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A transgressão dos preceitos elencados na Lei nº 9.434/97 pode dar origem à configuração do delito previsto no art. 211 do Código Penal?

02/11/2004 às 00:00
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Sumário: 1. Introdução; 2. Aspectos gerais sobre o Art. 211 do Código Penal; 3. Aspectos gerais sobre a Lei nº 9.434/97; 3.1. Condutas incriminadas pela Lei nº 9.434/97; 4. Possíveis correlações entre o Art. 211 do Código Penal e o Caput do Art. 14 da Lei nº 9.434/97.Comparações; 5. Conclusão. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

Tem por meta o presente artigo a análise dos aspectos gerais do delito de Destruição, subtração ou ocultação de cadáver, previsto no Art. 211 do Código Penal, bem como dos dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências; realizando, afinal, uma comparação entre os referidos diplomas, tendo em vista respostas à pergunta inicialmente formulada (e que constitui o título deste texto) e nossa opinião sobre ela, sempre baseando-se na mais abalizada doutrina.

Pelo exposto, vê-se logo que não é tema de exposição a questão da constitucionalidade ou não de referida lei quanto à liberdade de disposição de seu próprio corpo. Discute a doutrina nacional – discussão que perdeu a atualidade com as modificações introduzidas pela Lei nº 10.211/2001 – quanto à legitimidade da presunção de autorização para retirada de órgãos e tecidos, afirmando uma corrente que esta afrontaria a liberdade do ser humano, constitucionalmente consagrada e outros, de opinião contrária, que a livre disposição do próprio corpo é devidamente abarcada pelo texto legislativo, já que as pessoas não desejosas de doarem seus restos mortais poderão isto expressamente consignar em seus documentos de identificação.

Com o devido respeito aos Doutores que tratam do tema, tal discussão, hoje, não traz qualquer utilidade prática, pois as novas redações determinadas pela Lei nº 10.211/2001 acabaram com tal presunção, o que pode ser conferido com a análise do "novo" Art. 4º, da lei nº 9.434/97:

Art. 4º. A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá de autorização do cônjuge, ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

Pois bem, após esse breve apanhado, passemos à discussão do real tema de estudo.


2. ASPECTOS GERAIS SOBRE O ART. 211 DO CÓDIGO PENAL

Proíbe o Art. 211, CP, a destruição, subtração ou ocultação de cadáver ou parte dele, cominando a esta conduta típica a pena privativa de liberdade na modalidade de reclusão, de 1 (um) a 3 (anos), cumulada com a multa.

O bem jurídico aqui tutelado é o sentimento de respeito aos mortos, principalmente por parte de seus familiares e amigos. Concorda-se com o que diz Bitencourt (2003, p. 514):

Na verdade, a definição de quem pode ser sujeito passivo desse crime deve estar intimamente vinculada ao bem jurídico tutelado, e, na medida em que se admite que esse bem jurídico é o sentimento dos parentes e amigos do morto e não o próprio de cujus, sujeitos passivos diretos só podem ser os parentes e amigos.

Sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, tratando-se, portanto, de crime comum, por não exigir qualquer qualidade especial do agente.

As condutas incriminadas consistem em destruir (destroçar, fazer desaparecer, isto é, levá-lo a deixar de ser considerado como tal); subtrair (retirar do local em que se encontra sob vigilância de alguém) ou ocultar (esconder temporariamente, somente podendo ocorrer antes do sepultamento) cadáver ou parte dele.

Cadáver, elemento normativo do tipo, é o corpo do ser humano sem vida, conquanto preserve tal aparência. São considerados cadáveres o natimorto e o feto após 6 (seis) meses de gestação; não o sendo, porém, o esqueleto, a múmia, nem as cinzas do de cujus. Já ao falar em "parte dele", refere-se a lei, obrigatoriamente, à parte destacada do corpo humano sem vida, não caracterizando o delito a prática de qualquer das figuras típicas em relação a partes do corpo – com vida – amputadas.

Quanto ao elemento subjetivo, é constituído pelo dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele, não sendo exigido o elemento subjetivo especial do tipo. Adiante, quando da comparação dos dois diplomas, falaremos mais sobre este elemento, bem como do dolo nos crimes tipificados na Lei nº 9.434/97.


3. ASPECTOS GERAIS SOBRE A LEI Nº 9.434/97

Diz a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 199, § 4º:

A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

Portanto, percebe-se que já era anseio do povo a edição de diploma legislativo que viesse a dispor sobre remoção e transplante de órgãos, de forma a tentar diminuir ou até mesmo cessar o sofrimento de pessoas em estágio de frágil saúde, que apenas poderiam recuperar-se com a "implantação" de novo órgão sadio em lugar do originário, em detrimento de "pessoas" que serviriam, apenas, de alimento para os vermes subterrâneos. Aplicação clara, de conseguinte, do Princípio da Ponderação de Interesses, sobrelevando-se o interesse público na saúde e manutenção de várias vidas humanas, em detrimento do sentimento privado dos próximos ao falecido.

Obedecendo à disposição constitucional, foram editadas leis várias tratando do assunto, sendo que hodiernamente vigora a Lei º 9.434/97, com as alterações introduzidas pela de número 10.211/2001.

