Um breve comentário acerca do RE 841526/RS envolvendo a responsabilidade civil do Estado por morte de detento

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O trabalho aborda as alegações contidas no RE n.º 841526/RS, interposto contra Acórdão do TJ-RS que reconheceu a responsabilidade civil do Estado e determinou o pagamento de indenização à família de preso morto sob custódia estatal.

INTRODUÇÃO

Em um Estado Democrático de Direito, este também deve se submeter a força das leis, devendo portanto, arcar com seus atos e omissões. O presente trabalho aborda brevemente as alegações contidas no recurso extraordinário (RE)[1] n.º 841526/RS, que foi interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul (RS) contra Acórdão do Tribunal de Justiça (TJ-RS) que reconheceu a responsabilidade civil do Estado e determinou o pagamento de indenização à família de detento morto na Penitenciária Estadual de Jacuí.

Em março de 2016, o Plenário do STF decidiu, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, Ministro Luiz Fux, que, em caso de inobservância de seu dever específico de proteção, previsto no art. 5º, inciso XLIX 2, da Constituição Federal (CF/88), o Estado é responsável pela morte de detento. A decisão teve repercussão geral reconhecida[3,4], devendo seus termos serem adotados em pelo menos 108[5] processos sobrestados[6] em outras instâncias. Conforme exposto pelo Relator, a questão constitucional posta à apreciação da Suprema Corte deve-se à necessária discussão sobre a responsabilidade civil objetiva do Estado, em razão de morte de detento, nos termos do artigo 37, § 6º[7], da CF/88.


1. O POSICIONAMENTO DA SUPREMA CORTE

A matéria sob análise não constituiu novidade para o STF. Em suas Turmas, foram inúmeros os precedentes a debaterem a questão da responsabilidade do Estado decorrente de sua omissão no zelo pela integridade física do preso, sob sua custódia. Entretanto, até o início dos anos 2000, a jurisprudência pátria não era uniforme quanto à questão em apreço, uma vez que se verificava a existência de decisões que, ora adotaram a tese de responsabilidade subjetiva do Estado por ato omisso, ora a consideraram como objetiva (TAVARES, 2013).

Após exposição histórica sobre a responsabilidade do Estado, o Min. Luiz Fux, em seu voto no RE n.º 841526/RS, ponderou que não se aplica a teoria do risco integral no âmbito da responsabilidade civil do Estado, ou seja, a que obriga o Estado a indenizar todo e qualquer dano, desde que envolvido no respectivo evento, mesmo que tais danos não tenham sido causados por agentes do Estado (GASPARINI, 2011). Explicou, ainda, que o Poder Público deve responder de forma objetiva pelas suas omissões, desde que presente a obrigação legal específica de agir para impedir a ocorrência do resultado danoso, em sendo possível essa atuação. Segundo a tese abordada, citando Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a teoria do risco administrativo substituiu a teoria da culpa anônima ou falta do serviço (faute du service)[8], preconizando que, independentemente da culpa do agente público ou mesmo do serviço, deve o Estado responder pelos danos que causar ao particular. Entretanto, Luiz Fux  advertiu que “se, por um lado, a teoria do risco administrativo dispensa a análise da culpa da Administração, por outro exige que haja nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano causado ao particular”. Ou seja, segundo essa teoria, não se pode atribuir ao Estado a reparação de danos derivados de caso fortuito ou força maior ou que não decorram das atividades estatais, mas de fatos exclusivamente atribuíveis à própria vítima ou a terceiros.

Para o ministro Luiz Fux, mesmo em caso de suicídios, mortes naturais ou assassinatos, o Estado deve responder objetivamente quando houver inobservância desse dever específico de proteção, previsto no artigo 5º da CF/88[9], admitindo-se a possibilidade de comprovação, pelo Poder Público, de causa excludente do nexo de causalidade entre a sua omissão e o dano sofrido pela vítima, ou seja, cabendo o ônus da prova ao Estado.

A tese vencida, sustentada pelo então Procurador-Geral do Estado, Dr. Victor Herzer, era de que não havia prova conclusiva quanto à causa da morte, se homicídio ou suicídio, logo não seria possível fixar a responsabilidade objetiva do estado.

Todos os ministros acompanharam o voto do relator sem grandes ressalvas. Convém destacar o voto do ministro Marco Aurélio, que ponderou acerca da situação precária das penitenciárias brasileiras, o que incidiria em permanente nexo de causalidade, ou seja, enquanto permanecer tal condição, a responsabilidade estatal, na prática, seria integral. Na visão do ministro, o ônus atribuído ao Estado, devendo provar a ausência de culpa, gerará, em vez de pacificação da jurisprudência, inúmeras controvérsias.

Dado o contexto, em seus votos, os Ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia, citaram o caso do jornalista Vladimir Herzog, que, nas palavras de Fux, foi “vítima do suicídio de um cinto de um macacão que não tinha cinto”. O jornalista morreu em 25/10/1975, tendo sido encontrado amarrado pelo pescoço à grade de uma janela de altura menor que a sua própria[10].


2. O STF ACERTOU?

A decisão do STF no caso em comento foi acertada, pois o Estado não observou seu dever específico de preservar a incolumidade do preso conforme prevê os fundamentos[11] e garantias constitucionais[12].

Esse veredicto do STF busca levar os direitos dos presidiários para o campo da eficácia. Não os restringindo a formalidades (vigência e validade), porque, quando o Estado não concretiza as normas, abre-se espaço para o Estado de Natureza Hobbesiano que é sempre um Estado de Guerra, onde “o homem é o lobo do próprio homem.”

