INTRODUÇÃO
O presente trabalho científico terá por finalidade analisar a efetividade ou não da instauração do processo administrativo para suspensão da Carteira Nacional de Habilitação concomitantemente com a instauração do processo de aplicação da penalidade de multa.
A lei 13.281/16 inovou o Código de Trânsito Brasileiro, inserindo o § 10 no artigo 261, determinando que nas infrações em que couber de forma específica a penalidade de suspensão do direito de dirigir, o processo de suspensão deverá ser instaurado concomitantemente com o processo para aplicação da penalidade de multa.
Ocorre que o processo de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, como todos os processos, deve garantir aos administrados os direitos constitucionalmente assegurados, como o do contraditório e a ampla defesa. Todavia, cumpre observar que o processo para aplicação da penalidade de multa deve seguir seu trâmite normal, sem atropelos, e somente com o trânsito em julgado é que se tornará perfeito o processo.
Assim a instauração do processo de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, não obstante lei 13.281/16 determinar que deva ser instaurado de forma concomitante com o processo para aplicação da penalidade de multa, a este torna-se “dependente”, não é possível aplicar a penalidade de suspensão da CNH sem antes a penalidade de multa se tornar perfeita, sob pena de nulidade do segundo.
Assim sendo, o presente artigo será dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo traremos à baila a inovação legislativa, demonstrando como era o processo de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação antes desta inovação. No segundo capítulo trataremos sobre o princípio constitucional do contraditório e ampla defesa que deverá ser observado no decorrer do processo administrativo. No terceiro capítulo discorreremos sobre o desenvolvimento do processo administrativo para aplicação da penalidade de multa e seus possíveis recursos e no quarto e último capítulo trabalharemos o processo de aplicação da penalidade de Cassação e Suspensão do Direito de Dirigir, e seus possíveis recursos.
Para alcançar o desiderato científico proposto, será utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica doutrinária e jurisprudencial.
Por fim, o objeto deste trabalho científico será analisar se a instauração do processo administrativo de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação de forma concomitante com a instauração do processo para aplicação da penalidade de multa será efetivo, pois como alhures dito este é “dependente” daquele.
1.DA INOVAÇÃO LEGISLATIVA
A lei 13.281/16 introduziu no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) o § 10 do artigo 261 que assim leciona “O processo de suspensão do direito de dirigir referente ao inciso II do caput deste artigo deverá ser instaurado concomitantemente com o processo de aplicação da penalidade de multa[1]”.
Ocorre que tal inovação legislativa traz deveras mudanças no cenário do processo administrativo em matéria de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Destarte, determina a nova legislação que toda vez que um condutor cometer uma infração à legislação de trânsito em que o artigo prevê de forma específica a suspensão da CNH, o processo administrativo deverá ser instaurado de forma concomitante com o processo de aplicação da penalidade de multa.
Anterior à edição da nova legislação a matéria estava regulada pela resolução 182/CONTRAN/2005 que visava “Estabelecer o procedimento administrativo para aplicação das penalidades de suspensão do direito de dirigir e cassação da Carteira Nacional de Habilitação – CNH[2]”.
Com efeito, a referida resolução determinava em seu artigo 6º que “Esgotados todos os meios de defesa da infração na esfera administrativa, os pontos serão considerados para fins de instauração de processo administrativo para aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir[3]”.
Portanto, o processo administrativo para imposição de penalidade de suspensão ou cassação da Carteira Nacional de Habilitação, somente era instaurado após exaurir todas as possibilidades de recursos da infração na esfera administrativa.
Doravante, com a inovação legislativa, o processo administrativo para suspensão da Carteira Nacional de Habilitação deverá ser instaurado concomitantemente com o processo para aplicação da penalidade de multa, “por transgressão às normas estabelecidas neste Código, cujas infrações preveem, de forma específica, a penalidade de suspensão do direito de dirigir[4]”.
Ocorre que para se tornar perfeita a aplicação da penalidade por infração a legislação de trânsito, há que se seguir determinados procedimentos sob pena de se ferir a Constituição Federal e o próprio Código de Trânsito Brasileiro.
