Incapacidade de ação
A doutrina dominante entende que a pessoa jurídica não tem capacidade de ação e todas as atividades relativas à pessoa jurídica são realizadas por pessoas físicas, mesmo na qualidade de seus membros diretivos.
O Direito Penal atual estabelece que o único sujeito com capacidade de ação é o indivíduo. Tanto para os natural-causalistas, como para os finalistas o essencial é o ato da vontade.
O grande problema é justificar como que a pessoa jurídica, um ente abstrato, destituído de sentidos e impulsos, possa ter vontade e consciência?
René Ariel Dotti destaca que "o conceito de ação como ‘atividade humana conscientemente dirigida a um fim’ vem sendo tranqüilamente aceito pela doutrina brasileira, o que implica no poder de decisão pessoal entre fazer ou não fazer alguma coisa, ou seja, num atributo inerente às pessoas naturais". (14)
A capacidade de ação e de culpabilidade exige a presença de uma vontade, que somente o ser humano pode ter.
Amadeus Lopes Ferreira explica que certamente surge a pergunta de como se avaliar o elemento subjetivo do tipo quando estamos diante de uma pessoa sem vontade própria, cuja ação é manifestada por deliberação de seus dirigentes e executada por seus agentes. O mais razoável, numa visão primária seria imputar-se a conduta ao dirigente, sendo a pessoa jurídica apenas instrumento do crime. Ocorre, contudo, que o legislador, atento ao uso da pessoa jurídica como instrumento do crime ou meio para facilitar sua execução ou impunidade acabou elevando a conduta realizada como sendo conduta da própria pessoa jurídica. (15)
Cezar Roberto Bitencourt, em trabalho sobre o tema indigna-se: "Como sustentar-se que a pessoa jurídica, um ente abstrato, uma ficção normativa, destituída de sentidos e impulsos possa ter vontade e consciência? Como poderia uma abstração jurídica ter ‘representação’ ou ‘antecipação mental’ das conseqüências de sua ‘ação’?
A conduta (ação ou omissão) é produto exclusivo do homem. Juarez Tavares, seguindo esta linha, afirma que a vontade eleva-se, pois, à condição de espinha dorsal da ação sem vontade não há ação, pois o homem não é capaz de cogitar de seus objetivos, se não se lhe reconhece o poder concreto de prever os limites de sua atuação."·
Interessante, pois saindo um pouco da esfera penal, e utilizando de um exemplo não muito politicamente correto, sempre vejo os diretores de futebol dos grandes clubes brasileiros, que nenhum jogador ou dirigente está acima dos interesses do clube.
E quantas vezes já ouvi falar em política da empresa está cima de seus próprios funcionários, será que não estamos tratando do ente coletivo em si, apartado dos interesses de quem o compõe? A resposta é notadamente afirmativa, uma empresa constrói uma imagem perante a sociedade ao longo do tempo, e mesmo com entrada ou saída de novos profissionais a política da empresa continuará, mudam-se as peças, mas o jogo continua. Sendo assim, não há como dizer que a pessoa jurídica não tem capacidade de ação.
Claro, não estamos nos referindo ao fato do ente coletivo tomar uma decisão por si só, isto é sabidamente impossível, mas o que impede a filosofia da empresa ser maior que os próprios componentes, fazendo com que estes apenas conduzam a pessoa jurídica para manter seu bom e fiel conceito perante a comunidade.
Juridicamente falando é o que afirma Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes "O tipo objetivo não se refere à objetivação da vontade em um fato externo, senão a descrição da ação com prescindência de fenômenos anímicos, entre os quais encontramos a vontade. Na qualidade de sujeito ativo, se atribui âmbito das pessoas jurídicas deve-se limitar a quem se atribui à qualidade de sujeito ativo, se ao órgão ou a entidade. Se a pessoa jurídica não tem outra forma de atuar a não ser através de seus órgãos, deve atribuir-se a qualidade de sujeito ativo a esta, o órgão constituído obviamente por pessoas físicas atua em sua representação". (16)
Ressaltamos novamente, o cômodo posicionamento destes doutrinadores em não aceitarem a Constituição Federal, e defenderem um sistema que hoje já não condiz mais com a realidade.