Dispõe este diploma legislativo, em seu Art. 2º, que os procedimentos tendentes à remoção de órgãos para transplantes só poderão ser realizados por estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, e por equipes médico-cirurgicas de remoção e transplante autorizadas pelo órgão de gestão nacional do SUS, devendo antecedê-los os devidos testes para diagnóstico de infecções ou infestações.

Questão importante e que não deve ser esquecida é a de que estas retiradas só serão possíveis após a regular declaração de morte encefálica do doador, sendo admitida a presença do médico de confiança da família deste no ato da comprovação do falecimento. E o anteriormente mencionado, de que o procedimento referido depende de expressa autorização dos parentes próximos, acabando-se com a atualidade da discussão doutrinária supra comentada.

Caso o doador seja incapaz, é possível a remoção post mortem do material a ser doado, com a ressalva de que deverá ser expressamente permitida por ambos os pais ou responsáveis, sendo terminantemente proibida caso se trate de pessoas não identificadas.

Mas não é só sobre o doador que dispõe a lei sob análise, consignando esta em seu texto várias normas a respeito do receptor do material orgânico objeto de transplante. Diz o Art. 10 da Lei nº 9.434/97 que este só se fará com o consentimento expresso do receptor e, sendo este incapaz ou com condições de saúde que impeçam ou comprometam sua manifestação válida de vontade, o consentimento referido neste artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis (Art. 10, § 1º).

3.1 CONDUTAS INCRIMINADAS PELA LEI Nº 9.434/97

Após a análise dos aspectos gerais ditados pela Lei de Transplante de Órgãos, deve-se dar uma atenção aos delitos previstos nessa norma. Porém, tendo em vista a finalidade deste trabalho, só serão comentados os crimes que possam ter alguma correlação com o Art. 211, CP.

Comece-se por dizer que, tendo em vista o Princípio da Intervenção Mínima, "o Direito Penal só deve atuar na defesa de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa" (PRADO, 2001, p. 84). Já o Princípio da Fragmentariedade tem como significado a não absolutização da proteção atribuída à lei penal, ou seja, "apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização" (PRADO, 2001, p. 84).

Traz-se estas explicações sobre os princípios gerais do Direito Penal para defesa do ponto de vista da proporcionalidade das sanções consignadas. Explica-se: não se quer dizer com isto que se tratam de reprimendas pouco severas; muito pelo contrário. A maioria das penas consignadas é privativa de liberdade na modalidade de reclusão, contendo limites máximo e mínimo abstratamente definidos em margens elevadas. Porém, tendo em vista os bens jurídicos objeto de proteção, que são, sem sombra de dúvida, de elevado valor, e observando-se os princípios da moderna ciência criminal, conclui-se que as penas instituídas são absolutamente proporcionais à gravidade das lesões praticadas, que têm como objeto mediato a vida e saúde humanas.

Pois bem, passemos a comentar as figuras típicas.

Reza o Art. 14: Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta lei: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. Tratando tal norma do ponto central deste texto, deixaremos para analisá-la apenas no item seguinte, que trata da comparação entre os respectivos diplomas legais.

Art. 14, § 1º: Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, de 100 (cem) a 150 (cento e cinqüenta) dias-multa. Tem-se, aqui, uma qualificadora para o crime previsto no Caput do Art. 14, que leva em conta um maior desvalor da ação, atuando na medida da culpabilidade.

Art. 15: Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, de 200 (duzentos) a 360 (trezentos e sessenta) dias multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação. A finalidade é coibir o tráfico, seja nacional ou internacional, de órgãos, atividade bastante lucrativa e que possui infra-estrutura de elevada sofisticação, contando com representantes de localidades várias e que incluem até mesmo médicos. Quanto à compra efetuada por parentes de pessoas em estado terminal e que só poderão salvar-se com o devido transplante, apesar de continuar a ser uma conduta reprovável, não se pode deixar de levar em conta os motivos que determinaram tal ação quando da fixação da pena base pelos critérios do Art. 59, CP. Esta previsão legal é aplicada em relação ao presente diploma não codificado por expressa disposição do Art. 12, CP: As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso.

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Art. 19: Deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento ou deixar de entregar ou retardar sua entrega aos familiares ou interessados: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. O objeto jurídico do presente dispositivo é o sentimento de respeito aos mortos, seja través de seu aspecto físico, pois em virtude dos procedimentos cirúrgicos sua aparência pode vir a ficar extremamente chocante; seja por seus familiares, que objetivam ter o cadáver de entes queridos próximos de si para as últimas despedidas e realização das cerimônias religiosas competentes, o que revela a proximidade entre a tipicidade objetiva aqui enfocada e a dos crimes previstos no Capítulo II, do Título V, da Parte Especial do Código Penal.


