Legalidade da suspensão do estágio probatório de servidor licenciado para tratamento de sua saúde à luz do princípio da proporcionalidade

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A lei 8.112/90 prevê as hipóteses nas quais a suspensão do estágio probatório se faz possível, não estando neste rol a licença do servidor para tratamento de saúde própria. Em razão de que, se o mesmo não se dá com a licença para tratamento de saúde de algumas pessoas da família?

RESUMO: Este artigo objetiva analisar a hipótese da suspensão do estágio probatório de servidor licenciado para tratamento de sua saúde, questionando a legalidade desta à luz do princípio da proporcionalidade.

Palavras-Chave: Servidor Público – Suspensão – Princípios – Proporcionalidade – Legalidade.


1 INTRODUÇÃO

O fato de as vagas na iniciativa privada não se mostrarem suficientes à demanda crescente da classe trabalhadora na sociedade atual está proporcionando um aumento no interesse e procura por concursos públicos.

A ampliação desta busca se deve ao fato de que grande parte das pessoas, perante os constantes impedimentos, incertezas e inconstâncias em relação ao trabalho, deseja uma atividade laboral segura e estável. No entanto, para se atingir a estabilidade, o servidor público necessita passar por um estágio probatório, durante certo período de tempo, para que se avalie se o mesmo se encontra apto ao exercício de suas funções. 

Nota-se, na legislação, ser defeso ao servidor público se licenciar, durante o estágio probatório, em virtude de problemas de saúde daqueles elencados no artigo 83 da Lei 8.112 de 1990. No entanto, questiona-se a possibilidade de ocorrer esta hipótese nos casos em que o servidor público necessita ausentar-se em virtude de sua própria enfermidade, tendo em vista que este fato não consta no artigo da Lei em questão.

Indaga-se, portanto, se este rol é taxativo ou não. Além disso, faz-se imprescindível a análise da questão considerando-se o princípio da proporcionalidade, um vez que através deste, será possível aferir se há uma proporcionalidade, de fato, entre a finalidade almejada e restrição de determinados Direitos e a legalidade de tal proposição.


2 O SERVIDOR PÚBLICO

Segundo Carelli[3], a condição de funcionário público é situação altamente desejada pela classe média brasileira. A autora expõe que, somente no ano de 2006 (dois mil e seis), mais de 5 (cinco) milhões de brasileiros se inscreveram em concursos para disputar vagas em repartições federais, estaduais e municipais, número este que representa um aumento de 43% (quarenta e três por cento) na quantidade de candidatos em relação ao início da década.

 Além disso, fatores como incertezas e flutuações na esfera do trabalho globalizado, fazem com que a classe trabalhadora busque, por meio dos concursos públicos, uma atividade laboral que proporcione maior estabilidade e segurança.

De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello,

Servidor Público, como se pode depreender da Lei Maior, é a designação genérica ali utilizada para englobar, de modo abrangente, todos aqueles que mantêm vínculos de trabalho profissional com as entidades governamentais, integrados em cargos ou empregos da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público. Em suma: são os que entretêm com o Estado e com as pessoas de Direito Público da Administração indireta relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob vínculo de dependência.[4]

A contratação dos agentes públicos, no regime estatutário, ocorre por meio da Administração Direta, isto é, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como por pessoas jurídicas de direito público da Administração Indireta, tais como autarquias, fundações públicas e associações públicas, sendo a forma de seleção destes através de concurso público.

Alexandre Mazza[5] distingue os agentes públicos em duas categorias básicas: os empregados públicos e os servidores estatutários. O autor esclarece que esta divisão advém da Constituição de 1988 (mil novecentos e oitenta e oito), que estabeleceu como regimes principais de contratação para o serviço público o estatutário, ou de cargo público, e o celetista, ou de emprego público.

Em contrapartida, Maria Sylvia Zanella di Pietro faz esta distinção entre os servidores públicos estabelecendo três grupos distintos: servidores estatutários, titulares de cargos públicos, submetidos em lei a regulamentos estabelecidos por cada uma das unidades da federação; os empregados públicos subordinados às normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e ocupantes de emprego público, e os servidores temporários contratados para exercer funções por prazo determinado.

Tal diferenciação se mostra de suma importância no que tange às distinções existentes entre estas categorias no que se refere aos aspectos como a forma de seleção, oportunidades na carreira, previdência social, remuneração e principalmente quanto a estabilidade.

Alexandre Mazza compara o regime de cargo público com emprego público, expondo o primeiro como sendo mais vantajoso e protetivo para o agente. Segundo o autor, isso se dá em virtude do regime de cargo ter sido concebido tendo em vista a garantia de maior estabilidade no exercício das funções públicas, objetivando a proteção do servidor contra influências partidárias e pressões políticas ocasionadas pela constante mudança na cúpula diretiva do Estado.