2.DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
Estabelece a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) que um dos princípios no direito brasileiro é Contraditório e a Ampla Defesa. Tal previsão está insculpida no inciso LV do artigo 5º da Carta Magna que assim descreve “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes[5]”.
Não podemos olvidar que o desrespeito aos princípios constitucionais maculam o processo de tal sorte que este se torna nulo de pleno direito, não subsistindo no mundo jurídico. Sobre o princípio constitucional do Contraditório Di Pietro leciona que:
O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação. Exige: 1- notificação dos atos processuais à parte interessada; 2- possibilidade de exame das provas constantes do processo; 3- direito de assistir à inquirição de testemunhas; 4- direito de apresentar defesa escrita[6].
Sobre a ampla defesa Costa APUD Paulino leciona que “O direito de ampla defesa exige a bilateralidade, determinando a existência do contraditório. Entende-se, com propriedade, que o contraditório está inserido dentro da ampla defesa, quase que com ela confundido integralmente, na medida em que uma defesa não pode ser senão contraditória, sendo esta a exteriorização daquela[7]”.
Demais disso o Superior Tribunal de Justiça no RECURSO ESPECIAL Nº 478.853 - RS (2002/0134218-5), quando assim decidiu “A ampla defesa e o contraditório, corolários do devido processo legal, postulados com sede constitucional, são de observância obrigatória tanto no que pertine aos "acusados em geral" quanto aos "litigantes", seja em processo judicial, seja em procedimento administrativo[8]”.
Lecionando sobre o tema Roger Mendes Cecchetto diz que o processo administrativo punitivo em matéria de trânsito “devem seguir e se balizar pelo devido processo legal, ampla defesa e contraditório, estabelecendo-se uma relação processual da administração com o administrado[9]”.
Destarte, sendo judicial ou administrativo o processo, o princípio constitucional do contraditório e ampla defesa deverá ser observado sob pena de macular e tornar o processo nulo de pleno direito.
3.DO PROCESSO ADMINISTRATIVO PARA APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE MULTA POR INFRAÇÃO À LEGISLAÇÃO DE TRÂNSITO.
O processo administrativo punitivo de trânsito não possui regras processuais próprias em seu todo. Destarte, necessário se faz recorrer à analogia, a outras legislações para seu processamento.
Assim, para o processamento, imprescindível a aplicação, além de outras normas, da lei 9.784 de 1999, que “regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal[10]”, bem como os prazos prescricionais previstos na lei 9.873/1999.
Há que se observar que, ocorrendo a infração, a legislação de trânsito possui o processo administrativo para aplicação da penalidade de multa e, havendo previsão legal haverá o processo administrativo para aplicação da suspensão da CNH.
A posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) é que a notificação da autuação é somente a informação ao infrator que, contra ele será instaurado um processo administrativo. “É importante ressaltar que, cometida a infração, é o infrator comunicado de que será aberto contra ele processo administrativo, cabendo ao notificado trazer de imediato os fatos extintivos ou impeditivos que possam desfazer a autuação, como previsto no art. 280 da Lei n. 9.503/1997, in verbis[11]”.
Com efeito, com a notificação da autuação o infrator é informado que contra ele será instaurado um processo administrativo, pela autoridade de trânsito, abrindo-se prazo para apresentação de defesa, e com a notificação da imposição da penalidade, dá-se início, efetivamente, ao processo administrativo para a imposição da penalidade de multa ao infrator, abrindo-se prazo para interposição de recurso.
Ocorre que, determina o inciso ll do § único do artigo 281 do CTB que a autoridade de trânsito terá prazo decadencial de 30 dias para expedir a notificação da autuação ao infrator, sob pena de ser julgado o auto insubsistente. A matéria está regulada pela Resolução 404/CONTRAN/2012.
Não apresentada ou não acolhida a defesa, compete à autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via, não sendo o caso para aplicação do previsto no artigo 267 do CTB, a aplicação da penalidade de multa, por força do artigo 282 do CTB.