Em tempos de um Novo Código Civil, com novos princípios, voltados ao cidadão comum, e principalmente à sociedade, já é chegada a hora do Código Penal se modernizar, pois, no dizeres do grande mestre Miguel Reale: " O Direito é a expressão do cotidiano do homem médio", sendo assim, notadamente o diploma penal está em desacordo com o mundo regido pela globalização, pelos grandes conglomerados econômicos, empresários, carecendo equacionar-se a esta nova realidade.
E é tão nítida a possibilidade de delitos pelas pessoas jurídicas, que não como negar não serem sujeitos de direito com capacidade de ação, e para tanto Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes cita três exemplos que comprovam nossas palavras, pois a doutrinadora coaduna com nosso pensamento da teoria da dupla imputação, afirmando que esta pode ocorrer em delitos econômicos e financeiros, contra a economia popular, e contra o meio ambiente, podendo ser cometidos tanto pelas pessoas físicas como pelas pessoas jurídicas, para tanto justifica:
- Tipo de comissão com decisão institucional negligente – dado que as pessoas jurídicas carecem do elemento cognitivo (típico das pessoas físicas) se deve recorrer à tradicional fórmula da previsibilidade;
- Tipos de omissão próprios e impróprios – os delitos de omissão não são privativos das pessoas humanas. Tanto os delitos próprios de omissão, que são aqueles que supõem uma ordem de ação (facere) não observada, como os impróprios de omissão, que implicam a exigência de que se evite um resultado, podem ser aplicados às pessoas jurídicas; e
- Tipo subjetivo com vontade social dolosa de omissão – Na suposta ausência de uma decisão (delito próprio) a manifestação da vontade social somente se apreende de maneira implícita, pois a inatividade do órgão deixa subsistente a imputação da pessoa jurídica; a exteriorização é apreciada quando a tomada de decisão não assume o dever instituído, ou, nos delitos impróprios de omissão, quando a pessoa jurídica, em sua condição de garante, está obrigada a evitar o resultado. (17)
A autora teve a felicidade de demonstrar em três exemplos que René Ariel Dotti estava correto se analisar o regramento do ponto de vista da responsabilidade individual, mas não se aplicado à pessoa jurídica, como ente coletivo, sendo esta plenamente possível de praticar atos. Novamente se torna claro que para os defensores da responsabilidade individual é muito melhor encontrar argumentos que inviabilizem a responsabilidade coletiva do que normalizá-la.
E como fica a argumentação do professor Dotti diante disto? Ao nosso ver da mesma forma que o atual Código Penal: aplicável em muitas coisas, em outras nem tanto, mas evidentemente necessita de uma revisão e aprimoramento de conceitos.
incapacidade de culpabilidade da pessoa jurídica
A culpabilidade é a reprovabilidade do fato antijurídico individual e o que se reprova é a resolução de vontade antijurídica em relação ao fato individual. Dispõe o artigo 29 do Código Penal: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade".
Sobre esta questão, manifesta-se René Ariel Dotti: "Como, porém, ‘medir’ a ‘culpabilidade’ da pessoa jurídica quando ela ‘participar’do fato típico realizado pela pessoa física? Como saber a forma de participação (mandato, comando, conselho e ameaça) ou de cumplicidade (auxílio material)? Quem é quem na estrutura administrativa da sociedade por ações ou da pessoa jurídica de Direito Público Interno para ser identificado como o prestador do serviço de informações? Quem poderá identificar a forma e o alcance da participação ou do auxílio? Em outras palavras: para quem o Delegado de Polícia vai mandar a intimação? (18)
Incrementamos ainda o pensamento do ilustre doutrinador: como será realizado o interrogatório?
