liberdade. Por outro lado, se o mesmo policial militar comete crime de lesão corporal contra um civil, no exercício da função (art. 209, do CPM – "Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem") pode levar uma pena de detenção, de três meses a um ano e ainda pode ser beneficiado pela suspensão condicional da pena. Assim, o policial militar que simplesmente faltou o serviço por mais de oito dias poderá ser apenado com a pena mínima de seis meses, sem direito ao sursi, enquanto, o mesmo policial que viola a dignidade humana, ofendendo a integridade física do ser humano, poderá ser apenado com a pena mínima de três meses e jamais passará um dia sequer na prisão, caso seja admitida a suspensão condicional da pena. Isto denota que o policial militar deve mais respeito à corporação militar do que à própria comunidade que serve. Parece-nos um anacronismo para as PMs.

Podemos evidenciar que, na maioria dos países latinos em que houve a militarização da polícia, as respectivas polícias foram mantidas após a reedemocratização, com as mesmas perspectivas. Não podemos comparar o fenômeno sul-americano ao caso da Guarda Civil, força de polícia igualmente militarizada, instituída na Espanha em 1844. Este corpo policial ainda hoje existe, mas não expressa os mesmos desígnios de outros tempos. Zaverucha destaca que a Guarda Civil espanhola, de matriz militar, está prioritariamente subordinada ao Ministério do Interior, em tempos de paz, e ao Ministério da Defesa, em tempos de guerra. E acrescenta: "se os guardas civis cometem crimes em tempos de paz, depõem em tribunal civil. Assim, o problema não é ter uma polícia militar, mas permitir que a polícia tenha um comportamento "militarístico" (1994: 199).

Para Soares, a subordinação das PMs ao Exército Brasileiro gera uma superposição de seus vínculos com os governos estaduais, "o que constitui uma ameaça permanente ao princípio federativo e representa um risco tácito de crise institucional." E continua afirmando que "instadas a organizar-se à imagem e semelhança do Exército", no entanto, são "instituições destinadas a cumprir papel radicalmente diferente, as PMs acabam produzindo-se como entidades híbridas, pequenos exércitos em desvio de função." (http://www.luizeduardosoares.com.br/docs/pm_causas_crise.doc). Sendo assim, apesar do tratamento jurídico incompatível a função real das PMs, na verdade, aquelas, cotidianamente, desenvolvem trabalhos inerentes ao policiamento ostensivo, que, numa sociedade democrática e livre, tem, necessariamente, natureza civil.

No âmbito dos Estados e Distrito Federal, constituem órgãos de segurança pública as Polícias Civis, as Polícias Militares (PMs) e o Corpo de Bombeiros Militares. As duas primeiras corporações policiais realizam a repressão da criminalidade, enquanto que a última desenvolve serviços públicos de combate a incêndios e defesa civil. A polícia estadual, portanto, divide-se em duas corporações, de matizes diferentes e organizações absolutamente distintas. As estruturas das policiais estaduais são muito diferentes, apesar de cobrirem uma área territorial idêntica, o que dificulta o trabalho conjunto. E de fato não o fazem. Como ressaltou Zaverucha:

"A Polícia Militar e a Polícia Civil não trabalham em conjunto, como deveriam. Em São Paulo, por exemplo, para combater os seqüestradores, cada polícia tem sua própria equipe de resgate. A Polícia Militar tem o Grupo de Ações Tático-Especiais (Gate), e a Polícia Civil tem o Grupo Especial de Resgate (GER). Os dois trabalham quase independentemente um do outro, sem que haja a menor cooperação entre eles. No Rio de Janeiro, os dois grupos chegam a ter ondas de rádio diferentes, e não conseguem sequer se comunicar. Ambos os grupos já trabalharam na resolução de um mesmo caso policial, cada parte alegando ser sua a competência, num desperdício inaceitável de esforços. A rivalidade entre as polícias civil e militar é uma prática comum na maioria dos estados brasileiros." (1994: 198).