Aplicada a penalidade de multa, abre para o infrator o prazo para apresentar o recurso à JARI (Juntas Administrativas de Recursos de Infrações) por força do § 4º do artigo 282 do CTB.
Das decisões das JARIs cabe recurso, quando a penalidade for imposta por órgão ou entidade de trânsito da união, ao CONTRAN por força da alínea “a”[12] do inciso l do artigo 289 do CTB, ao Colegiado especial por força da alínea “b”[13] do inciso l do artigo 289 do CTB, e quando a penalidade for imposta por órgão/entidade estadual, municipal ou do Distrito Federal ao CETRAN E CONTRANDIFE, por força do inciso ll[14] do artigo 289 do CTB.
Demais disso, o artigo 290 do CTB determina o encerramento da instância administrativa, o julgamento dos recursos ou a não apresentação destes. Após o encerramento da instância administrativa “unicamente pelo caminho judicial torna-se viável desconstituir a condenação[15]”.
Não podemos olvidar que se fazem necessárias duas notificações, quando do cometimento de uma infração a legislação de trânsito: a primeira refere-se a notificação da autuação prevista no inciso ll do artigo 281 do CTB que deverá ser expedida no prazo decadencial de 30 dais. Posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), senão vejamos:
Sobressai inequívoco do CTB (art. 280, caput) que à lavratura do auto de infração segue-se a primeira notificação in faciem (art. 280, VI) ou, se detectada a falta à distância, mediante comunicação documental (art. 281, parágrafo único, do CTB), ambas propiciadoras da primeira defesa, cuja previsão resta encartada no artigo 314, parágrafo único, do CTB em consonância com as Resoluções n. 568/80 e n. 829/92 (art. 2º e 1º, respectivamente, do Contran)[16].
Já a segunda notificação é de imposição da penalidade de multa, que está prevista no artigo 282 do CTB, sendo o prazo prescricional estabelecido pelo artigo 1º da lei 9.873/99. Posicionamento adotado pelo STJ “Superada a fase acima e concluindo-se nesse estágio do procedimento pela imputação da sanção, nova notificação deve ser expedida para satisfação da contraprestação ao cometimento do ilícito administrativo ou oferecimento de recurso (art. 282, do CTB). Nessa última hipótese, a instância administrativa somente se encerra nos termos dos artigos 288 e 290, do CTB”.
Neste diapasão o Superior Tribunal de Justiça, para pacificar o tema, editou a súmula 312 que assim determina “No processo administrativo para imposição de multa de trânsito, são necessárias as notificações da autuação e da aplicação da pena decorrente da infração”.
Cumpre observar que estamos tratando aqui apenas da defesa de autuação e dos recursos das penalidades de multa aplicadas por infração à legislação de trânsito.
4.DO PROCESSO ADMINISTRATIVO PARA APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE SUSPENSÃO OU CASSAÇÃO DO DIREITO DE DIRIGIR.
O processo de cassação do Direito de Dirigir, nada obstante seguir o mesmo rito do Processo de Suspensão da Carteira Nacional de Habilitação dar-se-á, nas hipóteses previstas no artigo 263 do CTB “I - quando, suspenso o direito de dirigir, o infrator conduzir qualquer veículo; II - no caso de reincidência, no prazo de doze meses, das infrações previstas no inciso III do art. 162 e nos arts. 163, 164, 165, 173, 174 e 175; III - quando condenado judicialmente por delito de trânsito, observado o disposto no art. 160[17]”.
De outro norte o artigo 261 do CTB determina quais são os casos em que será imposta a penalidade de suspensão do direito de dirigir. Quando num período de 12 (doze) meses o infrator atingir 20 (vinte pontos), inciso l do artigo 261 do CTB. Ou “por transgressão às normas estabelecidas neste Código, cujas infrações preveem, de forma específica, a penalidade de suspensão do direito de dirigir”, inciso ll do artigo 261 do CTB[18].