Nestes casos, a problemática é maior, ou seja, o conflito surge pela falta do devido procedimento legal que deveria ter sido estabelecido pelo legislador, como já demonstramos anteriormente.
O grande professor Nilo Batista também se contrapõe ao legislador e o culpa pela falta do procedimento ordinário legal, o que ocasiona estes problemas elencados pelo professor Dotti: "Todos conhecemos as diferenças abissais que existem entre a natureza, os efeitos e os limites das respectivas disciplinas legais da confissão no âmbito civil e no âmbito penal. O reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais (arts. 3°, 21, 22, 23 e 24 da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998), a par da grave violação ao princípio da reserva legal que aqui não interessa, deu-se sem que o legislador dedicasse um único dispositivo ao procedimento judiciário correspondente; em minha opinião, com radical ofensa ao princípio do devido processo legal, em sua expressão mais elementar (a falta de procedimento tipificado0. Na adaptação do procedimento ordinário destinado às pessoas físicas, o primeiro problema surgiu com o interrogatório: quem deveria presta-lo? Algumas respostas se apresentaram, valendo-se dos critérios da representação legal, da representação processual e do mandato, prevalecendo afinal o uso analógico - preconizado por Ada Grinover - do preposto alvitrado pela legislação trabalhista. Qualquer que seja a solução que se adote, nesta improvisação forense que substitui a cabível declaração incidental de inconstitucionalidade (até que o legislador estabeleça um procedimento específico, surge a questão dos efeitos da confissão, mesmo parcial, que por desinformação, leviandade ou má-fé do representante acarretará sérias conseqüências para a empresa (supondo-se que o representante esteja legitimamente autorizado, do ponto de vista corporativo)" (19).
De fato é louvável a argumentação e a parte em que concordo é justamente o final da argumentação do professor Dotti. É um grande problema para a responsabilização penal de uma pessoa jurídica o cumprimento dos procedimentos penais, tais como: a entrega de intimação, quem prestará informações e coisas do tipo, contudo, se a argumentação ficar baseada nessas dificuldades, então o direito nunca conseguiria evoluir. Realmente é uma preocupação que deve ser resolvida pelo legislador no futuro, e que ocasiona transtornos no presente, pois bons advogados podem justamente ganhar uma ação utilizando-se dos argumentos do referido doutrinador, tais como: não foi recebida a intimação, pois a quem seria entregue? E nos deparamos com uma jurisprudência neste sentido (20), mas nem por isso deixamos de entender ser possível a aplicação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, feita a ressalva de que a argumentação do professor Dotti é válida e tem embasamento de alguns membros do judiciário, que sejamos minoria enquanto não for realizada a reforma do Código Penal e de Processo Penal, mas não podemos nos curvar aos fatos e ficar silentes por causa de uma legislação ultrapassada.
personalidade da pena
Os defensores deste preceito baseiam-se na Constituição Federal de 1988, que dispõe em seu artigo 5°, inciso XLX, que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, consagrando o princípio da personalidade da pena e como conseqüência lógica, o princípio da individualização da mesma. De acordo com os princípios, a sanção penal recai exclusivamente sobre os atos materiais do delito.
Keity Mara Ferreira de Souza defende este conceito e afirma que a condenação do ente coletivo pressupõe a penalização de todos os membros da corporação, autores materiais do delito e membros inocentes do grupo jurídico, representando uma flagrante violação aos princípios da personalidade e da individualização da pena. (21)
E a autora tem companhia dos conservadores que reforçam o pensamento, com a afirmação de que se for punida a pessoa jurídica, como esta poderá passar por um programa de recuperação, se a pessoa jurídica é incapaz de arrependimento, não podendo ser intimidada nem emendada ou reeducada?