O número de polícias estaduais não é a questão mais importante. Nas pesquisas desenvolvidas por Monet e Tonry e Norval, constatou-se que os Estados Unidos possuem cerca de dezessete mil forças policiais, espalhadas pela União, Estados, Municípios, Condados, etc., todas concebidas como autônomas. A Austrália possui sete forças policiais estaduais e uma força federal que faz o policiamento em geral, somente na área da capital. A Grã-Bretanha tem quarenta e três forças policiais, formadas por quarenta e uma polícias provinciais, uma polícia da City de Londres – onde fica o centro financeiro, ou seja, sua Wall Street – e outra para proteger a área metropolitana de Londres. A Alemanha conta com três polícias federais e quinze policiais locais (Landespolizie). O Canadá possui cerca de quatrocentas e sessenta e uma forças policiais, sendo dez provinciais, quatrocentos e cinqüenta municipais e a Royal Canadian Mounted Police (RCMP – Real Polícia Montada Canadense). Nos países de origem latina, o número de polícias é significativamente menor. A Itália possui a Polizia di Stato (civil), Arma dei Carabinieri (militar) e a Guardia di Finanza (civil). A França conta com a Polícia Nacional (civil) e a Gendarmaria Nacional (militar). Portugal também possui a Polícia de Segurança Pública (civil), a Polícia Judicial (civil) e a Guarda Nacional Republicana (militar). A Espanha conta com o Cuerpo Nacional de Polícia (civil), a Guardia Civil (militar) e a Ertzainza, Mossos d´escuadra (civil, ligadas aos Governos autônomos basco e catalão). (2001: 84/85; 2003: 541) Enfim, é extremamente normal que sociedades modernas – necessariamente complexas – possuam diversos órgãos de segurança, resguardando a evolução história de suas sociedades. Na verdade, o problema é conceber como os diversos órgãos de segurança funcionam e como podem prestar seus serviços. Afinal, para a população não importa se a polícia tem matiz civil ou militar e que se comportem de determinada maneira. A sociedade civil somente espera que as polícias estaduais trabalhem coesas e integradas, uma vez que cobrem uma área territorial idêntica e são submetidas aos mesmos problemas locais de segurança pública.

As PMs são órgãos de segurança pública que mais se aproximar à idéia de polícia, qual seja, à linha tênue entre a barbárie e a civilização. Para Monjadet, a polícia é o órgão do Estado que administra e executa o "monopólio da violência física legítima" (2003: 13). Na verdade, é inútil conceber as diversas funções da polícia. Existem diversas maneiras de se conceber o aparelho policial, numa determinada sociedade. O estudo do conceito e das funções policiais é muito complexo, o que conduz a repensar as estruturas dos órgãos policiais vigentes no Brasil.

A dicotomia entre Polícia Civil e Polícia Militar não atende a qualquer parâmetro lógico, pois está alheia às reais necessidades da sociedade. Diante das perplexidades impostas às PMs, devemos compreender que se faz necessário refletir sobre a polícia, sem segregações históricas e ideológicas. Para Tonry e Morris, devemos assim ter a coragem de indagar: Pra que serve a polícia? Quem é polícia? O que a polícia pensa? Como a polícia é moldada pelo treinamento? O que o público pensa da polícia? Será que a polícia se desvia das normas legais? A polícia é justa? Quão eficaz é a polícia? Como a polícia é administrada e controlada? Como o policiamento chegou à sua situação atual? (2003: 487/518). Não são perguntas fácies de responder nem admitem respostas fechadas ou soluções definitivas.

Esta complexidade foi ressaltada por Araújo quando escreveu que:

"A Polícia Militar convive com a violência e a criminalidade que estão a sua volta o tempo todo. O policial militar se angustia por achar que é incapaz de dar conta da responsabilidade que a sociedade lhe confiou e a Lei maior manda que faça. Achando-se limitado por lei em suas ações e ao mesmo tempo não querendo se sentir inútil e humilhado diante da necessidade de combater os dois males citados (criminalidade e violência), ele acaba por agir de qualquer maneira, mesmo passando por cima da lei. Constata-se portanto a necessidade de mudança no foco estratégico da atuação policial, que deve priorizar a prevenção, principalmente a prevenção inteligente, que diagnostica e age sobre as causas, fatores, circunstâncias, condições e pessoas vinculadas ao cometimento de crimes e desordens numa determinada área." (2001: 208/209).

A mudança de foco que Araújo pretendeu foi, entre outros, a necessidade das PMs reforçarem os "serviços de inteligência" para o combate ao crime. Ou seja, realizar trabalhos de investigação, exatamente a tarefa que a Constituição Federal remeteu à polícia federal e às policiais civis dos estados (art. 144, §§1º. e 4º.). Não há, na Constituição Federal, nenhuma vedação às PMs em proceder operações policiais de investigação, porquanto, são tarefas necessárias ao bom desempenho do policiamento ostensivo e urbano. A própria Constituição não separou com clarividência as funções das PMs e das policiais civis dos estados, que atuam no mesmo plano territorial e são submetidas à autoridade dos Governadores dos Estados, Distrito Federal e Territórios (art. 144, §6º.). Sendo assim, existe uma real confusão de competências entre as PMs e as policiais civis.

A conceituação de "polícia" está alheia a dicotomia "civil" e "militar". Para Monjadet, "a polícia é a instituição encarregada de possuir e mobilizar os recursos de força decisivos, com o objetivo de garantir ao poder o domínio (ou a regulação) do emprego da força nas relações sociais internas." (2003: 27). Para Monet, "a polícia, enfim, é uma instituição singular em razão da posição central que ela ocupa no funcionamento político de uma coletividade. A legitimidade de um governo não depende, em todo lugar, de sua capacidade de manter a ordem entre as populações e nos territórios juridicamente submetidos à sua autoridade?" (2001: 16). Para Goldstein, a função da polícia é demasiadamente complexa e suas responsabilidades são extremamente amplas (2003: 37). Goldstein tenta enumerar as diversas funções da polícia:

"1. Prevenir e controlar condutas amplamente reconhecidas como atentatórias à vida e à propriedade (crimes graves);

2. Auxiliar pessoas que estão em risco de dano físico, como as vítimas de um ataque criminoso.

3. Proteger as garantias constitucionais, como o direito à liberdade de expressão e de reunião.

4. Facilitar o movimento de pessoas e veículos.

5. Dar assistência àqueles que não podem se cuidar sozinhos: os bêbados, os viciados, os deficientes mentais, os deficientes físicos e os menores.