Quando se analisa a evolução da irresponsabilidade estatal para um princípio de responsabilidade e a ruptura ao absolutismo, são visíveis os avanços, como a  edição da Lei de Execução Penal[13] e a consolidação da teoria do risco administrativo na CF/88. No entanto, ainda estamos longe da plena “[...] cidadania civil dos aspectos universalistas do sistema legal: os direitos [...] de não sofrer violência, de esperar tratamento justo de um órgão estatal e assim por diante [...]”(O’DONNELL, 1998, p. 50).

Por fim, os Ministros (principalmente Lewandowski e Marco Aurélio), durante a elaboração deste acórdão, mandaram uma mensagem implícita aos chefes dos poderes executivos. Enquanto as “masmorras medievais”[14]  brasileiras permanecerem na atual situação inconstitucional, será árdua a tarefa estatal quanto ao afastamento do nexo de causalidade quanto à morte de detento.


NOTAS

[1] Recurso extraordinário: É um mecanismo processual previsto no art.102 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), cujo o objetivo é viabilizar a análise de questões constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando a decisão recorrida contrariar dispositivos da constituição; declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; julgar válida lei local contestada em face de lei federal

[2] CF/88. Art. 5o. XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

[3] O STF reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada em 20/09/2012, mediante julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) no 638.467 em que se discutiu, à luz do § 6º do art. 37 da Constituição Federal, a responsabilidade civil objetiva do Estado por morte de detento. Min. Relator Luiz Fux. DJe no 195, publicado em 04 set. 2012.

[4] Repercussão geral: Instituto processual que reserva ao STF o julgamento exclusivo de temas, trazidos em recursos extraordinários, que apresentem questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Estatísticas do STF. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=entendarg> Acesso em: 16 set. 2016.

[5] Notícias STF: Estado tem responsabilidade sobre morte de detento em estabelecimento penitenciário. 30/03/2016. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=313198> Acesso em: 16 set. 2016.

[6] Processo sobrestado: Processo que teve seu andamento suspenso, até o julgamento de preliminar de repercussão geral em controvérsia já delimitada, ou até o julgamento de mérito, em tema com repercussão geral reconhecida. O sobrestamento deve ser determinado pelo tribunal de origem, antes do juízo de admissibilidade do recurso. No caso de o STF tornar pública controvérsia ou julgar preliminar de repercussão geral, entre o juízo de admissibilidade e a efetiva remessa do processo, o tribunal deve sobrestá-lo. O sobrestamento também pode ser determinado, pelo Relator, no STF. Estatísticas do STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=entendarg> Acesso em: 16 set. 2016.

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[7] CF/88. Art. 37 § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

[8] Expressão francesa. Quando ocorre a culpa do serviço ou “falta de serviço” quando este não funciona, devendo funcionar, funciona mal ou funciona atrasado. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30a ed. São Paulo: 2013, p. 1019.

[9] CF/88. Art. 5o. XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

[10] Instituto Vladimir Herzog. A farsa de um suicídio. Disponível em: <http://vladimirherzog.org/biografia/> Acesso em: 16 set. 2016.

[11] CF/88. Art. 1 A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

(...)

[12] CF/88. Art 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...)   

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

(...)

[13] BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984. Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 13 jul. 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm> Acesso em: 15 out. 2016

[14] Afirmação feita pelo ex-Ministro da Justiça (2011-2016), José Eduardo Cardozo.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Diário Oficial da União, Brasília, 05 set. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 12 out. 2016.

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 13 jul. 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm > Acesso em: 12 out. 2016.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em: 15 out. 2016.

BRASIL, Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN – Departamento Penitenciário Nacional, Dezembro de 2014. Disponível em: <http://download.uol.com.br/fernandorodrigues/infopen-relat-2016.pdf> Acesso em: 14 out. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 841526 - RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Inteiro Teor do Acórdão. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 29 jul. 2016. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4645403> Acesso em: 12 out. 2016.

CARRAMILO, Clarissa & BARBOSA, João Ricardo. Promotor denuncia caso de canibalismo no Presídio de Pedrinhas. G1 MA, São Luís, 20 out. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2015/10/promotor-denuncia-caso-de-canibalismo-no-presidio-de-pedrinhas.html> Acesso em: 12 out. 2016.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 25ª Edição, 2012, p. 701.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo, Editora Saraiva, 16ª Edição, 2011, p. 1.114.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 1. ed. São Paulo: Martin-Claret, 2001. 636p.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 449p.

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O’DONNELL, Guillermo Alberto. Poliarquias e a (In)Efetividade da Lei na América Latina. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n. 51, p. 3761, jul. 1998.

TAVARES, Flávia Oliveira. Responsabilidade do Estado por Omissão no Âmbito Administrativo. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Brasília, Ano 11, Edição Especial, Set. 2003, p. 140.

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Sobre os autores
Alan Alves Ferro

Pós-graduando em Educação Básica e Direitos Humanos na Perspectiva Internacional - EBDHI, especialização oferecida pelo Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados - CEAM, da Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito Processual Civil no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Bacharel em Direito e licenciado em Química, ambos pela UnB.

Joabe Misael Silveira Leite

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília - UnB.

Ricardo de Oliveira e Melo

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília - UnB.

Alexsandro Lopes Lima

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília - UnB.

Gustavo de Souza Cardoso

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília - UnB.

Informações sobre o texto

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Mais informações

Trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção de aprovação na disciplina de Introdução ao Direito 1, no curso de Bacharelado em Direito da Universidade de Brasília, campus Darcy Ribeiro. Professor: Dr. Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho.

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