Aos defensores desta tese, duas considerações a serem feitas: a primeira, no tocante ao preceito constitucional, não se discute a eficácia, tampouco a validade do artigo 5°, XLX, mas algo está em dissonância, pois, então o que fazer com os artigos 173 e 225 da mesma Constituição Federal, que disciplinam a responsabilidade penal da pessoa jurídica? Os mais fervorosos poderão argumentar que estes artigos regulamentaram a tutela dos interesses difusos e que não confrontam o artigo 5°. Outros dirão que a escrita dos dispositivos é imprecisa e que na realidade o legislador não colocou uma vírgula para ratificar que a responsabilidade penal é individual.
O fato é que o legislador buscou sair do conservadorismo, e se o fez de maneira correta ou não é uma discussão para outra oportunidade, e que de fato os dispositivos tratam dos interesses difusos, mas há que se notar que a maior beneficiária desta proteção é a mesma do caso da responsabilidade individual: a sociedade e o meio ambiente. Então entendemos que o artigo 5°, XLX deve ser complementado, pois o legislador, de fato, consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. E, além disso, trata-se o referido artigo de cláusula pétrea, não podendo ser modificado, cabendo ao legislador fazer uma ressalva na Lei que o artigo 5° permanece válido, mas também será aplicado às pessoas jurídicas.
A segunda consideração refere-se às afirmações de que a pessoa jurídica não pode ser apenada, pois não há como recuperá-la para a sociedade. Outrossim, seremos breves, porque não queremos criar uma polêmica desnecessária, que nada diz respeito ao nosso estudo. É sabido que o atual sistema penitenciário brasileiro já de muito tempo não recupera, tampouco regenera nenhum indivíduo, muito ao contrário, na maioria dos casos aperfeiçoa o criminoso tornando-o ainda mais perigoso do que antes do cárcere, sendo assim, deve-se agradecer que a pessoa jurídica não tenha um ‘convívio’ com estes ‘profissionais do crime’.
Além disso, em criminalidade econômica não possui relevância a ressocialização, pois, o que dizer do delinqüente de colarinho branco, haja visto tratar-se de pessoa, geralmente, altamente socializada, desfrutando de prestígio social e intelectual no convívio com seus semelhantes, e parece-nos demagogia este discurso de a pessoa jurídica não pode ser apenada, pois, se não é possível prender uma empresa, então porque não se suspende temporariamente suas atividades, e em caso de reincidência, não as interrompe? Será falta de motivação? Como se pode alegar que a pessoa jurídica não pode ser intimidada, se a suspensão de suas atividades é um exemplo claro e cristalino de intimidação, sob ameaça de uma interrupção das atividades em caso de reincidência. A empresa não desprezará tal aviso se tiver suas atividades suspensas, ao invés disso, terá muito mais cuidado para evitar nova punição. O fato é que o apenamento à pessoa jurídica é perfeitamente aplicável, não evidente, igual ao da pessoa física, mas também, se tem de considerar que a prática de delito também é distinta, pois não tem como uma empresa auxiliar uma grávida num aborto, tampouco, esta pode cometer certos delitos próprios de uma pessoa jurídica, então porque a equivalência de penas? Quer dizer, nenhum dos fins tradicionais atribuídos às penas criminais poderia ser atingido através da aplicação de uma sanção desse tipo a uma pessoa coletiva que não sente, não compreende e não quer? Deve-se tratar os iguais de maneira igual e os diferentes de maneira distinta, então é chegado o momento dos doutrinadores deixarem de tentar equiparar a pessoa jurídica à pessoa física e admitirem que esta pode ter uma responsabilização própria e se tem alguma mudança a ser feita é na legislação e não no delito ou no sujeito ativo praticante do mesmo.
A solução é aplicar as penas alternativas à pessoa jurídica, pois assim, não há mais que se falar em prender a empresa, mas sim encontrar caminhos alternativos para atingir a mesma pretensão do Direito Penal, qual seja a reprovabilidade social punida com uma pena por infração com o cometimento de uma conduta não permitida.
A análise das penas alternativas, viabilizando a personalidade da pena às pessoas jurídicas será feita em tópico próprio.