6. Solucionar conflitos, sejam eles entre poucas pessoas, grupos ou pessoas em disputa contra seu governo.

7. Identificar os problemas que têm potencial de se tornarem mais sérios para o cidadão, para a polícia ou para o governo.

8. Criar e manter um sentimento de segurança na comunidade" (2003: 56/57).

A enumeração das funções de polícia acima, formuladas por Goldstein, parece-nos apenas exemplificativa, pois não congregar todas as necessidades das comunidades locais. Aliás, existem diversas maneiras de se conceber o aparelho policial, numa determinada sociedade. Para Monjadet, o aparelho policial é, indissociavelmente, uma tripla determinação: "um instrumento do poder, que lhe dá ordens; um serviço público, suscetível de ser requisitado por todos; e uma profissão, que desenvolve seus próprios interesses." (2003: 15). Portanto, toda polícia congrega três elementos inseparáveis: a instituição, a organização e a profissão policial. Por sua vez, para Monet, a polícia possui três dimensões: a dimensão histórica e semântica; a dimensão sociológica; e a dimensão política. Estas diversas abordagens relevam a complexidade do conceito de polícia (2001: 17).

Dispõe o artigo 12, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, (França, 26 de agosto de 1789): "A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada." A instituição policial é um ente histórico e auto-revela-se na sua condição histórica. Não faz parte deste despretensioso trabalho traçar a evolução histórica e semântica da polícia. Contudo, ousamos em afirma que os parâmetros da polícia moderna advêm da concepção institucional traçada no art. 12, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. A polícia moderna somente pode ser concebida no Estado Democrático de Direito. Para Goldstein:

"A democracia depende de maneira decisiva da força policial. Cabe à polícia prevenir contra a pilhagem de coisas alheias, dar uma sensação de segurança, facilitar o ir e vir, resolver conflitos e proteger os mais importantes processos e direitos - como eleições livres, liberdade de expressão e liberdade de associação -, em cuja continuidade está a base da sociedade livre. O vigor da democracia e a qualidade de vida desejada por seus cidadãos estão determinados em larga escala pela habilidade da polícia em cumprir suas obrigações." (2003: 13).

Para Monet, mais do que em qualquer outro regime político, a democracia depende muito da qualidade de sua polícia e dos valores que a fundamentam. E acrescenta:

"Melhor, é reconhecer a natureza política da função policial. Só os regimes autoritários podem fingir acreditar que manter a ordem pública é simplesmente uma questão de técnica. Com a democracia, a função policial reencontra suas raízes gregas e aparece pelo que ela é: uma dimensão central da ação política." (2001: 29).

A organização policial, como asseverou Monjadet, importa em duas faces: "um lado formal (estrutura, organogramas, recursos humanos e materiais, e seu arranjo segundo regras explícitas que determinam a maneira como a organização pode operar), e outro lado informal, que é o conjunto dos comportamentos e normas observáveis segundo as quais a organização realmente funciona." (2003: 41). A organização e a linha hierárquica variam segundo o tamanho de cada instituição, ou seja, pouco extensa nas pequenas circunscrições e demasiadamente complexa em grandes circunscrições. Também são organizadas segundo suas origens históricas (civil, militar, nacional, regional, comunitária, etc), não havendo unidade ideológica na sua formação. Os comportamentos dos policiais, na sua cotidianidade, também fazem parte da organização. Para tanto, os policiais são submetidos a legislação, que limita seus comportamentos, como são os regulamentos disciplinares e a legislação criminal. Contudo, são as práticas corriqueiras e descentralizadas que compõem a organização, pois é expressão do comportamento do corpo policial.

A polícia, na democracia, é a polícia urbana, cujo cliente é o cidadão comum, o homem sem qualidades, como destacou Monjadet (2003: 284). Trata-se da polícia de segurança que pretende assegurar a ordem e tranqüilidade. Esta pretensão de segurança, no Brasil, é exercida, indistintamente, pelas policiais estaduais, Os conceitos descritos na Constituição Federal para definir as funções das PMs e das polícias civis, portanto, são insuficientes e não revelam com clarividência suas identidades institucionais.

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Sobre o autor
Ythalo Frota Loureiro

Promotor de Justiça do Estado do Ceará – Aluno da Escola Superior do Ministério Público do Estado do Ceará (ESMP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUREIRO, Ythalo Frota. As Polícias Militares na Constituição Federal de 1988:: polícia de segurança pública ou forças auxiliares e reserva do Exército?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 486, 5 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5866. Acesso em: 29 mar. 2024.

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