Mazza expõe a estabilidade adquirida após o estágio probatório como sendo a principal vantagem conferida aos estatutários. Para o autor,

Essa estabilidade consiste na impossibilidade de perda do cargo, a não ser nas hipóteses constitucionalmente previstas. Segundo o art. 41,§ 1º, da Constituição Federal, o servidor estável só perderá o cargo por: a) sentença judicial transitada em julgado; b) processo administrativo disciplinar; c) avaliação periódica de desempenho. Além dessas três formas, é possível ser decretada a perda do cargo também para redução de despesas com pessoal.5

A autora Fernanda Marinela também conceitua estabilidade como sendo

uma garantia constitucional de permanência no serviço público e não no cargo, vinculado à atividade de mesma natureza de quando ingressou, assegurada ao servidor público nomeado para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público, que tenha cumprido um período de prova, após ser submetido à avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.[6]

Ao citar o “período de prova” a que o servidor público deve se submeter, Marinela faz referência ao estágio probatório, período este instituído pelo artigo 20 da Lei 8112/90. Tal artigo estabelece os fatores a serem observados durante este período, sendo estes a assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade e responsabilidade. 

A autora conceitua ainda o estágio probatório, expondo este como “um período de prova para o servidor, de teste, em que o candidato vai ser avaliado quanto às suas aptidões para o exercício do cargo.”[7]


3 SUSPENSÃO DO ESTÁGIO PROBATÓRIO

O artigo 20 da lei 8.112 de 1990, além de prever como será o procedimento do Estágio Probatório, também estabelece no seu parágrafo 5º a possibilidade de suspensão do mesmo. As situações previstas neste parágrafo são aquelas descritas nos artigos 83, 84, 86, §1º e 96 da mesma lei, e que tratam, respectivamente, da licença conferida o servidor por motivo de doença do cônjuge ou companheiro, dos pais, dos filhos, do padrasto ou madrasta e enteado, ou dependente que viva a suas expensas e conste do seu assentamento funcional (artigo 83), da licença para o servidor acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo e Legislativo (artigo 84), da licença durante o período que mediar entre a sua escolha em convenção partidária, como candidato a cargo eletivo, e a véspera do registro de sua candidatura perante a Justiça Eleitoral (artigo 96), da licença para servir em organismo internacional de que o Brasil participe (nestes três últimos casos sem remuneração) bem como na hipótese de participação em curso de formação (parágrafo 5º do artigo 20). Logo, caracterizada uma dessas situações o período do estágio probatório fica suspenso, e uma vez terminado o impedimento, o prazo será retomado.

Grande parte dos autores não entram no mérito se este rol apresentado no parágrafo 5º é taxativo ou exemplificativo. O autor Gustavo Barchet, possui claramente o entendimento de que o artigo 20 §5º refere-se a um rol taxativo, como pode ser observado no seguinte trecho:

Deve se ressaltar que o § 5 do art. 20 lista alguns afastamentos e licenças que suspendem o estágio probatório e, por uma interpretação a contrario sensu, podemos concluir que aqueles não referidos no dispositivo não suspendem o estágio probatório.

Assim, não suspendem o estágio probatório a licença para o serviço militar, o afastamento para exercício de mandato eletivo e o afastamento para estudo ou  missão no exterior.[8]

Apesar disso, esta interpretação restritiva a letra da lei poderia trazer algumas contradições como, por exemplo, o caso do artigo 83 da lei 8.112 que apresenta uma das hipóteses de suspensão que permite ao servidor público se licenciar por motivo de doença de familiar que viva a suas expensas, mas nada trata sobre o caso de tratamento de doença do próprio servidor.

Se o servidor público se licenciar por motivo de doença própria, não teria o prazo de avaliação do estágio probatório suspenso, entretanto, se o mesmo servidor acompanhasse o tratamento de um familiar doente, poderia se utilizar da prerrogativa protegida pelo artigo 83 da lei 8.112/90. Por isso, indaga-se se haveria a possibilidade de outras hipóteses de suspensão do estágio probatório além daquelas elencadas no § 5º do artigo 20, especificamente, se a hipótese do servidor licenciado para tratamento da própria saúde seria legítima. Para responder a esta questão somos levados a realizar uma reflexão sobre o conceito de legalidade.

O princípio da legalidade tem sua gênese no Estado de Direito, e por isso, como aponta Celso Antônio Bandeira de Mello “é princípio basilar do regime jurídico administrativo”. Entretanto, o conceito de legalidade foi se modificando ao longo do tempo e se adequando sempre as características da sociedade, como pode ser visualizado na obra de Raquel Melo Urbano de Carvalho, que apresenta três mudanças essenciais à noção clássica de Legalidade.[9]

Originado das Revoluções que puseram em cheque a livre atuação dos soberanos, o princípio da legalidade, quando formulado, tinha o objetivo de defender o indivíduo do abuso de poder, e por isso sua noção clássica estava ligada a ideia de que a administração pública somente poderia agir dentro do que a lei expressamente autorizava. A submissão do Estado às leis, propostas pelas novas Constituições, garantiria a divisão dos poderes, os direitos fundamentais e assim protegeriam o indivíduo dos excessos do Estado.