4. POSSÍVEIS CORRELAÇÕES ENTRE O ART. 211 DO CÓDIGO PENAL E O CAPUT DO ART. 14 DA LEI Nº 9.434/97. COMPARAÇÕES

Chega-se, afinal, ao ponto culminante do texto, onde, após todas as observações e comentários tecidos, tentar-se-á correlacionar os elementos objetivos e subjetivos tanto da figura típica prevista no Art. 211, CP, quanto do Caput do Art. 14 da Lei supra mencionada, com vistas à resposta inicialmente formulada sobre a possibilidade de configuração do crime previsto na Parte Especial do Estatuto Criminal através da desobediência aos preceitos da lei especial sob análise.

Não será preciso, neste ponto, comentar-se sobre os aspectos do Art. 211, CP, pois tal já fora realizado no item 2 supra, ao qual se remete o leitor.

Passa-se, portanto, ao estudo detalhado do Art. 14, Caput, que prescreve: Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta lei: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa, de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. Sob o ponto de vista objetivo, pode-se facilmente verificar que são idênticas as condutas previstas nos dois dispositivos.

Se, por exemplo, João vai até o local onde está sendo "guardado" o corpo de José e, aí chegando, retira todos os órgãos internos deste cadáver, a simples análise do que fora narrado não é suficiente para a definição concreta de qual delito foi cometido.

Assim, deve-se ir em direção ao animus do agente, seu elemento subjetivo, a força de vontade que o impulsiona à prática desta ação. Pois bem. Caso a vontade livre e consciente de João (atendidos todos os elementos da culpabilidade: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa) seja dirigida ao fim de vingança contra a família do morto, sendo sua ação direcionada à destruição do cadáver - sua desconfiguração humana - como forma de chocar seus próximos, então teremos por configurado o delito do Art. 211, CP. Porém, se com a mesma conduta comissiva tal criminoso visa comercializar os órgãos ou dar qualquer outra destinação correlacionada com o tema regulado por esta lei especial, como, por exemplo, transplante para favorecer um parente próximo, sua atitude exteriorizada estará subsumida à norma do Art. 14 da lei nº 9.434/97.

Quando fala em desacordo com as disposições desta Lei, quer referir-se ao fim comercial, à falta de autorização dos familiares do de cujus, ao consentimento do receptor ou à não identificação do cadáver. É o desrespeito às referidas exigências que tem o condão de configurar este crime, podendo-se considerar a finalidade comercial (intuito de lucro) como elemento subjetivo especial do tipo.

Não se queira aqui dizer que as prescrições ditadas pela lei não codificada, ao serem violadas, por si só fazem a ação exterior configurar-se diversa daquela do crime de Destruição, subtração ou ocultação de cadáver; longe disso. Apesar de tais mandados terem cunho objetivo, a ação continua a ser idêntica em ambas as hipóteses. O que vem a diferenciá-las , como dito anteriormente, vem a ser o dolo, que no caso do Art. 14 da Lei de Transplante de Órgãos abarca o necessário conhecimento do agente acerca da existência destes mandados e a vontade livre de não acatá-los.


CONCLUSÃO

Diante de tudo o que fora exposto, tem-se por plenamente impossível a configuração do crime inscrito no tipo do Art. 211, CP, através da não observância dos requisitos exigidos pela Lei nº 9.434/97 para a realização dos procedimentos cirúrgicos tendentes à remoção de órgãos.

Apesar de ter este artigo a finalidade de responder à pergunta inicialmente feita, para os que possuem conhecimento suficiente sobre a Teoria Geral do Delito, a conclusão é lógica e de fácil constatação, o que, de per se, não retira o seu valor.

Como dito, tal impossibilidade absoluta tem por base o elemento subjetivo do tipo (dolo), onde condutas fisicamente iguais configuram delitos diferentes tendo em vista unicamente o fim visado pelo agente (1). Querer afirmar o contrário é pôr abaixo toda a evolução do Direito Penal no que tange ao elemento volitivo integrante da descrição típica.


NOTAS

(1) Para maiores elucidações, pode-se tecer o seguinte exemplo: A, armado com um revólver calibre 38, efetua um disparo em direção a B, causando-lhe a morte. Só se saberá qual o delito perpetrado, com a análise do dolo de A: se ele tem a intenção de matar, configurado estará o delito do Art. 121, CP; se ele apenas tem a intenção de ferir, poderá subsistir o delito de Lesões Corporais seguidas de Morte; se há intenção de assegurar a consumação do delito de Roubo, poderá ser configurado o Latrocínio (Art. 157, § 3º, segunda parte, CP). Podendo esta conduta, ainda, não ser criminosa, caso se trate de alguma causa justificante (ex.: Legítima Defesa - Art. 25, CP).


BIBLIOGRAFIA

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: RT, 2001. v. 1.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Especial. 2ª ed. São Paulo: RT, 2002. v. 3.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Especial. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3.

DELMANTO, Celso et alli. Código Penal Comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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Sobre o autor
Tiago de Sampaio Viegas Costa

bacharelando em Direito pelo Centro Universitário do Maranhão (UNICEUMA), servidor do Tribunal de Justiça do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Tiago Sampaio Viegas. A transgressão dos preceitos elencados na Lei nº 9.434/97 pode dar origem à configuração do delito previsto no art. 211 do Código Penal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 483, 2 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5887. Acesso em: 18 abr. 2024.

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