Com efeito, toda vez que o condutor/infrator atingir 20 pontos, conforme pontuação prevista no artigo 259 do CTB, ou quando transgredir as normas que preveem de forma especifica a penalidade de suspensão do direito de dirigir (v.g. artigo 165 CTB), deverá ser instaurado, pela autoridade de trânsito, o processo administrativo para aplicação da penalidade de suspensão ou cassação do direito de dirigir do infrator, e é este que interessa ao presente artigo científico.
O Código de Trânsito Brasileiro traz o rol taxativo dos artigos que preveem de forma específica a suspensão do direito de dirigir, quais sejam artigos 165; 165-A; 170; 173; 174; 175; 176; 191; 210; 218 lll; 244 e 253-A. Destarte, além da penalidade de multa, nas infrações aos referidos artigos haverá também a penalidade de suspensão do direito de dirigir.
Lecionando sobre o tema Rizzardo aduz que “As penalidades restritivas de direito acompanham a multa e decorrem das infrações mais graves, ou daquelas que revelam certa precariedade de condições para dirigir e periculosidade na condução[19]”.
Portanto, pela redação do § 10 do artigo 261, quando do cometimento destas infrações o processo administrativo de suspensão da CNH deverá ser instaurado concomitantemente com o processo administrativo para aplicação da penalidade de multa.
Com efeito, a resolução 182/CONTRAN/2005 “Dispõe sobre uniformização do procedimento administrativo para imposição das penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação da Carteira Nacional de Habilitação[20]”.
Acertadamente o artigo 8º da referida resolução determinava que “Para fins de cumprimento do disposto no inciso II do Art. 3º desta Resolução será instaurado processo administrativo para aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir quando esgotados todos os meios de defesa da infração na esfera administrativa[21]”.
Note que a resolução determinava que para a instauração do processo administrativo de suspensão do direito de dirigir nas infrações que preveem de forma específica essa penalidade, havia a necessidade de se esgotar “todos os meios de defesa da infração na esfera administrativa”.
Significa dizer que o processo administrativo para a aplicação da penalidade de multa tinha se exaurido, não havia mais a possibilidade de recurso na esfera administrativa, ou seja, havia transitado em julgado, administrativamente o processo.
Com a nova redação do § 10 do artigo 261 do CTB, o processo administrativo de suspensão da CNH deverá ser instaurado de forma concomitante com o processo administrativo para a imposição da penalidade de multa, antes mesmo de transitar em julgado o processo administrativo para aplicação da penalidade de multa.
Ocorre que o segundo é “dependente” do primeiro, porquanto não poderá ser solucionado sem que antes tenha transitado em julgado processo administrativo para a imposição da penalidade de multa, sob pena de se ferir devido processo legal.
Destarte, no caso de deferimento da defesa ou do recurso no processo administrativo para a imposição da penalidade de multa, o processo de suspensão da CNH que fora instaurado concomitantemente a esse, não subsistirá.
No Direito Civil a consequência de um processo ser dependente é o apensamento por força do artigo 286[22] do Código de Processo Civil.
Conforme alhures exposto para a perfectização do processo para imposição da penalidade de multa o processo deve seguir um rígido trâmite sob pena de nulidade.
Dessa maneira, caso no processo para aplicação da penalidade de multa, seja deferido a defesa ou o recurso, não há como dar seguimento no processo administrativo para suspensão da CNH, pois como alhures dito, este é “dependente” daquele.
Não podemos olvidar da morosidade da tramitação dos processos, inclusive os administrativos, bem como de todas as defesas e recursos a eles inerentes. Destarte, deverá ser considerado o que prevê o § 1º do artigo 1º da lei 9.873/99 “Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso[23]”.
Portanto, se instaurado o processo administrativo de suspensão da CNH concomitantemente com o processo administrativo para aplicação da penalidade de multa, e como o primeiro é “dependente” do segundo, sabendo da morosidade na tramitação dos processos, poderá incidir a prescrição administrativa no processo de suspensão.
Dito isto, cumpre dizer que, nada obstante, a necessidade de otimizar o processo administrativo para suspensão da CNH, dando maior efetividade ao código de Trânsito Brasileiro, todavia instaurar este processo concomitante ao processo administrativo para aplicação da penalidade de multa não trará efetividade por ser este “dependente” daquele.