A primeira mudança na noção de legalidade ocorreu quando a doutrina percebeu a insuficiência do entendimento clássico de legalidade para a ação administrativa, sendo necessária, para esta, uma atuação legítima. Para isso, a Administração pública, além de agir conforme as regras expressas, na lei ou Constituição, também deveria atender à moralidade e a finalidade pública. Logo, como afirma Raquel Melo Urbano de Carvalho “

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A legitimidade passa a ser identificada quando há correspondência entre o comando normativo ‘e o sentido admitido e consentido pelo todo social, a partir da realidade coletada como justificadora do preceito normatizado’. Sendo assim, um comportamento administrativo só se mostra legítimo se, além dos aspectos formais de atendimento das regras legais, observam-se materialmente os valores sociais consagrados expressamente como fundamento do ordenamento na Constituição, atendidas as demandas da comunidade. Supera-se o pensamento normativista assentado na concepção dogmática e liberal da legalidade em sentido estrito capaz de aprisionar o Direito no âmbito do dever-ser, imune à realidade do mundo do ser.  Passa-se a exigir a legitimidade das atuações públicas, excluídas “iniquidades sociais e atos de arbítrio de toda ordem’ [10]

A ampliação da discricionariedade administrativa e assunção de novos encargos pelo Poder Público no Estado Social promoveram o abuso de poder em algumas searas do Estado e o descumprimento de Direitos fundamentais[11], por isso, viu-se novamente a necessidade de repensar a legalidade. 

A segunda “mutação” da noção de legalidade trouxe a ideia de que o Poder Público deveria se atentar mais a Constituição, não apenas com a interpretação literal de seus dispositivos, mas precisaria transcender o texto da lei para o caso concreto e buscar os valores consagrados na Lei Maior. Esse posicionamento superou a dogmática positivista que não aceitava a normatividade dos princípios constitucionais, e ainda afirmava que todo o Direito, principalmente o Administrativo, deveria ter uma intepretação conforme a Constituição.

Esta ideia ganha força quando o artigo 37 da Constituição Federal de 1988 consagra os princípios que a Administração Pública deve seguir. Essa noção de legalidade é de extrema importância para a terceira alteração do conceito, pois ao reconhecer os princípios implícitos e explícitos da Constituição, por exemplo, ela lança as bases para o reconhecimento da legalidade como juridicidade.

Como foi apontado anteriormente, a terceira modificação da noção de legalidade traz a ideia de juridicidade. E segundo Raquel Melo Urbano de Carvalho:

O princípio da legalidade adquire, atualmente, compreensão mais ampla, para significar princípio da constitucionalidade (Juares Freitas, princípio da legitimidade (Diogo Figueiredo Moreira Neto) ou princípio da juridicidade (Eduardo Soto Kloss), de modo a fazer prevalecer o fim do Direito (justiça) sobre a literalidade da lei. [12]

O princípio da legalidade, quando ganha a noção de juridicidade, abandona o conceito original de legalidade como o cumprimento simplista de regras interpretadas isoladamente de todo o sistema normativo, até porque, a noção de juridicidade propõe a intepretação ampla do Direito, e portanto, levando-se em conta todo o ordenamento jurídico.

Quando se diz, atualmente, que o administrador público somente pode agir conforme a lei, entende-se a lei como toda norma jurídica, ou seja, regras legais, normas administrativas, princípios constitucionais explícitos e implícitos e princípios gerais do direito. E como afirma Raquel de Melo Urbano de Carvalho:

A simples legalidade estrita da atuação estatal passou a se considerar insuficiente a título de legitimação do direito. Neste sentido, o sistema não seria legítimo se apenas cumpridas pelo Estado as regras legais que lhe integram, sendo necessária a ampliação da legalidade para a noção de juridicidade, em cujo bojo inserem-se valores como eficiência, moralidade, segurança jurídica e proporcionalidade.[13]

É por meio dessa nova alteração do conceito de legalidade que nos propomos a responder a indagação sobre a legalidade da suspensão do estágio probatório do servidor público para tratamento da sua própria saúde, tendo como embasamento o princípio da proporcionalidade, implícito ao Ordenamento Jurídico, mas totalmente cabível para se compreender a legalidade.

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Sobre os autores
Daniel dos Santos Pavione

Pós-Graduando em Direito e Gestão Pública pela União de Ensino Superior de Viçosa - UNIVIÇOSA.

Marcelo Andrade Mendonça

Professor da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga; Mestre em Administração Pública pela Universidade Federal de Viçosa/MG

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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